terça-feira, 22 de março de 2022

Comunicado do Grupo Surrealista de Paris

 


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Dentro de alguns meses, o surrealismo terá cem anos. Como precisou André Breton nas suas Entrevistas [Entretiens], foi no final de 1922 que o movimento de emancipação do espírito humano mais enraizado na vida sensível que é possível conceber desde sempre tomou a sua forma – isto dois anos antes do seu nascimento selado pelo primeiro Manifesto. Entendamo-nos bem: não apelamos à celebração de um centenário, mas à manutenção e ao reforço de uma exigência.

Hoje, quando a palavra surrealismo, corrompida e muitas vezes associada ao absurdo, remete, no campo da cultura dominante, para uma inofensiva imagética fantástica, não é de todo inútil lembrar quais são e permanecem os fins e os desafios do surrealismo: superar as antinomias fictícias e mortíferas entre o real e o imaginário, o sonho e o estado de vigília, a consciência e o inconsciente; mas também restituir todos os privilégios às paixões felizes, estender e aprofundar os poderes do espírito, libertar a razão das suas cadeias positivistas e da sua instrumentalização mercantil, acabar de vez com as alienações ideológicas e religiosas; e, condição suprema, pôr a Poesia acima de tudo. Tudo isto, claro, tem por consequência a recusa de qualquer compromisso com o mundo tal como ele se está a suicidar, com a sua linguagem, os seus serviçais e as suas técnicas.

Ora o mundo de há cem anos e cuja queda revestia então carácter de urgência – urgência nunca desmentida desde então – perdurou e intensificou mesmo os seus estragos ao ponto de obscurecer hoje o horizonte histórico com a massa fuliginosa dos seus excrementos. Ele transformou-se em sentido diametralmente oposto a todas as esperanças que haviam alimentado a tradição revolucionária: o reino da liberdade, da igualdade, e da justiça, a abolição da exploração e da dominação, o fim da maldição do trabalho, o acesso de todos ao luxo e à abundância emancipada da prática mercantil. Quanto à vida, temos de reconhecer que ela mudou, mas num sentido ainda mais calamitoso: perdeu toda a consistência, toda a coerência, todo o valor; colonizada nos seus interstícios mínimos pela ditadura dos écrans, ela resolve-se em imagens cada vez mais pobres, cuja sórdida pobreza esteriliza em fogo brando o imaginário.

Eis porque o apelo à deserção que o surrealismo lançou desde o seu nascimento é mais do que nunca actual: deserção prática e intelectual, física e social, individual e colectiva. Daqui se tira que nenhuma concessão deve ser feita ao gosto estragado da nossa época, às suas inclinações suspeitas, às suas reflexões estruturantes. E diga-se aqui de uma vez por todas que as diversas criações surrealistas, apresentem-se elas sobre a forma de poemas, de narrativas de sonhos, de desenhos, de pinturas, de collages, de montagens, de esculturas, de fotografias ou de filmes não têm senão a aparência da obra de arte: elas são antes e depois de tudo a cristalização duma subversão permanente da sensibilidade, os testemunhos sensíveis dum novo modo de usar o mundo.

O perigo que ameaça um movimento que mantém vivas as suas exigências durante um tão longo período é menos o esquecimento para onde o querem relegar as várias modas, artísticas e literárias, de uma época decadente que o reconhecimento tardio da sua consistência e da sua perseverança. Mais enfraquecedor ainda que a apropriação dos seus processos próprios pelos funcionários da arte contemporânea, é a existência aqui e ali de uma tendência que leva à fabricação dum surrealismo sem consistência, em que muitos artistas, por força duma imagética vagamente onírica, se proclamam unanimemente surrealistas sem medirem o que esta denominação implica, e como se apenas pertencessem a uma vulgar escola estética.

Muitos destes surrealistas de aviário não hesitam em entregar-se à tecnologia informática. Se é aceitável que a priori qualquer meio técnico pode ser desviado e posto ao serviço da imaginação, no caso do digital somos obrigados a constatar que na esmagadora maioria dos casos o técnico se sobrepõe ao criador. Resulta que as obrinhas produzidas por computador são insípidas, aborrecedoras e parecem-se todas, delas se destacando uma suspeita consanguinidade, inoculada pela desesperante entropia que os algoritmos emanam.

Ao invés, a obra surrealista autêntica, apelando sempre à surpresa e ao encantamento, é portadora de utopia, grávida de uma promessa emancipadora que a legitima e a supera. Esta promessa, nenhuma máquina e nenhuma informática a podem garantir, já que não têm nem corpo nem nervos para sentir, percepcionar, emocionar-se ou experimentar desejo. Não é com certeza com a inteligência artificial que construiremos uma utopia à escala humana. Com a bênção das redes sociais, mais um passo e caímos na armadilha do entretenimento. Deste ponto de vista, e para esclarecer qualquer equívoco, lembre-se que o surrealismo nunca se poderá perder no campo minado da animação pedagógica nem se afundar na confusão das oficinas de escrita criativa e de collage, e outros idênticos concursos de poesia. Tais sessões de criação supostamente livres estão à partida viciadas pela instituição que os enquadra e não são senão miseráveis sucedâneos da transformação das florestas selvagens do maravilhoso em pobres jardins municipais.

Se o surrealismo nunca foi uma escola onde se pudesse entrar, uma academia para a qual se pudesse ser eleito, e um espectáculo onde se pudesse desfilar, também não é um clube internacional disposto a fornecer emoções e debates, cujos membros se recrutassem no Facebook ou promovessem as suas produções sobre Instragram. Conscientes de que não há meios neutros, os surrealistas desprezam com altivez as “redes sociais”, ou usam-nas com prudência extrema, preferindo-lhes a poesia imediata das redes “antisociais”, aquelas que ligam espontaneamente na rua, na viragem de um bosque, no favorecimento de uma greve que escapa a qualquer controle burocrático, no balcão de um café, numa tempestade de neve. Sabemos bem que os encontros decisivos se fazem por caminhos que atravessam a verdadeira vida, caminhos abertos às maravilhas do acaso objectivo e que não podem nunca ser premeditados por uma informatização na qual a noção mesmo de “amigo” aparece esvaziada do seu sentido.

Se hoje como nas suas origens, o surrealismo é uma comunidade subversiva permanentemente hostil ao Estado, ao capital e a todas as religiões, ele acrescenta agora à lista dos seus inimigos o mundo digitalizado dos écrans, que introduz cada vez mais distância física entre os seres humanos, desrealizando a vida sensível. Modo de sentir, de ver e de sonhar que se torna forma de ser, o surrealismo é uma procura teimosa e carnal de conhecimento, de liberdade e de amor. Uma vez que se passou por ele, ou uma vez que o surrealismo passou por nós, não podemos mais conceber nem perceber o mundo a não ser segundo as linhas de fuga que ele oferece às nossas errâncias e segundo os hieróglifos de encantamento que ele coloca na fronte das coisas ao mesmo tempo que nos propõe uma chave de interpretação. É nesta experiência do dia a dia, e não em qualquer reconhecimento mediático falacioso, que ele, o surrealismo, encontra a sua marca própria e continua, um século depois do seu nascimento, a aferir a validade da sua acção.

 

Grupo Surrealista de Paris,

16 de Janeiro de 2022

 

Élise Aru, Michèle Bachelet, Anny Bonnin-Zimbacca, Massimo Borghese, Claude-Lucien Cauët, Sylwia Chrostowska, Hervé Delabarre, Alfredo Fernandes, Joël Gayraud, Régis Gayraud, Guy Girard, Michael Löwy, Pierre-André Sauvageot, Bertrand Schmitt, Sylvain Tanquerel, Virginia Tentindo.


(Tradução de António Cândido Franco)

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