Uma crónica respigada de Adelto Gonçalves
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Como
já tive ensejo de o afirmar publicamente em textos no Brasil e presenças orais,
nomeadamente em Espanha, o livro a que o texto seguinte de Adelto Gonçalves faz
referência – e aqui lhe deixamos a nossa vénia pela reprodução – é um dos mais
satisfatórios dados a lume no ano em que foi publicado.
Reafirmo-o hoje tal como o disse naquela altura (e por isso o prefaciei,
aliás honrado pelo convite que me foi dirigido pela Autora). E creio que faz
sentido epigrafá-lo agora, passada que vai uma dúzia de anos sobre a sua vinda “à
luz das montras” (sítio que aos poemas cabe e não ao escuro das gavetas, como aceradamente
referiu uma frase de José do Carmo Francisco).
Maria
Estela Guedes (2009). Chão de PapeL. Prefácio de Nicolau Saião. Lisboa: Apenas
Livros Lda.
1.
Este é um livro com cheiro de África. E é uma África vista com isenção por quem
viveu na Guiné-Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo que coincidiu
também com o de sua formação pessoal. E ninguém esquece os anos de sua
formação. Muito menos um poeta. Por isso, Maria Estela Guedes, nascida em
Britiande/Lamego em 1947, reuniu os seus poemas evocativos de uma Guiné-Bissau
que já não existe neste livro, Chão de Papel, que, como observa Nicolau Saião
na apresentação, traz uma mensagem lucidamente antilírica – “se entendermos
como lirismo essa escrita impressionista (um pouco defasada da realidade mais
legítima e soberana – que por aí vai dando cobertura a um romantismo de
pacotilha, ultra-sentimental e, por isso mesmo, refalso e, no fundo, claramente
pedante”. Essa evocação começa pela imagem que guarda dessa Guiné-Bissau,
“um mapa de ilhas, um arquipélago de lembranças”, especialmente da Fonte Vaz
Teixeira, àquela época “oculta na floresta, em ruínas”, que hoje,
provavelmente, não mais existe, “como tantas outras coisas que os anos de independência
fizeram desaparecer”, como diz Saião, que também lá andou por 27 meses ao todo,
à época em que havia a “província ultramarina da Guiné” e os jovens portugueses
de então eram obrigados a defender, às vezes à custa da própria vida ou de
abalos ao próprio corpo, o sonho de grandeza salazarista que só existia na
retórica dos discursos oficiais. O olhar feminino de Maria Estela capta na
memória lugares e momentos que o olhar de um poeta homem nunca seria capaz,
como se constata neste poema intitulado “A Praça”:
Ias
à Praça – relíquia verbal de antigo nome
Da
Praça de S. José de Bissau -
Com
as casas de sobrado e varanda
De
madeira pintada de azul-mantenhas?
-
Cuma di corpo: E bo papé? E bo mamé?
Tens
um objetivo em mente, o Mercado Municipal,
E
um local preciso aonde vais em sonhos.
Que
queres tu comprar? Sabes que é coisa
De
comer, mas o quê? A vagem branca
E
azeda de tamarindo? Castanha de caju?
Volta
e meia sonhas com isso
Mas
ainda não descobriste o que vais tu
Comprar
à Praça com as suas casas de sobrado
E
varanda de madeira pintada de azul-mantenhas.
Por
baixo as lojas de varejo
-
Ali o estúdio fotográfico do pai do Erasmo,
Além
a Casa Pintozinho
-
A velha escola onde estudaste
Encostada a um majestoso mangueiro
E na esquina, instalada no chão com fogareiro
A
gorda Nha Tilda torrava mancarra
Que
comíamos ainda quente
A
cheirar a vida airada e a gente de barriga cheia.
2. Como se vê, até reconstituição da fala
crioula se tem neste poema que, de tão denso e concatenado, teve de ser
reproduzido aqui de forma integral. Essa evocação sente-se também em
“Cesarianas e casuarinas” em que Maria Estela diz:
Passeios
nas tardes de domingo
Pelo
Jardim de Teixeira Pinto
Empurrando
o carrinho com o bebé de D. Otília
Nascido
entre dores e cortes de cesariana...
A
estátua do militar no alto do outeiro
A
dominar toda a cidade de Bissau
Mira
ao longe as evoluções
Dos
milicianos e da Mocidade Portuguesa
Diante
do palácio do governador e do obelisco
No
centro da Praça do Império,
Coroada
com a legenda
“Monumento
aos Heróis da Independência”.
Ao contrário do que se pode imaginar, estes
versos de Maria Estela não evocam o colonialismo com saudade nem procuram
mostrar que os tempos da presença portuguesa na África teriam sido melhores do
que os vividos hoje. Até porque tiranos são tiranos, tenham a pele clara ou
escura, como bem sabem os guineenses. E mesmo aqueles portugas, os “tugas” que
lá viviam, eram vítimas de um mundo mal construído e distribuído que não lhes
deixava outra opção que não fosse emigrar – até porque para que meia-dúzia de
famílias pudessem se refestelar no bem arrumado jardim à beira-mar plantado, a
choldra tinha de ser praticamente expulsa para os quatro cantos do mundo, ainda
que à custa de desertificação do país. Havia sido assim desde os tempos da
monarquia.
3.
A tragédia da Guiné-Bissau é que, depois que os tiranetes brancos foram embora,
ficaram os tiranetes negros e a mesma opressão de uma classe sobre a outra. A
sorte é que, como diz Maria Estela, “os tiranetes duram pouco/ e os grandes
tiranos, por muitos quarenta anos/ que governem, também pouco duram”, ao evocar
no poema “A Kabi Nafantchamna, no dia da sua morte”, a manhã de 2 de março de
2009 em que os noticiários informaram sobre o levante que resultou no
assassinato do presidente Nino Vieira (1939-2009):
(...) Conheces o ditado “Quem com ferro
mata...?”
Conheces,
Nino? Ainda ninguém disse nada
Mas
podes crer que
Mesmo
sem despacho
Alguém
te despachou para o tribunal do Irã.
Bárbaros,
violentos, egotistas.
Iguais
em tudo na guerra
E
iguais em tudo na paz
Aos
mais bárbaros, violentos e egotistas
Americanos,
asiáticos e europeus.
Em “O cais do Pidjiguiti”, Maria Estela, à
semelhança de Camilo Pessanha (1867- 1926) em “À noite, no Pego-Dragão”, uma
das suas traduções em forma livre das “Oito Elegias Chinesas”, diz num poema
perpassado de efeitos sinestésicos: “Não quero partir sem voltar ao Ku Pelon /
A ouvir as serenatas do meu amigo”. E recorda que no Pidjiguiti dezenas de
trabalhadores foram abatidos, vítimas indefesas de um massacre, ao tempo do
colonialismo, para observar, em seguida, como se fizesse um mea culpa em nome
dos opressores de então, ainda que nada
tivesse a ver com aquilo e fosse apenas uma adolescente de 12 anos de idade,
talvez com a ingênua ideia de que, se os colonialistas tivessem oferecido
letras, ou seja, educação, em vez de opressão, talvez o caminho tivesse sido
outro, de entendimento, embora se saiba que o colonialismo, como o escorpião,
jamais renunciaria a sua natureza:
(...)
Assim depois o crime repetido insaciavelmente
Por
negros e brancos
E
mulatos igualmente
Até
o dia de ontem
Em
que também foi assassinado
Nino
Vieira, o presidente.
Sem
grandes diferenças, na morte
Todos
iguais
Sem
precisão de invocar raças
Nem
a paleta das cores (...).
Na evocação, Maria Estela lembra que o tempo
do cais do Pidjiguiti vai longe, 3 de agosto de 1959, dia em que começou a
guerra.
(...)
Nunca mais seríeis felizes como antes.
Não
era nosso o Chão de Papel
Mas
podia ter sido
Se
em vez de chumbo, ódio, vinganças e cana
Tivéssemos
semeado letras na terra.
Versos como esses refletem o caos emocional
que sofre todo o desterrado. E nesse caso Maria Estela é também uma desterrada,
pois, ao voltar a Portugal, nas noites de sua solidão, passou a perguntar pelos
amigos e familiares que haviam ficado na terra africana que a vira crescer,
pelos desaparecidos, sem conseguir banir da memória o drama vivido, o drama da
ruptura com um mundo que desapareceu. Para aqueles que desconhecem a
Guiné-Bissau, é preciso que se diga que o título Chão de Papel aponta para a
pátria-chica do grupo étnico desta região guineense: a tribo dos Papéis, cerca
de 40 mil naquela altura, como explica o alentejano Saião, bom conhecedor da
região. Trata-se de um trocadilho, um simbolismo feliz, acrescenta Saião.
4.
Editora da publicação eletrônica Triplo V (www.triplov.com), Maria Estela
Guedes tem uma vasta obra publicada de livros de e sobre poesia em que se
destacam Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores, 1979), SO2
(Lisboa, Guimarães Editores, 1980), Eco, Pedras Rolantes (Lisboa, Ler Editora,
1983), Mário de Sá Carneiro (Lisboa, Editorial Presença, 1985), À Sombra do
Orpheu (Lisboa, Guimarães Editores, 1990), A_maar_gato (Lisboa, Editorial
Minerva, 2005), Lápis de carvão (Lisboa, Apenas Livros, 2005), Ofício das
trevas (teatro (Lisboa, Apenas Livros, 2006), A Boba (monólogo em três insônias
e um despertador), com prefácio de Eugénia Vasques (Lisboa, Apenas Livros,
2006), À la Carbonara, em co-autoria com J.C.Cabanel & Silvio Luis Benítez
Lopes (Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007) e Poesia na Óptica da Óptica (Lisboa,
Apenas Livros Lda., 2008).
Adelto Gonçalves
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