NS, CARTA A LUÍS AMARO (Aljustrel, 05 Maio de 1923 - Lisboa, 24 Agosto de 2018)
Luís Amaro por Luís Manuel Gaspar
Portalegre, 4 de Junho de 2002
Prezado Amigo
Chegado de Arronches ontem à noite, depois
de acompanhar cuidadosamente durante uma semana a varicela da minha neta – (eu
tenho um trabalho de menos responsabilidade... ao contrário da Flora, que não
pode faltar à Secção de Obras CMP que dirige; então fui mobilizado...) – tive o
gosto de encontrar a sua carta, entre diversas outras de amigos diversos.
Fico satisfeito por ter gostado do meu
trabalhote sobre o nosso homem*, a quem em breve dedicarei outro,
referente a um facto nuclear da sua vida (de todas as suas vidas, de todas as
suas mortes quiçá): o falecimento da filha, cujo olhar por entre as pálpebras
ligeiramente entreabertas como ele referiu preto no branco, no comovente
“Obsessão”, era a única “coisa” que nunca esquecia/esqueceria, seu único
autentico acalento, esquecido tudo já – glórias, escaramuças, livralhada,
poemaria... Espero devolver nesse
texto, ao Poeta, a dor intensíssima a
que ele tem direito e que, de alguma forma, lhe tem sido sonegada por
ínclitas gentes que me parece não terem percebido (ou, por desvairadas razões,
fingirem que “não há, não passou por
aqui” parafraseando o Cesariny) que um poeta (e esse poeta) é
simultaneamente algo muito abaixo e muito acima do seu entendimento por vezes
todo feito de pequenos disfarces...de pequenos preconceitos
místico-burgueses...de pequenas manhas literatas...
Provavelmente o texto, que como é óbvio
será vazado em linguagem educada, pois eu creio que sou um cavalheiro, fará
todavia um pouco de sangue – em
alguns que têm a todo o custo tentado “depenar” Régio para o “afeiçoarem” e
exercerem seus pequenos mesteres mais a contento.
Agradeço-lhe as palavras de apreço que me
dirigiu na carta. E diga-me: tem, de minha autoria, o texto que li em Paris
aquando do lançamento, lá, do “Flauta de Pan”? E um texto sobre a incapacidade
e corrupção jurídica à luz da literatura policiária, também lido naquela
querida cidade por ocasião dos Encontros sobre LP? E o que fiz sobre o Cézanne,
em palestra na galeria Mailart em Roma, aí há uns dez anos? E outro sobre os
índios americanos referente a palestra na Escola Superior de Educação (e que é
o edifício onde tantas vezes eu vi o nosso homem entrar ou dele sair, em busca
do almoço...da bica no Facha...da tertúlia no Alentejano...). Se tiver
gosto em os ler – são mais ou menos do tamanho do outro - terei gosto em lhos
enviar, pois ser-se lido por si é sempre um privilégio.
Creio que li algures, num catálogo ou em
revista que neste momento não consigo situar, referência aos estudos - a que
alude - de Eugénio Lisboa. Poderia arranjar-me cópia, se não é coisa volumosa,
ou indicar-me em que livro constam? Valter Hugo Mãe tem-me oferecido livros de
vários autores das suas relações editoriais e daquela área nortenha mas, ou por
esquecimento ou por não os ter, nunca me deu nada de E.L.(e por qualquer razão
fortuita nunca os comprei). É uma falha da minha parte, mas faço-me perdoar
dizendo já que durante algum tempo tentei adquirir um livro de ensaios que
parece que deu polémica, e tem basto interesse, sem que o tenha podido fazer,
pois por aqui não havia e eu ainda não dispunha do meu filho António (que agora
está em Lisboa, na Torre do Tombo, não sei se já lhe havia dito) como meu “agente em Havana”...
No que respeita a Duarte Faria, autor por quem tenho a maior
consideração depois de ter lido o belo texto que dedicou ao fantástico em
Régio: soube, um dia, que se tinha suicidado. Vi-o uma única vez, ia eu a subir
as Escadinhas do Duque com o José do Carmo Francisco, que me indicou de raspão
quem era aquele transeunte. Quando soube que ele tinha posto termo à vida,
creio que alguns tempos depois disso ter sucedido, fiquei surpreendido e ainda
hoje sinto uma sensação de estranheza que me dói. Porquê, se eu nem sequer
sabia nada do homem, se nunca sequer lhe falei? Não sei. Mas muitas vezes penso
nele, sentindo confusamente que um drama duro por ali andou (ou será a minha
imaginação a suscitar-me?). Por isso, fico bem contente por o Luís Amaro ir
arranjar um texto sobre ele!
O ser ele sempre ocultado, como diz, é
“natural”: o livro dele é de grande qualidade – o que não quadra na pança de
certa gente, que dona de Régio se sente (olha, rimei!), só ela podendo “comer do bom e beber do fino”, para usar
uma expressão pitoresca. Duarte Faria? O gajo
até já morreu...
Sim, sim: fico bem contente por ir dar-nos
coisas sobre o excelente Duarte Faria! E
aguardo com impaciência o texto in Brotéria do Prof. Mário Garcia (que
desconheço, hélas!).
Claro que o texto do injustiçado Dantas é muito interessante! E o do Augusto de Castro
está na calha, para sair a seu tempo. O do Dantas saiu primeiro porque sendo
tão interessante e sugestivo caía como sopa no mel**.
Os Encontros de Alpedrinha não foram sobre o
Régio. Trata-se de um evento anual em que o Luís Maçarico e a Liga dos Amigos
de Alpedrinha, de que este é membro, convidam autores para estarem presentes a
falar de poesia. E, também, a dizerem poemas. Como o Luís Maçarico me falara
numa intervenção escrita, eu, pensando que se apresentava uma comunicação ou
algo pelo estilo, levei o texto que conhece. Quando chegou a minha vez de
“actuar”, tendo já avaliado a assistência que enchia a nave da igreja do
Convento do Senhor Jesus, fiz uma espécie de rapsódia sobre poesia, o Régio,
poemas deste, daquele, meus, etc. e, no fim, tendo feito um ligeiro vôo sobre o
tema, disse-lhes que exemplares do texto ficavam à disposição de quem quisesse,
pois na Associação tiravam/tinham fotocópias para eles poderem aprofundar o
assunto. Disseram-me depois que tinham tido quarenta e oito interessados.
Parece que os alpedrinhenses gostaram cá do meco...
No que respeita à “Cidade”, o Ventura (António) disse-me que andavam a
ter poucos exemplares, por isso é que não me dava mais no momento, para eu dar
aos colaboradores de minha parte. Será talvez essa a razão porque ainda não lhe
deu uma a si.
Onde está dado a lume o texto do Vergílio
Ferreira? Está em livro acessível a requisitar na biblioteca municipal de aqui?
Ou, se não, poderá dar-me fotocópia (se é texto de tamanho razoável)? Em suma,
gostava de o ler.
Por último, em relação ao seu post-scriptum: desgraçado país,
diz bem. Infelizmente diz bem. Eu, no
tal texto lido em Paris, referente à LP, escalpelizo os porquês. Se estiver
interessado nesse e nos outros textos (creio que não lhos mandei nunca),
diga-me.
E por ora é só. Fico-me por aqui. Receba um
abraço amigo e os votos de boa saúde, extensivos a sua esposa.
O seu, de sempre, Francisco/ns
________________________
*José Régio
**Alude-se
a publicação no suplemento FANAL - que nessa época saía no semanário “Distrito
de Portalegre” - co-orientado por ns.
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