quinta-feira, 19 de agosto de 2021

É assim que se faz a Estória



ns


Os namorados de Lisboa

 

                                        (No Largo do Rato)

 

Os namorados

enlaçados

passeiam por Lisboa

com os rostos fechados.

 

Enlaçados

ou de mão na mão:

compenetrados

circunspectos e equilibrados

- estão ambos bem empregados –

…e além disso há a emancipação.

 

É tempo (que felicidade!)

de liberdade e de alegria.

Que serve para esquecer

que depois irão ter

uma data de anos de agonia.

 

Por enquanto passeiam. Miram, remiram

as montras. Tanta coisa bonita!

Assim até amar

- até casar –

é mais de recomendar

e mais catita.

 

Lá vão andando. Ignoram

o seu norte e o seu sul: o símbolo

grego, judaico, egípcio, lusitano.

Sabem é que é preciso

“indispensável, filho, indispensável”

achar apartamento até ao fim do ano.

Por sorte ela já deu c’um senhorio amável…

 

Têm o resto, que bom, mais ou menos tratado.

Até a Avó, que alívio, se lembrou de falecer

- o que vai dar certa ajuda ao ordenado -

Ah!  o velho pé-de-meia bem guardado

que enquanto adolescente ele se lembra de ver!

 

Eis que passeiam, olhando. E trocam gestos

minúcias, uma que outra carícia

sem maldade.

Da parte da polícia

não vai haver protestos

pois não visam lançar a anarquia na cidade.

 

Remiram e procuram, interessados. Ele, tá claro

com expressão de Homem

ela com jeitinhos de Mulher. E ao depois de casados

muito solenes e lavados

(um bocadinho encavacados)

farão então amor

- ele muito senhor

- ela cheirando a malmequer.

 

E seja o que Deus quiser…!

 

Amor do melhor, de confiança

sóbrio, digno e composto

sem tiques, sem toques, sem truques ‘scusados.

Mas com alguns ais

vá lá, dentro do esquema:

- afinal ela já leu, emprestados, alguns manuais

e ele tem ido ao cinema.

 

São bons, são simples, são naturais

sérios e correctos

com um tom português nos rostos mansos.

Mais tarde, ela vai desculpar

outros afectos

ele, compreensivo, vai desculpar

alguns escapanços…

 

Terão muitos rebentos de narizes iguais

ao avôzinho, ao pai, ao primo Florival.

Hão-de oferecer-se prendas em todos os Natais

quando na noite esvoaça uma figura infernal.

 

Em quatro assoalhadas gastarão a sua vida.

E na volta, aos domingos, do passeio de popó

ela às vezes achará que se sente perdida

e ele às vezes sentirá quanto andou sempre só.

 

Morrerão um dia de velhos, aos bocados

estranhos, inquietantes, repletos que nem odres

de vastos silêncios petrificados

p’los vizinhos muito considerados, coitados

inteiramente podres.

 

E terão nessa altura o nome no jornal

e muita, muita gente amiga no funeral.

 

No Largo do Rato passam namorados.

Honrados e serenos, passo miúdo e igual.

 

- Meudeus, meudeus, meudeus

como estamos estragados

(digo-me cá por dentro aos meus botões espantados)

 

Como é triste e ridículo este amor em Portugal!

 

 

ns

Junho de 76

 

Dado também a lume em 78 num boletim do Bureau Surrealista,

por Mário Cesariny


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