quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

José do Carmo Francisco, «Alguns poemas de Escrita e o seu contrário» de Nicolau Saião

 



  Antes de ter saído na Amazon (Brasil) a edição completa com mais de 200 págs., o poemário aqui aludido saiu em Portugal sob a chancela da “Apenas Livros” numa edição parcial. Eis o que dele disse, na hora, José do Carmo Francisco.

 

Nicolau Saião (n.1946) retoma neste volume de 55 páginas o seu trabalho poético premiado pela Associação Portuguesa de Escritores – o original que deu origem ao livro «Os objectos inquietantes» de 1992. Já Carlos de Oliveira em «O aprendiz de feiticeiro» adverte: «o meu ponto de partida, como romancista e poeta, é a realidade que me cerca.» É esse «quotidiano» que o prefácio de Jules Morot convoca quando refere uma espécie de «escala» antes da chegada da Poesia: o inesperado, o cansaço, o desapego e, de repente, a poesia. Os poemas deste livro oscilam entre a raiva e a ternura mas nunca se colocam na indiferença. O poeta inscreve-se no poema como na página 12: «Atravesso os bairros e sou um homem só entre as casas / onde patrões e criados vão vivendo o seu dia.» mas a sua viagem pode passar pela Nazaré (Vila e Praia): «A solidão da praia do Norte / o assombro da luz / que alimenta a penumbra.» Pelo meio da viagem o fascínio das Artes Visuais. Há poemas para Mayte Bayon, Giorgio Morandi, Carbajal ou Hundertwasser: «Alguém que não está nesta paisagem  / que nem sequer conhece os seus contornos / que é linha isso sim mas não por dentro / que é pele mas só na outra geometria / do que o pincel procura atormentado / E às vezes nós olhamos um reflexo / de sol que cai onde as figuras existiram / e ilumina o seu perfeito contrário.»
A poesia faz-se com palavras e há palavras inquietantes como no poema da página 22: «E notou ainda que algumas das palavras mais inquietantes, mais significativas, é por bê que começam? Beemoth, bendito, Babilónia, bondade, bifronte… Já tinha reparado?»   Fiquemos pela escolha de um poema como convite à leitura de todos os outros: «RECEITA PARA UM NATAL (à Flora) Primeiro, ficar parado / durante um momento, de pé / ou sentado numa sala ou mesmo / noutra dependência do lar. / Depois preparar / os olhos, as mãos, a memória / e outros utensílios indispensáveis. A seguir / começar a reunir / coisas, por ordem bem do interior / do coração e do pensamento: / a ternura dos avós, uma mancheia; / rostos de primos distantes, uma pitada; / sons de sinos ao longe, quanto baste; a recordação duma rua, uns bocadinhos / um velho livro de quadradinhos / duas angústias mais tardias, alguns restos de azevias, / a lembrança de vizinhos ainda vivos mas ausentes / e de uns já passados. /Quatro beijos de seres amados ou de parentes / Um cachecol de boa lã cinzenta aos quadrados / e um pouco de azeite puro e fresco / igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso. / Mexe-se bem, leva-se ao forno / e fica pronto e saboroso / – mesmo que, nostálgica, se solte uma pequena lágrima.»


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(Editora: Apenas Livros, Revisão: Luís Filipe Coelho, Design da capa: Maria Tomás, Direcção da colecção: Maria Estela Guedes, Arte final: Fernanda Frazão)


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