quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A doze anos da saída de "Chão de papel"

 

Uma crónica respigada de Adelto Gonçalves


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   Como já tive ensejo de o afirmar publicamente em textos no Brasil e presenças orais, nomeadamente em Espanha, o livro a que o texto seguinte de Adelto Gonçalves faz referência – e aqui lhe deixamos a nossa vénia pela reprodução – é um dos mais satisfatórios dados a lume no ano em que foi publicado.

   Reafirmo-o hoje tal como o disse naquela altura (e por isso o prefaciei, aliás honrado pelo convite que me foi dirigido pela Autora). E creio que faz sentido epigrafá-lo agora, passada que vai uma dúzia de anos sobre a sua vinda “à luz das montras” (sítio que aos poemas cabe e não ao escuro das gavetas, como aceradamente referiu uma frase de José do Carmo Francisco).

Maria Estela Guedes (2009). Chão de PapeL. Prefácio de Nicolau Saião. Lisboa: Apenas Livros Lda.

1. Este é um livro com cheiro de África. E é uma África vista com isenção por quem viveu na Guiné-Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo que coincidiu também com o de sua formação pessoal. E ninguém esquece os anos de sua formação. Muito menos um poeta. Por isso, Maria Estela Guedes, nascida em Britiande/Lamego em 1947, reuniu os seus poemas evocativos de uma Guiné-Bissau que já não existe neste livro, Chão de Papel, que, como observa Nicolau Saião na apresentação, traz uma mensagem lucidamente antilírica – “se entendermos como lirismo essa escrita impressionista (um pouco defasada da realidade mais legítima e soberana – que por aí vai dando cobertura a um romantismo de pacotilha, ultra-sentimental e, por isso mesmo, refalso e, no fundo, claramente pedante”. Essa evocação começa pela imagem que guarda dessa Guiné-Bissau, “um mapa de ilhas, um arquipélago de lembranças”, especialmente da Fonte Vaz Teixeira, àquela época “oculta na floresta, em ruínas”, que hoje, provavelmente, não mais existe, “como tantas outras coisas que os anos de independência fizeram desaparecer”, como diz Saião, que também lá andou por 27 meses ao todo, à época em que havia a “província ultramarina da Guiné” e os jovens portugueses de então eram obrigados a defender, às vezes à custa da própria vida ou de abalos ao próprio corpo, o sonho de grandeza salazarista que só existia na retórica dos discursos oficiais. O olhar feminino de Maria Estela capta na memória lugares e momentos que o olhar de um poeta homem nunca seria capaz, como se constata neste poema intitulado “A Praça”:

 

Ias à Praça – relíquia verbal de antigo nome

Da Praça de S. José de Bissau -

Com as casas de sobrado e varanda

De madeira pintada de azul-mantenhas?

- Cuma di corpo: E bo papé? E bo mamé?

Tens um objetivo em mente, o Mercado Municipal,

E um local preciso aonde vais em sonhos.

Que queres tu comprar? Sabes que é coisa

De comer, mas o quê? A vagem branca

E azeda de tamarindo? Castanha de caju?

Volta e meia sonhas com isso

Mas ainda não descobriste o que vais tu

Comprar à Praça com as suas casas de sobrado

E varanda de madeira pintada de azul-mantenhas.

Por baixo as lojas de varejo

- Ali o estúdio fotográfico do pai do Erasmo,

Além a Casa Pintozinho

- A velha escola onde estudaste

 Encostada a um majestoso mangueiro

 E na esquina, instalada no chão com fogareiro

A gorda Nha Tilda torrava mancarra

Que comíamos ainda quente

A cheirar a vida airada e a gente de barriga cheia.

 

 2. Como se vê, até reconstituição da fala crioula se tem neste poema que, de tão denso e concatenado, teve de ser reproduzido aqui de forma integral. Essa evocação sente-se também em “Cesarianas e casuarinas” em que Maria Estela diz:

Passeios nas tardes de domingo

Pelo Jardim de Teixeira Pinto

Empurrando o carrinho com o bebé de D. Otília

Nascido entre dores e cortes de cesariana...

A estátua do militar no alto do outeiro

A dominar toda a cidade de Bissau

Mira ao longe as evoluções

Dos milicianos e da Mocidade Portuguesa

Diante do palácio do governador e do obelisco

No centro da Praça do Império,

Coroada com a legenda

“Monumento aos Heróis da Independência”.

 

   Ao contrário do que se pode imaginar, estes versos de Maria Estela não evocam o colonialismo com saudade nem procuram mostrar que os tempos da presença portuguesa na África teriam sido melhores do que os vividos hoje. Até porque tiranos são tiranos, tenham a pele clara ou escura, como bem sabem os guineenses. E mesmo aqueles portugas, os “tugas” que lá viviam, eram vítimas de um mundo mal construído e distribuído que não lhes deixava outra opção que não fosse emigrar – até porque para que meia-dúzia de famílias pudessem se refestelar no bem arrumado jardim à beira-mar plantado, a choldra tinha de ser praticamente expulsa para os quatro cantos do mundo, ainda que à custa de desertificação do país. Havia sido assim desde os tempos da monarquia.

3. A tragédia da Guiné-Bissau é que, depois que os tiranetes brancos foram embora, ficaram os tiranetes negros e a mesma opressão de uma classe sobre a outra. A sorte é que, como diz Maria Estela, “os tiranetes duram pouco/ e os grandes tiranos, por muitos quarenta anos/ que governem, também pouco duram”, ao evocar no poema “A Kabi Nafantchamna, no dia da sua morte”, a manhã de 2 de março de 2009 em que os noticiários informaram sobre o levante que resultou no assassinato do presidente Nino Vieira (1939-2009):

 (...) Conheces o ditado “Quem com ferro mata...?”

Conheces, Nino? Ainda ninguém disse nada

Mas podes crer que

Mesmo sem despacho

Alguém te despachou para o tribunal do Irã.

Bárbaros, violentos, egotistas.

Iguais em tudo na guerra

E iguais em tudo na paz

Aos mais bárbaros, violentos e egotistas

Americanos, asiáticos e europeus.

 

   Em “O cais do Pidjiguiti”, Maria Estela, à semelhança de Camilo Pessanha (1867- 1926) em “À noite, no Pego-Dragão”, uma das suas traduções em forma livre das “Oito Elegias Chinesas”, diz num poema perpassado de efeitos sinestésicos: “Não quero partir sem voltar ao Ku Pelon / A ouvir as serenatas do meu amigo”. E recorda que no Pidjiguiti dezenas de trabalhadores foram abatidos, vítimas indefesas de um massacre, ao tempo do colonialismo, para observar, em seguida, como se fizesse um mea culpa em nome dos  opressores de então, ainda que nada tivesse a ver com aquilo e fosse apenas uma adolescente de 12 anos de idade, talvez com a ingênua ideia de que, se os colonialistas tivessem oferecido letras, ou seja, educação, em vez de opressão, talvez o caminho tivesse sido outro, de entendimento, embora se saiba que o colonialismo, como o escorpião, jamais renunciaria a sua natureza:

(...) Assim depois o crime repetido insaciavelmente

Por negros e brancos

E mulatos igualmente

Até o dia de ontem

Em que também foi assassinado

Nino Vieira, o presidente.

Sem grandes diferenças, na morte

Todos iguais

Sem precisão de invocar raças

Nem a paleta das cores (...).

 

   Na evocação, Maria Estela lembra que o tempo do cais do Pidjiguiti vai longe, 3 de agosto de 1959, dia em que começou a guerra.

(...) Nunca mais seríeis felizes como antes.

Não era nosso o Chão de Papel

Mas podia ter sido

Se em vez de chumbo, ódio, vinganças e cana

Tivéssemos semeado letras na terra.

 

   Versos como esses refletem o caos emocional que sofre todo o desterrado. E nesse caso Maria Estela é também uma desterrada, pois, ao voltar a Portugal, nas noites de sua solidão, passou a perguntar pelos amigos e familiares que haviam ficado na terra africana que a vira crescer, pelos desaparecidos, sem conseguir banir da memória o drama vivido, o drama da ruptura com um mundo que desapareceu. Para aqueles que desconhecem a Guiné-Bissau, é preciso que se diga que o título Chão de Papel aponta para a pátria-chica do grupo étnico desta região guineense: a tribo dos Papéis, cerca de 40 mil naquela altura, como explica o alentejano Saião, bom conhecedor da região. Trata-se de um trocadilho, um simbolismo feliz, acrescenta Saião.

4. Editora da publicação eletrônica Triplo V (www.triplov.com), Maria Estela Guedes tem uma vasta obra publicada de livros de e sobre poesia em que se destacam Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa, Moraes Editores, 1979), SO2 (Lisboa, Guimarães Editores, 1980), Eco, Pedras Rolantes (Lisboa, Ler Editora, 1983), Mário de Sá Carneiro (Lisboa, Editorial Presença, 1985), À Sombra do Orpheu (Lisboa, Guimarães Editores, 1990), A_maar_gato (Lisboa, Editorial Minerva, 2005), Lápis de carvão (Lisboa, Apenas Livros, 2005), Ofício das trevas (teatro (Lisboa, Apenas Livros, 2006), A Boba (monólogo em três insônias e um despertador), com prefácio de Eugénia Vasques (Lisboa, Apenas Livros, 2006), À la Carbonara, em co-autoria com J.C.Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopes (Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007) e Poesia na Óptica da Óptica (Lisboa, Apenas Livros Lda., 2008).

Adelto Gonçalves


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