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Há na Literatura Policial um tema que é o
clássico dos clássicos: o quarto fechado onde algo de inusitado se passou.
Dentro, um morto. Aparentemente, sem assassino. Inúmeras variações, mas um só
dado exacto: a interrogação. De que maneira se oficiou? Interrogação que pouco
a pouco se vai construindo/desconstruindo à medida que a novela se desenvolve e
progride. Objecto sem construtor, criatura sem criador? Digamos: como uma
fotografia sem máquina ou como máquina sem fotógrafo? Aparentemente, sim. E, no
entanto, a nossa razão e o sentido da leitura (do jogo) dizem-nos que não pode
ter sido assim. Que tudo é pois simulação – como nos retratos. E há outro corpo
e outra máquina: o leitor e o livro. Duas máquinas, dois quartos, dois corpos,
etc. Jogo de espelhos que forjamos ao ler e assumimos ao começar a ler (a
fotografar). Em suma: no plano estrito do relato, um como de que não se conhece
o porquê e naturalmente sem quem.
No enigma do quarto fechado a máquina (o
quarto) tem algo lá dentro (o morto, a fotografia) sem que tenha havido um dedo
a premir o botão. Ou antes, sem que a presença desse dedo se tenha manifestado
indubitavelmente – dedo mindinho, polegar, indicador? E teria mesmo havido um
dedo (o assassino)? Temos de o admitir. O que se sabe (se intui) fica então
pairando sobre o que se não sabe, ou melhor: que se virá a saber lá mais para
diante, unindo-se então à outra imagem em negativo.
Na máquina fotográfica, uma vez retirado o
corpo de delito (o rolo impressionado) dá-se um imenso vazio: o corpo morto (o
fotografado) vai entrar noutro mundo de martírio – molhado, quimicamente
macerado para que esplenda de vida simulada. Um morto torturado que só depois
de trans-figurado (des-figurado?) pode viver então de uma vida equívoca (numa
carteira, num dossier, emoldurado ou plasmado numa medalha ornamental, colado
num suporte próprio, trans-ferido quiçá para as páginas de um jornal). O morto,
no relato, vai ter as circunstâncias da sua vida (da sua morte) analisadas,
dissecadas, descriptadas. Vai ganhar exactidão, ou antes: vai ser o sinal
palpável de uma exactidão reconhecível, forjadora de luz. A fotografia, por seu
turno, verá os sinais da sua realidade transformarem-se paulatinamente, até
desaparecerem com o passar do tempo – com o passar da luz. As inflexões, os
pormenores – os habilidosos detalhes da encenação do crime – que a tornaram
artística ir-se-ão dissolvendo irrevogavelmente, tornar-se-ão pertença e parte
dum imenso território onde impera o desconhecido. Mas, dado que tudo é
convenção (ficção dentro da ficção que um texto ou uma fotografia não deixam de
ser) tudo está (fica) repleto dum sentido muito próprio: há um como absoluto,
mas sem aclaramento (o flash) nunca se chegará ao quem e ao porquê (como nos
retratos: ao olharmos para uma fotografia de nós mesmos é como se nos
olhássemos a um espelho do passado, um espelho onde não nos conseguimos
reflectir; o direito é o esquerdo e vice-versa, mas a foto está paralisada, faz
parte de um além imutável). Na fotografia artística – vestígio de algo
existente, ainda que simulado – o porquê ocupa grande parte da cena e antecede
(justifica?) o quem e o como. Ou seja: um morto (criatura, retrato) que já não
tem continente (a máquina, o quarto) e que a prazo nem terá (será?) conteúdo.
Por outras palavras: a criatura sem criador nomeável, comportável,
reconhecível.
Ao entrar no quarto (aposento, mas também
câmara) o detective (a fonte de luz) começa de imediato a destruir as
simulações engendradas pelo oficiante (o criminoso, o fotógrafo), tal como a
brusca aparição da luminosidade ao penetrar na câmara escura destrói a película
fotográfica. Há pois que saber preservar a dose apropriada de sombra (o
mistério do crime, o mistério que é a matéria ela-mesma que conforma a escrita
enquanto elemento palpável). Depois de solucionado, o enigma do quarto fechado
evidencia os limites da arte que o possibilitou, ou seja, das encenações
perpetradas para iludir a verdade dos factos: a realidade, que é o que os
autores (os assassinos) tentam transformar em algo reconhecível (como uma
foto).
A literatura não será pois tanto a criação de
fantasmas (de negativos) mas o lançar de fantasmas transfigurados (os negativos
transformados, reconvertidos, ou seja retratos) no tráfego quotidiano, nos
foros da realidade. Tornando-os vivos dessa vida esquiva, insólita e peculiar –
fotografia aproximada de algo que se sabe ilusório mas fortemente ilustrativo.
No princípio há o espanto, o arrepio do mistério, à guisa do que sentiam os
primitivos fotografados. Depois há a realidade, ou seja: a imobilização da
fantasia, em suma – o retorno à Razão que subjaz à descriptação do crime. Na
fotografia artística forja-se assim a perfeita imagem invertida do enigma do
quarto fechado ou, ainda melhor, a imagem no espelho duma lente: acumulação de
simulações para iludir uma realidade ultrapassada por flashes sucessivos (os
raciocínios sagazes do investigador). Verdadeira acumulação de realidades
presuntivas feitas para propiciar uma Realidade que é, afinal, só aparência,
cópia armadilhada de alguma coisa que só o artista, o assassino, deu à
objectiva a ver, ou antes – que esta só viu através duma máquina mortal. O
assassino apoderou-se desta maneira do corpo do assassinado e expõe os seus
vestígios a quem os quiser ver.
Por isso é que a fotografia é a arte
obsessiva deste tempo, um tempo de homicidas: simulação encenada, não inocente
– tal como o autor do relato – reflexo duma exposição à escuridão (a luz que
mata, que não é a iluminação mas a destruição do objecto retratado) que
qualifica o fotógrafo (o criminoso) e a sociedade que o multiplica, a sociedade
de imagens em que vivemos.
Uma sociedade que, ironicamente, exibe e
protege os sinais dos seus crimes (as fotografias). Como se o quarto fechado
assim ficasse através dos anos, com o morto e os seus sinais reproduzindo-se
surpreendentemente no exterior por um passe de mágica (uma revelação).
Como, digamo-lo assim, algo impresso na
matéria existente em quaisquer retratos mortos ou vivos da possível eternidade.
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