quinta-feira, 29 de julho de 2021

Três poemas de Rui Magalhães

 


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Bem cedo pela manhã

partiu à procura da obra

acreditando que àquela hora da manhã

ela lhe escutaria os passos

e lhe diria pelo menos o nome.

Era o seu último movimento

a última inocência antes do apagar de todas as estrelas

que ao longo das eras o haviam iluminado.

Não se interrogou acerca da natureza do que buscava.

Confiava no tempo que tinha sido preciso

para lhe avistar a sombra.

Confiar era a sua forma de ser íntegro

de purificar as memórias de todos aqueles anos

antes de o rio escolher aquele caminho

e de uma ave sem nome entoar para ele uma absorvente litania.

O dia chegou igual a todos os outros

antes de todos os outros

antes mesmo de ele se aperceber do apagamento do tempo.

Bem cedo pela manhã confiou-se aos segredos

da mais pura inocência.


                                 *


Ele não sabe que só muito para além do fim

as flores se tornam verdadeiramente belas

como jovens que nunca serão adultas.

Para além do fim

a única ciência

é a da absoluta ausência de promessa.

Assim se dedica à colheita do fruto

metodicamente

e com orgulho

apesar de o peso ser

às vezes

excessivo.


                                  *

 

Pressentir é algo que exige tempo

mas ele só conhece o tempo definido pela sua própria sombra.

Quando a olha vê só o que já foi

num rasto às vezes amável

outras vezes doloroso.

Mas o que sente é sempre o mesmo

dividido multiplicado

expresso em formas incalculáveis

em desejos que não chegaram a ser.

Pressentir exige tempo

exactamente como o não sentir.

 

in “O viajante exposto à verdade das coisas”




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