terça-feira, 14 de junho de 2022

Nicolau Saião, Henrik Edstrom ou A reconversão do universo

 


Henrik Edstrom, Em busca da estrela (col. ns)


   Todo o verdadeiro pintor é de facto um demiurgo. E, como referiu Pablo Picasso, “mais que o inspirado é aquele que inspira”. Que inspira o desejo de uma nova visão, de uma nova formulação e, ao mesmo tempo, fornece as faculdades interiores para que tal seja não só possível como concretizável.

   Mediante as cores e as formas com que se erguem os sinais dos três reinos da natureza, o que este pintor lírico e surrealista visa é transfigurar a existência em algo de significativo e de salubre, indo para além das condicionantes sociais e humanas. Uma vez que a pintura autêntica é uma alquimia espiritual, que transforma e que faz permanecer na existência quotidiana os signos que a sustentam e através dela permanecem no mundo.

   Sendo um filho da Europa do Norte, Henrik Edstrom. aprendeu bem cedo as lendas dessas terras onde os gnomos e as fadas dos bosques vivem paredes-meias com os habitantes dos jardins, onde os turbilhões de neve nos deixam adivinhar figuras mágicas ao crepúsculo das povoações. Onde as cores e os traços, por seu turno, nas tardes de sol e de bom tempo possuem uma exactidão precisa e luminosa.

   Porque dá mais facilidade de manejo, sendo mais libertador do gesto uma vez que confere mais rapidez à execução, o pintor utiliza preferentemente o guache e a aguarela, como nas obras (uma série de 24 pinturas encantadoras e plenas de frescura) com que ilustrou os poemas do grande poeta húngaro Attila Joszef.

   Henrik Edstrom, através da sua paleta tão sabedora e livre como o coração duma criança, viaja pelos mundos onde dá gosto viver, mas com o conhecimento que de tal pode ter um animal quotidiano ou fabuloso entre os bosques e jardins dos nossos afectos vitais.



Henrik Edstrom, O gnomo feiticeiro


   Nele habitam o poeta e o artista - que as cores e seus prestígios revelam como num encantamento que a todos é, afinal, íntimo e comunicativo.

  Tive o gosto de o conhecer na biblioteca municipal, em Portalegre, onde veio há um par de anos expor uma surpreendente série de 46 óleos, guaches, aguarelas e colagens. Eu cumpria ali os meus últimos dias de funcionário.

  Durante duas horas, na sua voz suavizada pela idade, mas firme e sugestiva como os versos do Kalevaala que aliás teve o ensejo de ilustrar, falou-me de lendas da sua terra, de projectos e de maneiras de pintar – pois este pintor-poeta é de igual modo um fabro, um hacedor no plano das matérias, da forma concreta pela qual se exerce a arte de efectivar uma obra que haverá de andar nos dois planos do tempo: a que se palpa com os olhos e a que se observa com os dedos das mãos. Adicionalmente, a que – como a ars magna, a opus primae – reside e se reconhece no plano da alma, como nos disse Eyrinée Philalète.

   Dias depois – já ele voava de regresso a Anneberg, onde nasceu em 1937 - sem que para tal eu houvesse feito algo de assinalável vieram trazer-me ao gabinete um embrulho relativamente volumoso. Abri-o com expectativa. Continha dois quadros belíssimos e, num bilhetinho, vinham os seguintes dizeres: “Para o amigo NS intitular como achar melhor”.

  Estão hoje na sala da minha casa de Portalegre. Chamam-se, com efeito, “A partida para a ilha” e “O príncipe colhendo a estrela” e epigrafam duas passagens do Kalevaala.

  Foi a fórmula mais adequada que encontrei para lhe agradecer.


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