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Dentro de alguns meses, o surrealismo terá cem anos. Como
precisou André Breton nas suas Entrevistas
[Entretiens], foi no final de 1922
que o movimento de emancipação do espírito humano mais enraizado na vida
sensível que é possível conceber desde sempre tomou a sua forma – isto dois
anos antes do seu nascimento selado pelo primeiro Manifesto. Entendamo-nos bem: não apelamos à celebração de um
centenário, mas à manutenção e ao reforço de uma exigência.
Hoje, quando a palavra surrealismo, corrompida e muitas
vezes associada ao absurdo, remete, no campo da cultura dominante, para uma
inofensiva imagética fantástica, não é de todo inútil lembrar quais são e
permanecem os fins e os desafios do surrealismo: superar as antinomias
fictícias e mortíferas entre o real e o imaginário, o sonho e o estado de
vigília, a consciência e o inconsciente; mas também restituir todos os privilégios
às paixões felizes, estender e aprofundar os poderes do espírito, libertar a
razão das suas cadeias positivistas e da sua instrumentalização mercantil,
acabar de vez com as alienações ideológicas e religiosas; e, condição suprema,
pôr a Poesia acima de tudo. Tudo isto, claro, tem por consequência a recusa de
qualquer compromisso com o mundo tal como ele se está a suicidar, com a sua
linguagem, os seus serviçais e as suas técnicas.
Ora o mundo de há cem anos e cuja queda revestia então
carácter de urgência – urgência nunca desmentida desde então – perdurou e
intensificou mesmo os seus estragos ao ponto de obscurecer hoje o horizonte
histórico com a massa fuliginosa dos seus excrementos. Ele transformou-se em
sentido diametralmente oposto a todas as esperanças que haviam alimentado a
tradição revolucionária: o reino da liberdade, da igualdade, e da justiça, a
abolição da exploração e da dominação, o fim da maldição do trabalho, o acesso
de todos ao luxo e à abundância emancipada da prática mercantil. Quanto à vida,
temos de reconhecer que ela mudou, mas num sentido ainda mais calamitoso:
perdeu toda a consistência, toda a coerência, todo o valor; colonizada nos seus
interstícios mínimos pela ditadura dos écrans, ela resolve-se em imagens cada
vez mais pobres, cuja sórdida pobreza esteriliza em fogo brando o imaginário.
Eis porque o apelo à deserção que o surrealismo lançou
desde o seu nascimento é mais do que nunca actual: deserção prática e
intelectual, física e social, individual e colectiva. Daqui se tira que nenhuma
concessão deve ser feita ao gosto estragado da nossa época, às suas inclinações
suspeitas, às suas reflexões estruturantes. E diga-se aqui de uma vez por todas
que as diversas criações surrealistas, apresentem-se elas sobre a forma de poemas,
de narrativas de sonhos, de desenhos, de pinturas, de collages, de montagens,
de esculturas, de fotografias ou de filmes não têm senão a aparência da obra de
arte: elas são antes e depois de tudo a cristalização duma subversão permanente
da sensibilidade, os testemunhos sensíveis dum novo modo de usar o mundo.
O perigo que ameaça um movimento que mantém vivas as suas
exigências durante um tão longo período é menos o esquecimento para onde o
querem relegar as várias modas, artísticas e literárias, de uma época decadente
que o reconhecimento tardio da sua consistência e da sua perseverança. Mais
enfraquecedor ainda que a apropriação dos seus processos próprios pelos
funcionários da arte contemporânea, é a existência aqui e ali de uma tendência
que leva à fabricação dum surrealismo sem consistência, em que muitos artistas,
por força duma imagética vagamente onírica, se proclamam unanimemente
surrealistas sem medirem o que esta denominação implica, e como se apenas
pertencessem a uma vulgar escola estética.
Muitos destes surrealistas de aviário não hesitam em
entregar-se à tecnologia informática. Se é aceitável que a priori qualquer meio
técnico pode ser desviado e posto ao serviço da imaginação, no caso do digital
somos obrigados a constatar que na esmagadora maioria dos casos o técnico se
sobrepõe ao criador. Resulta que as obrinhas produzidas por computador são
insípidas, aborrecedoras e parecem-se todas, delas se destacando uma suspeita
consanguinidade, inoculada pela desesperante entropia que os algoritmos emanam.
Ao invés, a obra surrealista
autêntica, apelando sempre à surpresa e ao encantamento, é portadora de utopia,
grávida de uma promessa emancipadora que a legitima e a supera. Esta promessa,
nenhuma máquina e nenhuma informática a podem garantir, já que não têm nem
corpo nem nervos para sentir, percepcionar, emocionar-se ou experimentar
desejo. Não é com certeza com a inteligência artificial que construiremos uma
utopia à escala humana. Com a bênção das redes sociais, mais um passo e caímos
na armadilha do entretenimento. Deste ponto de vista, e para esclarecer
qualquer equívoco, lembre-se que o surrealismo nunca se poderá perder no campo
minado da animação pedagógica nem se afundar na confusão das oficinas de
escrita criativa e de collage, e outros idênticos concursos de poesia. Tais
sessões de criação supostamente livres estão à partida viciadas pela
instituição que os enquadra e não são senão miseráveis sucedâneos da
transformação das florestas selvagens do maravilhoso em pobres jardins municipais.
Se o surrealismo nunca foi uma
escola onde se pudesse entrar, uma academia para a qual se pudesse ser eleito,
e um espectáculo onde se pudesse desfilar, também não é um clube internacional
disposto a fornecer emoções e debates, cujos membros se recrutassem no Facebook
ou promovessem as suas produções sobre Instragram. Conscientes de que não há
meios neutros, os surrealistas desprezam com altivez as “redes sociais”, ou
usam-nas com prudência extrema, preferindo-lhes a poesia imediata das redes
“antisociais”, aquelas que ligam espontaneamente na rua, na viragem de um
bosque, no favorecimento de uma greve que escapa a qualquer controle
burocrático, no balcão de um café, numa tempestade de neve. Sabemos bem que os
encontros decisivos se fazem por caminhos que atravessam a verdadeira vida,
caminhos abertos às maravilhas do acaso objectivo e que não podem nunca ser
premeditados por uma informatização na qual a noção mesmo de “amigo” aparece
esvaziada do seu sentido.
Se hoje como nas suas origens, o
surrealismo é uma comunidade subversiva permanentemente hostil ao Estado, ao
capital e a todas as religiões, ele acrescenta agora à lista dos seus inimigos
o mundo digitalizado dos écrans, que introduz cada vez mais distância física
entre os seres humanos, desrealizando a vida sensível. Modo de sentir, de ver e
de sonhar que se torna forma de ser, o surrealismo é uma procura teimosa e
carnal de conhecimento, de liberdade e de amor. Uma vez que se passou por ele,
ou uma vez que o surrealismo passou por nós, não podemos mais conceber nem
perceber o mundo a não ser segundo as linhas de fuga que ele oferece às nossas
errâncias e segundo os hieróglifos de encantamento que ele coloca na fronte das
coisas ao mesmo tempo que nos propõe uma chave de interpretação. É nesta experiência
do dia a dia, e não em qualquer reconhecimento mediático falacioso, que ele, o
surrealismo, encontra a sua marca própria e continua, um século depois do seu
nascimento, a aferir a validade da sua acção.
Grupo
Surrealista de Paris,
16 de Janeiro de 2022
Élise Aru, Michèle Bachelet, Anny
Bonnin-Zimbacca, Massimo Borghese, Claude-Lucien Cauët, Sylwia Chrostowska,
Hervé Delabarre, Alfredo Fernandes, Joël Gayraud, Régis Gayraud, Guy Girard,
Michael Löwy, Pierre-André Sauvageot, Bertrand Schmitt, Sylvain Tanquerel,
Virginia Tentindo.
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