Sobre Agostinho da Silva
“Na sua
impalpável amargura
Odor de um país ulterior onde piores
Fúrias passeiam e expõem as garras.”
Geoffrey Hill in “Ovídio no Terceiro Reich”
Dizia Pablo Picasso, em resposta muito dele a uma entrevista de Madeleine
Buez-Thoury, que “Recordações é tudo
aquilo de que nos esquecemos”. Creio entender o que queria significar na
sua aparente “boutade” o autor de “Pesca em Antibes”: aludia decerto ao
acervo de imagens, transpostas pela memória da sua peculiar maneira que,
frequentemente, coloca a norte aquilo que está a sul, acantonando tudo no lugar
penumbroso onde repousam as nossas mais resguardadas lembranças. E que aí, ao
sedimentarem, se reconfiguram e cobram então a sua forma definitiva, como disse
um dia Benjamin Disraeli.
Tanto quanto me recordo, foi Henrique Madeira
que numa tarde aí do Verão, pelo telefone – prenda que nos era muito usual
utilizar nesses anos em que eu ainda telefonava – ao agradecer-me as referências
que lhe fizera a um livro editado há pouco tempo e que logo deixara chegar até
mim, me fez saber que oferecera um exemplar remanescente do meu “Foto-síntese da pedra” ao autor do
prefácio do dele, Agostinho da Silva. O professor, acrescentou, gostara da plaquette e ele sugeria-me que o
visitasse quando fosse a Lisboa.
Assim fiz – nesse tempo em que ainda visitava Lisboa com frequência.
Numa tarde qualquer, que as manhãs as usava para vasculhar alfarrabistas, bati
à porta da casa do Abarracamento de Peniche.
Encurtando razões: a disponibilidade do homem, que cifrava a peculiaridade do escritor (pois era como escritor e apenas como escritor de “Herta, Teresinha e Joan” que eu o queria situar, não só por ser esse o meu campo de interesses mas também porque esse me parece o lugar mais alto a que subiu, tirante as curiosas deambulações por outros autores de boa talha clássica a que se votou) verifiquei-a na própria maneira com que me deu entrada: sem aparatos de guru (que eu aliás não apreciaria e mesmo aquiesceria, porque como John Ford o pensou e disse, numa tirada célebre, no cinema como nas relações humanas “O olhar do homem deve estar à altura do olhar da câmara”…) em
que alguns pelo que julgo saber, agora
como na hora pretendem encafuá-lo, sem tiques de iluminado, sem outivas de sapiência
consumada em que determinados periféricos da sageza e, mesmo, rústicos se
mergulham com temeridade, dizia – apareceu-me como uma pessoa sensata,
sensível, boa e culta.
Mas
duma cultura serena, comparticipativa e solidária, sabendo ouvir e sabendo
fazer-se ouvir, tendo mesmo atenções tocantes que em muito ultrapassavam o “scholar” de eleição para se projectarem sim
naquilo que mais estimo e na única condição que respeito verdadeiramente: a da
nobreza de carácter do sage que, por o ser, sabe entender nos outros a sua
marca própria que os confirma como confrades de caminhada ainda que diferente,
de existência ainda que dissemelhante ou, quando muito, paralela.
Não receio dizer – passando por alto os continentes do seu pensar (da
sua filosofia, para utilizarmos este conceito relativamente cómodo) – que
sempre reconheci Agostinho da Silva como o Mateus Maria Guadalupe exposto
nessas três novelas onde se exprimem e confluem a aventura (na primeira), a
“humildade gloriosa” algo vizinha de um destino implacável de cariz
vincadamente lusitano (na segunda) e os “encontros falhados” a que se vêem
sujeitos os que não se dão conta, dura e complexa, que no fundo muito pouca
coisa há em comum entre seres que, por razões de acaso, se movem aparentemente
em conjunto no seio duma Europa que não nos conhece, não nos deseja nem,
sequer, nos estima.
“Herta,Teresinha
e Joan”, na sua aparente displicência de economia narrativa, ágil e
sabiamente vertida (como noutro mundo de preocupações o fez Bill Ballinger no
seu sublime “Versão original”) e
veiculada por um discurso aparentemente sem estilo literário galardoável – e é
esse um dos seus maiores méritos num país novo-rico, literato e podre de estilo
- traça em escassas (?) 140 páginas uma das mais belas incursões em português
pela arte da novela. Lêem-se, e verifica-se não haver ali sabor a rolha,
aqueles três relatos permeados de diálogos onde aparentemente nada de relevante
acontece e onde, afinal, acontece tudo - desde o desgosto de viver bem na linha
do fado lusitano, até ao sabor da
solidão que se intui ou se sabe ser definitiva e para nunca mais. Até ao
aflorar, discreto ainda que agudo, duma reconhecível esperança onde pode
existir “a vida palpitante no céu longe”,
como Mateus se dá conta no decorrer da última parte da trilogia.
Que dizer de conversas onde se falou de
tanta coisa, ao correr dos meses que foram desaguar em anos em que não nos
frequentámos? Que me comprazia o contacto desses raros momentos em que eu,
noutros continentes interiores e exteriores, ia vendo e ouvindo outros
percursos, tocando outras rotas, olhando outros rostos e outras experiências
(foi por essa altura, se bem recordo, que tive o sumo privilégio e o fundo
gosto de conhecer Jacques Bergier e outros alguns que não vou aqui citar por
discrição…).
Numa certa noite de um certo dia, voltando de Lisboa com um filho que
também o frequentara (historiador e estudioso intemerato aberto a todos os
ventos da aventura de conhecer e sãmente admirar) parei o automóvel numa área
de serviço para um simples café e umas cigarrilhas de que sou particularmente
guloso enquanto não-fumador que nunca alinhará em fundamentalismos anti-tabagistas).
Daí a bocado, esse meu filho – muito comovido – veio chamar-me a atenção para
uma notícia inserida num jornal não sei se de referência (como agora certos zoilos,
inteligentemente, dizem): e soube então que morrera o “Bom amigo e senhor professor”, como rezava sempre nas cartas que
lhe endereçava, escritas nas minhas horas de Portalegre, de Arronches, de algum
vasto recanto…
Muitas vezes me lembro dele, agora que já vivo
por bandas exteriores muito diferentes e distantes. Recordo a figura
desempenada, mesmo na idade que tinha, de homem erecto, cordial e sapiente. O
seu olhar penetrante e a maneira de falar, que nunca me pareceu artilhar uma
lição mas sim uma comunicação, efectuando – e com força o deixo dito – uma
verdadeira doação de pessoa para
pessoa. Assim o recordo e o recordarei sempre, esse sempre que é volátil como
as palavras - mas tão firme e forte como
elas o podem ser.
Gostaria
de aqui deixar expresso o gosto, só em parte turvado – por razões epigonais que
não salientarei – que tive ao corresponder ao convite formulado para ter estado
presente.
Também, o ter ali encontrado o meu amigo Manuel Ferreira Patrício,
confrade de muitos anos desde o tempo, algo mítico já, de uma comum estadia em
Sintra.
Finalmente, o ensejo de ter estado em Sesimbra, local que me habituei a estimar desde os tempos, já relativamente longe no tempo, em que ali
jornadeava em férias e que, aqui o deixo
dito, tem a ver com uma boa parte de “Os
olhares perdidos”.
*
(Intervenção de ns na sessão de Homenagem levada a efeito pela Câmara Municipal de Sesimbra
em conjunto com o Círculo de Estudo Agostinho da Silva,
reproduzida no livro que coligiu os textos de todos os intervenientes)
No corpo do texto, algumas das esculturas de Palácios da Silva a que o
Professor Agostinho alude no bilhete a ns referente ao poema “Assembleia
Geral”, como nele é assinalado em nótula post scriptum.
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