segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Nicolau Saião, Páginas do meu diário (extractos)

 

Oswaldo Vigas


    No meu canhenho – um Moleskine canónico que um dos meus filhos me ofereceu – vou juntando ao calhar dos dias reflexões, pequenos poemas, nòtulazinhas de viagens, enfim: o trivial raciocínio escrito de um convivente que, não tendo angústias de maior, tem contudo dissabores e alegrias, sucessos e congeminações próprios de quem vai existindo num mundo que ainda se não tornou supranumerário. Mas onde por vezes desejam que o sejamos.

  Correndo o risco de vos estorvar, aqui dou a lume algumas entradas desse discurso talvez despiciendo, eventualmente dispensável, concerteza dum foro comunicacional e mesmo solidário que naturalmente me apraz.

   Mas não se chama/pode chamar a isso, precisamente, a literatura?

 

Janeiro 7

    Depois de um passeio de automóvel pelas imediações do montado de Alpalhão, detenho-me num aprazível recanto perto da pequena vila da Alagoa. É um dia aberto de sol, as colinas para os lados dos Fortios têm uma cor violeta própria desta época do ano. Em volta, o silêncio, um desses grandes silêncios de certos lugares do nordeste alentejano, paira sobre mim.

   Pego num livro de Rilke e dou-me a reler, com ripanço, certas passagens deste seu “Os cadernos de Malte Laurids Brigge”: “Aprendo a ver. Não sei porquê, tudo penetra mais fundo em mim e não pára no lugar onde até agora acabava sempre. Tenho um interior de que não sabia. Tudo lá vai dar agora. Não sei o que ali acontece.”. Palavras tão sugestivas, tão adequadas, tão percucientes, que são quase dolorosas, creio, se lidas por gente que ainda sente viver nela um pouco de sagrado.

  E mais adiante, já a contas com um poema de Czeslaw Milosz: “Aos vacilantes, fracos e inseguros foi dada uma tarefa:/ erguerem-se dois centímetros acima da sua própria cabeça/ e dizerem a quem desespera:/ “eu também chorava assim a minha sina”.

  Depois de se lerem coisas assim como é que se pode levar a sério, se acaso ela nos caísse sob o olhar, a escrita perfunctória e pedante de um Xis eivado de veneras e de pesporrente auto-suficiência, própria de um luso evanescente que de súbito se viu colocado entre os imortais por fecundo amor e esforçado trabalho da nova diplomacia? E como é que se podem continuar a ouvir, sem um esgar de vómito, os relatos das aventuras quotidianas de um tratante habilidoso ou de um habilidoso homem público fornecidos pelos telejornais?

Fevereiro 24

    Chego a esta terra templária (Jerez de los Caballeros) por volta das duas da tarde de um dia esplendoroso. O sol, por surpresa, é como um malmequer por cima da torre singular que logo me assinalaram. E me fascina de imediato mas no entanto me deixa olhar outras mais. Deambulamos um pouco até entrarmos, para uma leve colação, numa antiga taverna onde se enfileiram tonéis enormes.

  Ao deixá-la olho as ruas - e tanto me parece poder estar em fragmentos de Estremoz como em trechos de Marvão, em Montargil ou em Monforte: assim se irmanam estas terras na sua individualidade contudo muito própria, peculiar e singularmente personalizada.

   Depois, quando saio de um antigo convento, é já noite. Cumpri minha tarefa, a que fôra efectuar e, satisfeito, olho da meia-lonjura as muralhas iluminadas. E sinto uma comoção que não sei explicar: e lá fica ela, doirada - mas vi-a na sua serena alvura; nocturna - e foi tão vesperal quão acolhedora.

  Até sempre nobre Jerez, de los caballeros que garantiram o teu momento para os séculos em que perdurarás!

 

Março 14

  Faz hoje 40 anos, contados dia por dia, que um amigo já falecido me ofereceu este livro de Albert Camus. A dedicatória e a data aqui estão, inquestionáveis. Folheio o livro com enlevo, detendo-me nesta e naquela página, de todas as frases tirando proveito e gosto num gesto espontâneo de apreço, de amor pelas obras deste escritor que sempre me fascinou e de quem me sinto um irmão espiritual. Compreendo os seus encantamentos em face de Tipasa, das colinas argelinas, do mar onde se banhava como um jovem filho desse Mediterrâneo sulcado por muitas raças e muitas gerações que lhe traçaram a legenda e lhe conferiram o poderoso apelo de região solar. Assim como sinto, de igual modo, a sua tristeza ao verificar a fragilidade analítica dos que lhe antepunham reservas, em dada época, sem atentarem no esforço de renovação da linguagem, do estilo próprio, a que ele se entregava para melhor e mais exacto testemunho do seu pensamento e da sua imaginação dar a quem o buscava como humilde ou informado leitor, de confrade na rota imarcescível da escrita.

  Se sou, agora como no começo, sensível à sua filosofia toda formada nos meandros de um rasgo de ética e de justiça e de verdade, eivada de verticalidade sem sobranceria, de dignidade sem altivez, dessa modéstia varonil como só os altos espíritos são capazes, é como novelista, prosador e dramaturgo que ele preferencialmente se me impõe. O seu “O Avesso e o Direito seguido de Discursos da Suécia” é uma obra-prima comovente e exaltante. Mesmo os seus “Escritos de Juventude”, ainda que nimbados por uma, a meu ver, mais inocência que inabilidade dos inícios, encantam-nos tanto quanto nos impelem numa demanda toda feita de pureza, de justeza e de sinceridade.

  Leia-se então este trecho, que depois iria constituir o prefácio daquela sua colectânea:”A pobreza, em primeiro lugar, nunca foi para mim uma desgraça: a luz derramava sobre ela as suas riquezas. Mesmo as minhas revoltas foram por ela iluminadas. Foram quase sempre, creio poder dizê-lo sem fazer batota, revoltas por todos e para que a vida de todos seja construída na luz. Não é certo que o meu coração estivesse naturalmente disposto a esta espécie de amor. Mas as circunstâncias ajudaram-me. Para corrigir uma indiferença natural, achei-me colocado a meia distância entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de crer que tudo está bem debaixo do sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo. Mudar a vida, sim, mas não o mundo de que eu fazia a minha divindade. Foi assim, sem dúvida, que abordei esta carreira inconfortável que é a minha, aventurando-me com inocência sobre um arame de equilibrista em que avanço penosamente, sem estar seguro de atingir o fim".

   Também desta maneira clara e singular nos falava a voz de Montaigne.


2 comentários:

  1. Pela amostra, grande diário. Está visto, vou vestir a copa negra com que costumo assaltar bancos
    e ourivesarias, esta noite salto o muro da Casa do Atalaião, parto o vidro da porta da cozinha, entro e vou-me ao "Diário Saiónico". Depois, rasgo-lhe a capa e o frontispício, colo-lhe uma folha com o meu nome e está o assunto arrumado, passa a ser meu.

    Grande abraço,
    JS

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    1. Eheheheh! caro Mano Joaquim! Suaves propósitos esses! Obrigado e...tudo de bom nessas bacanas intenções!

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