segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Dois poemas de José Carlos Costa Marques

 




Roda

 

                    Pois pertence ao destino que todas as coisas corram

                    para a sua perda e regressem, cada vez mais apagadas.

                                                                            Geórgicas, Vergílio

 

Avança entre flores a roda do destino,

entre destroços. As flores que carrega e se esmagam

de encontro ao ferro, vivem ainda um átimo

e um perfume evanescente ainda nos ilumina.

Mas logo queimam, murcham, se degradam.

E de novo nascerão, após as chuvas abundantes

encerrando o longo círculo da secura,

o ciclo sem tréguas da terra extrema.

Com vigor redobrado se erguem, nada mais que ervas,

desdobrando seu esplendor gratuito, surgido ao sol

livres de qualquer utilidade. E nós, sob o jugo

sempre sujeitos, que o estômago e cuidados renovam

num giro sem fim, nós aspiramos o perfume novo

que o rodar da roda já espreita e esse instante sorvemos

já quase fenecido. Antes que se vão, por trás da montanha,

os fulgores últimos, ainda as vemos, correndo para a perda

como nós corremos, e regressando, um momento breve,

já desvanecido, e cada vez mais declinantes.

E assim entraremos, perdidos entre flores,

no momento expectante desde o berço, e a roda rodando

nos lançará, quando ela quiser, pela porta sempre aberta,

negror total talvez, cegos talvez do clarão

e deslumbrados.

 

1995

 

 

Escalada

 

O deus é isso que diante de teus olhos tens

- porém invisível.

Em abril a árvore com seus ramos pesando

de rosa branco carregados,

flores de múltiplas pétalas, massas algodoando,

recôndita formosura que espargem em caprichos de forma,

casuais e de recorte afinal sutilíssimo.

A árvore as oferece e tu sabes que ela

o não soube, impassível perante o esplendor que porta,

portadora ela também do que ignorante derrama,

como a mulher jovem sua desnuda beleza

de um ventre florindo.

Mas ao rosa arborescente não responde o teu sangue

ou sequer memória.

Por isso acima, e mais acima te eleva,

mais alto e mais puro,

o deus de braços rosa, de espessas pétalas finíssimas.

 

1995

 

in “Flor dum dia”


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