quinta-feira, 29 de julho de 2021

Nicolau Saião, É assim que se faz a estória...

 

NS, CARTA A LUÍS AMARO (Aljustrel, 05 Maio de 1923 - Lisboa, 24 Agosto de 2018)



Luís Amaro por Luís Manuel Gaspar


Portalegre, 4 de Junho de 2002

 

   Prezado Amigo

 

   Chegado de Arronches ontem à noite, depois de acompanhar cuidadosamente durante uma semana a varicela da minha neta – (eu tenho um trabalho de menos responsabilidade... ao contrário da Flora, que não pode faltar à Secção de Obras CMP que dirige; então fui mobilizado...) – tive o gosto de encontrar a sua carta, entre diversas outras de amigos diversos.

  Fico satisfeito por ter gostado do meu trabalhote sobre o nosso homem*, a quem em breve dedicarei outro, referente a um facto nuclear da sua vida (de todas as suas vidas, de todas as suas mortes quiçá): o falecimento da filha, cujo olhar por entre as pálpebras ligeiramente entreabertas como ele referiu preto no branco, no comovente “Obsessão”, era a única “coisa” que nunca esquecia/esqueceria, seu único autentico acalento, esquecido tudo já – glórias, escaramuças, livralhada, poemaria... Espero devolver nesse texto, ao Poeta, a dor intensíssima a que ele tem direito e que, de alguma forma, lhe tem sido sonegada por ínclitas gentes que me parece não terem percebido (ou, por desvairadas razões, fingirem que “não há, não passou por aqui” parafraseando o Cesariny) que um poeta (e esse poeta) é simultaneamente algo muito abaixo e muito acima do seu entendimento por vezes todo feito de pequenos disfarces...de pequenos preconceitos místico-burgueses...de pequenas manhas literatas...

    Provavelmente o texto, que como é óbvio será vazado em linguagem educada, pois eu creio que sou um cavalheiro, fará todavia um pouco de sangue – em alguns que têm a todo o custo tentado “depenar” Régio para o “afeiçoarem” e exercerem seus pequenos mesteres mais a contento.

   Agradeço-lhe as palavras de apreço que me dirigiu na carta. E diga-me: tem, de minha autoria, o texto que li em Paris aquando do lançamento, lá, do “Flauta de Pan”? E um texto sobre a incapacidade e corrupção jurídica à luz da literatura policiária, também lido naquela querida cidade por ocasião dos Encontros sobre LP? E o que fiz sobre o Cézanne, em palestra na galeria Mailart em Roma, aí há uns dez anos? E outro sobre os índios americanos referente a palestra na Escola Superior de Educação (e que é o edifício onde tantas vezes eu vi o nosso homem entrar ou dele sair, em busca do almoço...da bica no Facha...da tertúlia no Alentejano...). Se tiver gosto em os ler – são mais ou menos do tamanho do outro - terei gosto em lhos enviar, pois ser-se lido por si é sempre um privilégio.

 

  Creio que li algures, num catálogo ou em revista que neste momento não consigo situar, referência aos estudos - a que alude - de Eugénio Lisboa. Poderia arranjar-me cópia, se não é coisa volumosa, ou indicar-me em que livro constam? Valter Hugo Mãe tem-me oferecido livros de vários autores das suas relações editoriais e daquela área nortenha mas, ou por esquecimento ou por não os ter, nunca me deu nada de E.L.(e por qualquer razão fortuita nunca os comprei). É uma falha da minha parte, mas faço-me perdoar dizendo já que durante algum tempo tentei adquirir um livro de ensaios que parece que deu polémica, e tem basto interesse, sem que o tenha podido fazer, pois por aqui não havia e eu ainda não dispunha do meu filho António (que agora está em Lisboa, na Torre do Tombo, não sei se já lhe havia dito) como meu “agente em Havana”...

 

   No que respeita a Duarte Faria, autor por quem tenho a maior consideração depois de ter lido o belo texto que dedicou ao fantástico em Régio: soube, um dia, que se tinha suicidado. Vi-o uma única vez, ia eu a subir as Escadinhas do Duque com o José do Carmo Francisco, que me indicou de raspão quem era aquele transeunte. Quando soube que ele tinha posto termo à vida, creio que alguns tempos depois disso ter sucedido, fiquei surpreendido e ainda hoje sinto uma sensação de estranheza que me dói. Porquê, se eu nem sequer sabia nada do homem, se nunca sequer lhe falei? Não sei. Mas muitas vezes penso nele, sentindo confusamente que um drama duro por ali andou (ou será a minha imaginação a suscitar-me?). Por isso, fico bem contente por o Luís Amaro ir arranjar um texto sobre ele!

  O ser ele sempre ocultado, como diz, é “natural”: o livro dele é de grande qualidade – o que não quadra na pança de certa gente, que dona de Régio se sente (olha, rimei!), só ela podendo “comer do bom e beber do fino”, para usar uma expressão pitoresca. Duarte Faria? O gajo até já morreu...

    Sim, sim: fico bem contente por ir dar-nos coisas sobre o excelente Duarte Faria!  E aguardo com impaciência o texto in Brotéria do Prof. Mário Garcia (que desconheço, hélas!).

   Claro que o texto do injustiçado Dantas é muito interessante! E o do Augusto de Castro está na calha, para sair a seu tempo. O do Dantas saiu primeiro porque sendo tão interessante e sugestivo caía como sopa no mel**.

 

  Os Encontros de Alpedrinha não foram sobre o Régio. Trata-se de um evento anual em que o Luís Maçarico e a Liga dos Amigos de Alpedrinha, de que este é membro, convidam autores para estarem presentes a falar de poesia. E, também, a dizerem poemas. Como o Luís Maçarico me falara numa intervenção escrita, eu, pensando que se apresentava uma comunicação ou algo pelo estilo, levei o texto que conhece. Quando chegou a minha vez de “actuar”, tendo já avaliado a assistência que enchia a nave da igreja do Convento do Senhor Jesus, fiz uma espécie de rapsódia sobre poesia, o Régio, poemas deste, daquele, meus, etc. e, no fim, tendo feito um ligeiro vôo sobre o tema, disse-lhes que exemplares do texto ficavam à disposição de quem quisesse, pois na Associação tiravam/tinham fotocópias para eles poderem aprofundar o assunto. Disseram-me depois que tinham tido quarenta e oito interessados. Parece que os alpedrinhenses gostaram cá do meco...

   No que respeita à “Cidade”, o Ventura (António) disse-me que andavam a ter poucos exemplares, por isso é que não me dava mais no momento, para eu dar aos colaboradores de minha parte. Será talvez essa a razão porque ainda não lhe deu uma a si.

   Onde está dado a lume o texto do Vergílio Ferreira? Está em livro acessível a requisitar na biblioteca municipal de aqui? Ou, se não, poderá dar-me fotocópia (se é texto de tamanho razoável)? Em suma, gostava de o ler.

  Por último, em relação ao seu post-scriptum: desgraçado país, diz bem.  Infelizmente diz bem. Eu, no tal texto lido em Paris, referente à LP, escalpelizo os porquês. Se estiver interessado nesse e nos outros textos (creio que não lhos mandei nunca), diga-me.

   E por ora é só. Fico-me por aqui. Receba um abraço amigo e os votos de boa saúde, extensivos a sua esposa.      

   O seu, de sempre, Francisco/ns

 

________________________

 

*José Régio

**Alude-se a publicação no suplemento FANAL - que nessa época saía no semanário “Distrito de Portalegre” - co-orientado por ns.


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