A CASA
1. Este é o chão, aqui se molda a
casa. Deste recanto ouvirei a coruja
e o noitibó esconjurando os astros.
Abeiro-me já da janela para
sorver o sol ou ver a chuva. Aqui
invento o olhar onde uma paisagem
me fala de todas as partidas e de
nenhum regresso.
Será aqui a casa. Ela começa no bater
do coração, ali na lisura das
paredes, onde a tarde perdeu todas as
sombras, lá onde só resta a
pura fulguração da luz. A horizontal
luz do teu olhar. Ah, faltam os
espinhos da roseira para prender os
sonhos e o verde da camélia
para entreter os olhos.
2. O que sobrou do ferro, da pedra, da
argamassa, do alisar das mãos
é agora a casa. Foi aqui que germinou
o lancil e se abriu a porta e tu
disseste: Quero uma mesa que acolha
todos os homens.
É macio o côncavo do dia. Mansa é a
noite. A casa acolhe agora o
silêncio de muitas vozes. E a ternura
dos gestos prende-se à fulguração
do lume, o sussurro da chama abranda a
inquietação das horas e em
toda a casa perpassa o som dos teus passos.
Diria que o soalho acaricia os pés, as
mãos acolhem a brancura do riso.
É aqui a partilha do pão, a maciez
acidulada do vinho na toalha onde
ardem serenas palavras. Esta é a lenta
demora, o lento declinar das
estrelas, no breve
contentamento... Aqui é a casa.
3. Nenhum lugar é nosso e apenas
resistimos ao pó. Mas agora é o tempo
da casa. Começa a cumplicidade dos
sonhos, o desvendar deste recanto, a
intimidade das horas.
É preciso chegar à medula da casa e aí
interrogar o corpo, beber devagar
o declinar dos dias, entretecer a
noite e descobrir que o momento é toda
a eternidade. Retarda o encontro com a
rua, com a urgência do tempo,
deixa que a ternura navegue pela casa
e escuta o palpitar dos astros até
que a estrela da manhã se apague na
lentidão do crepúsculo.
4. Podemos rodear a casa. Soletrar os
ângulos. Tocar o branco da cal,
a dureza da pedra. Aqui demoro mas tão
brevemente como é breve a
sombra do muro.
No jardim um pássaro acende a tarde e
é verão...(Chamaste ou é o apelo
da noite que aí vem?)
5. Estamos sempre mais longe e não há
regresso. A distância é o nevoeiro
dos dias, o apagamento da
memória...Agora a casa é uma palavra em ruínas.
A mesa é feita de lugares vazios. A
humidade saboreia a caliça e há raízes
investindo com os muros. A trave
apodrecida é um mastro caído à espera
de outro mar.
Adivinho antigos rumores, vozes
dispersas. Aqui um horizonte se apaga, breve
e última respiração das coisas. Agora
só se ouve a débil pulsação da noite.
Colhêmos este belo poema, tomando assim contacto com o seu A., no espaço
anteriormente mantido pelo editor e livreiro José Antunes Ribeiro – também
presente nesta postagem – “O voo da coruja”, que dentro em breve vai sair em
revista, materialmente dada a lume mediante os meios habituais.
Dirigida pelo poeta e pintor Hugo Beja, certifica
a volta ao bom combate – não se deixando vencer pelas dificuldades por cá
colocadas infaustamente à maioria das editoras – da icónica ULMEIRO, uma das
casas legendárias lisboetas e entreposto que foi de passagem de destacadas
figuras da cultura lusitana contemporânea. - ns
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