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1.
“Umberto
D.”, realizado por Vittorio de Sica em 1952, é um filme “bandeira” do
neo-realismo, movimento cinematográfico que retrata a pobreza, o desespero e a
esperança da Itália no pós-II Guerra Mundial, mas é também um melodrama
intemporal, em que a dignidade e a solidariedade do ser humano estão presentes
em todos os frames, e nem o facto de
ser um filme duro, intransigente e demasiado verdadeiro, nos leva a amá-lo
menos.
Se
Vittorio de Sica é hoje em dia claramente subvalorizado, dentro do panorama cinematográfico
italiano, muito atrás dos génios Fellini, Antonioni, Rossellini e Visconti (podendo
ser considerado como um autor de “segunda linha”, na honrosa companhia de
Pasolini, Risi, Scola e Ferreri, por exemplo), foi um dos grandes responsáveis
pela visibilidade em Hollywood do cinema de autor europeu e mundial, no pós-guerra:
filmes como “Sciuscià - Engraxador de Sapatos”, de 1946 e o magistral “Ladrões
de Bicicletas”, de 1948 (vencedores de um Óscar Especial), co-escritos pelo
grande Cesare Zavatinni, foram fundamentais para levar a Academia a criar, em
1956, o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (que venceu ainda mais duas vezes,
com “Ontem, Hoje e Amanhã”, de 1963 e “Il Giardino dei Finzi Contini/O Jardim
onde Vivemos”, de 1970).
Numa
obra vasta, com cerca de três dezenas de filmes como realizador e quase duas
centenas como ator, De Sica realizou principalmente dramas e “commedia all' italiana”, geralmente num
cenário contemporâneo, destacando-se ainda “O Milagre de Milão”, de 1951, “O
Ouro de Nápoles”, de 1954, “La Ciociara/Duas Mulheres” (que deu o Óscar de
Melhor Atriz a Sophia Loren), de 1960, “Sete Vezes Mulher”, de 1964, e “Matrimónio
à Italiana”, de 1967.
“Umberto
D.” (que apesar de nomeado para o Óscar de Melhor Argumento Original e ser a
obra mais amada pelo seu realizador, foi um fracasso de bilheteira), é um filme
cheio de angústia e de solidão, uma solidão que Umberto D. apenas alivia nos
passeios com o seu cão Flike, ou nas conversas com a gentil empregada do seu
prédio, de onde está prestes a ser despejado. O ator principal, interpretado por
Carlo Battisti (um ator não-profissional), poderia ter sido perfeitamente
interpretado pelo próprio Vittorio de Sica, embora este estivesse habituado (e
ficado rotulado) aos papéis de nobre, de bon
vivant e de trapaceiro, ele que nasceu em Nápoles, cresceu na pobreza e
começou muito cedo a trabalhar, tal como Umberto D., no funcionalismo público
“cinzento” da Itália fascista.
E
todo o final deste assombroso e impiedoso filme é Chapliniano, no sentido em
que as personagens dos filmes de Charles Chaplin, mesmo à beira dum abismo
existencial e material, conseguem encontrar algo, uma centelha de empatia, de
calor humano (ou animal), que os leva a querer viver, a lutar pela sua dignidade,
a esperar por um novo nascer do sol…
2.
“Per
un pugno di Dollari”, de Sergio Leone, é um filme dominada pela palavra
“tríptico”: sendo o primeiro “movimento” da trilogia temática dos “Dólares”, é
talvez o mais mal-amado, em comparação com as obras-primas “Per qualche Dollaro
in più/Por mais alguns Dólares” (1964) e o icónico “Il Buono, il Brutto, il
Cattivo/O Bom, o Mau e o Vilão” (1966). É também uma das três versões
cinematográficas essenciais, livremente inspiradas no livro “Red Harvest/Ceifa
Vermelha” (1929), de Dashiell Hammett (as outras duas são o grande clássico
“Yôjinbô/Yojimbo, o Invencível” (1961), de Akira Kurosawa e o assombroso
“Miller’s Crossing/História de Gangsters” (1990), dos Irmãos Coen). “Dollari”
põe em confronto um triângulo violento na vila de San Miguel: dois centros de
poder, duas famílias com uma contenda (os Rojos e os Baxters), e o elemento
catalizador da trama, o ‘Homem sem Nome”, interpretado por Clint Eastwood.
E
é um filme “ensombrado” pelos três génios que o moldaram: Leone, Eastwood e
Ennio Morricone.
Muito
haveria a dizer sobre esta obra magnífica e algo subvalorizada, mas sendo este
um ciclo sobre bandas sonoras, porque não falar do grande Morricone?
Aos
90 anos de idade, a sua lucidez e o seu espirito de “Missão”, levam-no a fazer
concertos pelo mundo fora, onde a música da trilogia dos “Dólares” ocupa papel
de relevo, assim como as suas muitas partituras para filmes Giallo, outros
Western Spaghetti, clássicos europeus, clássicos de Hollywood…
Numa
lista inesgotável, destacam-se as bandas sonoras que fez para Leone, além dos
três filmes com o “Homem Sem Nome”. São três composições absolutamente
brilhantes e intemporais: “C'era una volta il West/Aconteceu no Oeste” (1968),
“Giù la Testa/Aguenta-te, Canalha” (1971) e talvez a mais bela de todas (e uma
das mais belas da história do cinema), “Once Upon a Time in America/Era uma Vez
na América” (1984).
Em
“Per un pugno di Dollari”, o assobio icónico e a guitarra dedilhada suavemente
por Alessandro Alessandroni, as flautas distintas e cortantes e o coro
masculino de ‘Titoli”, o tema inicial/leitmotiv
do filme, transportam-nos imediatamente para as cenas iniciais, e a disrupção
do status quo pela personagem “sem
nome” de Eastwood, ao chegar a San Miguel.
Mas
este filme é um todo orgânico: os cenários e as deslumbrantes paisagens do
deserto de Tabernas, na província espanhola de Almería (onde tantos Western
Spaghettis foram filmados), as interpretações (destacando-se o grande Gian
Maria Volonté, creditado no filme como John Wells), o argumento, a fotografia,
a montagem, a realização magistral de Leone e, por fim, o “cimento” que tudo
junta, a música de um génio, nascido em Roma em 1928, e que neste filme é
creditado como Dan Savio, mas que todo o mundo conhece como “il Maestro”…
3.
“Tinker,
Tailor, Soldier, Spy”, adaptado do grande romance de John Le Carré, um dos seus
melhores livros, a par de “O Fiel Jardineiro” e “O Espião que Saiu do Frio”,
também adaptações cinematográficas essenciais, é um filme cheio de silêncios,
de nuances e de expressões faciais
onde a verdade se oculta, e em que a luta entre mentes brilhantes e seres que
vivem na sombra não decorre abertamente, mas num mundo crepuscular e
traiçoeiro. Estas personagens são os mestres da espionagem de dois blocos
antagonistas: um, o Ocidente, através do taciturno mas eficaz George Smiley; outro, o Leste, essa
Cortina de Ferro que o gélido e impiedoso Karla
representa (neste filme apenas uma voz incorpórea, ainda mais perturbante), o
mágico por detrás da cortina de fumo soviética.
Esta
luta não é uma luta pelo coração e a mente dos povos, nem uma luta ideológica e
económica, nem sequer uma luta com regras e fair play, o “Grande Jogo”, que era
o jogo dos espiões na época de Sherlock Holmes, mas sim uma luta moral.
Por
toda a magistral obra de Le Carré perpassa um sentimento de desconforto, de
dúvida, de incerteza, sobre o papel que ocupamos no mundo, o que está certo e
errado, e quem luta pelo lado “certo”
e “errado”, se na realidade há
diferenças entre ambos, e onde se delimita a “linha na areia”. Smiley, um
funcionário público aparentemente cinzento, mas de uma perspicácia mental digna
de um Hercule Poirot, traça essa linha precisamente na traição, a linguagem dos
espiões ao longo da história, mas que não deixa de considerar como blasfema, na
sua bússola moral (que tem também norteado Le Carré ao longo da sua carreira),
já que é uma traição aos colegas, companheiros e amigos, muito mais grave que a
traição a “Queen and Country”.
Através
de uma teia de intrigas fascinante, de um jogo de sombras envoltas no nevoeiro
da Guerra Fria, vamos conhecendo as personagens fulcrais deste filme: Control, o líder, doente e
aparentemente derrotado, mas que é feito da estirpe que fez os ingleses
sobreviver ao Blitz (assombroso e fantasmático John Hurt), e os possíveis
suspeitos de uma traição imperdoável, a “Toupeira” do título: Toby Esterhase (David Dencik), Roy Bland (Ciarán Hinds), Bill Haydon (Colin Firth), Percy Alleline (Toby Jones) e George Smiley (que Gary Oldman
interpreta de forma fascinante, reprimida, seguindo as exemplares pegadas de
Alec Guiness, que interpretou Smiley na minissérie da BBC dos anos 70).
Smiley,
aparentemente o espião perfeito, imperturbável e analítico, o típico exemplar
da fleuma britânica e da tradição do “civil
service”, um jogador de xadrez que, tal como a sua Némesis Karla, move e
manipula “peças” humanas com a destreza de um Mestre, tem no entanto uma
fraqueza, que conhece, mas que ele próprio não se apercebe ser tão grave (para
um espião), e é essa fraqueza (humanidade?) que o torna cego ao jogo duplo da
“toupeira” à sua frente.
Se
no cinema noir, a chave para descobrir o enredo era o célebre mote “cherchez la femme”, no mundo da
espionagem, dos duplos e triplos agentes, que nos trouxe personagens tão
icónicas como James Bond, Harry Palmer, Jason Bourne, Ethan Hunt e Jack Ryan,
será mais acertado dizer “cherchez le
espion”…
(Folha de Sala, do Cineclube do Porto)
4.
“The
General”, conhecido em Portugal pelo título de “Pamplinas Maquinista”, é um
filme mudo, realizado em 1926 por Buster Keaton e Clyde Bruckman e,
curiosamente, estreado na noite de 31 de dezembro, em duas pequenas salas de
cinema de Tóquio, tendo depois a sua estreia oficial em março de 1927, nos
Estados Unidos, e em fevereiro de 1929, no nosso país (sob o título inicial de
“A Glória de Pamplinas”).
“Pamplinas
Maquinista” é, apesar dos seus quase 100 anos de idade, um filme intemporal,
que continua fascinante e imprevisível, a par de “O Garoto de Charlot”, um dos filmes
mais populares do cinema mudo, e é unanimemente considerado pela crítica como o
melhor filme de Keaton, e um dos apogeus dessa era quase esquecida da 7ª Arte.
Tal
como José Régio, um ardente admirador de Buster Keaton e deste filme, afirmou,
em maio de 1927, no número 4 da revista Presença, o genial ator “é talvez o maior fantasista e o maior
excêntrico dos seus camaradas”, afirmação feita numa comparação com Charles
Chaplin, Harold Lloyd e os outros génios desta época de ouro cinematográfica.
Keaton
foi também admirado e reverenciado por muitos dos seus contemporâneos, tais
como Orson Welles, o autor de “Citizen Kane - O Mundo a seus Pés” (muitas vezes
votado como o melhor filme da história), que considerava precisamente
“Pamplinas Maquinista” como “talvez o
melhor filme alguma vez realizado” e Salvador Dalí, que rotulou os seus
filmes como “pura poesia anti-artística”.
No
entanto, é assombroso que “Pamplinas Maquinista”, uma obra-prima absoluta,
tenha sido o maior fracasso da carreira de Buster Keaton, levando-o a perder a
sua independência artística. Nos anos seguintes, Keaton tornou-se mais uma das
“lendas esquecidas” da velha Hollywood (papel que ele brilhantemente parodiou
no filme “Limelight/As Luzes da Ribalta”, do seu amigo Chaplin, em 1952).
Buster
Keaton foi posteriormente “perdoado” pela Academia das Arte e Ciências, que lhe
atribuiu um Óscar Honorário em 1960, tendo sido depois resgatado pela crítica
francesa da Nouvelle Vague, em meados dos anos 60, sendo um dos favoritos de
Jean-Luc Godard e François Truffaut, tal como o eram os herdeiros espirituais
de Keaton: Jerry Lewis e Jacques Tati.
Mas
já Régio crítico de cinema, no ano do filme, escrevia, a propósito das suas
obras anteriores: “a imaginação é o que
há mais de doido e sôfrego em nós. Buster Keaton, Pamplinas, homem que nunca
ris para que os outros [o] faça[m]”.
“Pamplinas
Maquinista” é, de facto, o culminar de uma obra fílmica genial, tanto em termos
de realização, fotografia e montagem, com uma depuração de estilo extrema, que
se cinge ao essencial, como na utilização dos cenários e das bandas sonoras e,
principalmente, na perfeição absoluta dos seus gags, com um timing
milimétrico e plenos de acrobacias fascinantes, que só têm rival no outro génio
absoluto da época, Chaplin.
Entre
1923 e 1928, a sua produção fílmica inclui 10 longas-metragens, que só muito
tardiamente foram reconhecidas, a par da obra de Charles Chaplin, de Serguei
Eisenstein, de Fritz Lang, de F. W. Murnau, de Carl T. Dreyer e de D. W.
Griffith, como os alicerces do cinema mudo, e que hoje em dia continuam tão
frescas e originais como no dia em que foram projetadas à manivela.
O
filme que iremos hoje ver, de uma autenticidade histórica e de atenção aos
pormenores que ainda hoje impressiona, é baseado num acontecimento real da
Guerra da Secessão Americana, a guerra civil que entre 1861 e 1865 dilacerou os
Estados Unidos, entre um Norte, industrializado, progressista e sem
escravatura, a União; e um Sul, onde os “velhos costumes”, as tradições
sulistas e a independência frente ao estado Federal, mascaravam a ignomínia da
escravatura e da exploração laboral dos negros, o sustentáculo destes estados
do Sul americano, a Confederação.
Curiosamente,
Keaton interpreta uma personagem do lado “errado” dos carris, um Sulista que
resgata uma locomotiva confederada, roubada por soldados da União, e que no
entanto é, como não podia deixar de ser, um arquétipo de todas as personagens
que interpretou, “O Homem que nunca ri”, mas que nos faz rir, com as suas
expressões faciais (ou melhor dizendo, a ausência das mesmas), e a sua
linguagem corporal admirável, que é em si mesma um tratado da arte de fazer
humor, herdeira do “slapstick/paródia”
dos inícios do cinema mudo.
Referindo-se
à sua obra em geral, mas não a este filme em particular, que como já foi
referido, só estrearia em Portugal dois anos depois do artigo da Presença,
Régio, sempre perspicaz, define a obra de Buster Keaton em poucas frases: “os seus cenários entram nele, como ele sai
para os seus cenários, e a resistência da matéria ou o poder dos elementos são
colegas com quem ele brinca, luta, sanha… A sua fantasia vai do burlesco ao
macabro, apanha este mundo e os outros. Cómico? Ele diverte como poucos; mas,
como Charlot ultrapassa o cómico por ser um grande poeta”.
Como
o próprio Keaton referia, numa entrevista dos anos 60, em que com humildade
extrema recusava os epítetos de “génio”, e honrando os seus inícios no mundo do
Vaudeville, a sua ambição foi “sempre
apenas a de fazer rir, de conseguir as gargalhadas”.
Concluo
esta minha breve apresentação, mais uma vez, com as prescientes opiniões de
José Régio, em que o crítico se confessa: “tu
estás mais ou menos a ditar-me estas coisas. Tenho a meu lado a tua máscara
longa e séria – esculpida em madeira?, em pedra?, em osso?, em carne?, por um
Deus excêntrico ou por um artista negro. Essa máscara, não sei se ela é um
processo, uma confissão, ou uma ironia. Mas eu também estou a ser muito sério
quando falo de ti. Não obsto a que me apeteça brincar um pouco…
Falar de Pamplinas, como, sem pintar
as ideias com um pouco de fantasia?”.
(Texto lido no Centro de Artes do Espectáculo de Portalegre, no âmbito do Ciclo “Cinema e José Régio”,
integrado no programa da evocação do cinquentenário da morte de José
Régio, organizado pela Casa Museu José Régio - junho de 2019)
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