Numa
tarde de 2002 desloquei-me a Vila Boim, vila dos confins alto-alentejanos
incrustada na mais típica região da fronteira junto à Espanha extremenha.
Era um dia de muito calor e uma triste tarefa ali me levava: acompanhar
os funerais do poeta J.O.Travanca-Rego, que uma súbita e infausta morte
fulminara.
Finalizada a soturna cerimónia que num outro texto evoquei por extenso,
para me animar rumei a Badajoz visando embrenhar-me no quotidiano dessa cidade
movimentada e alegre - que aprecio não só por ela mesma mas também porque me
deixa entrever o halo de aventura que sempre sinto ao cruzá-la na direcção da
Andaluzia onde com frequência me perco e me encontro - e, ainda, porque através
dos anos criei nela alguns confrades e certos amigos que me é grato contactar
fraternalmente.
Instintivamente, como um animal acossado, busquei a gárrula cidade como
que para afastar de mim as sombras da morte que o passamento me deixara
coladas. E foi no lar dum desses amigos, após um reconfortante jantar, que um
rebento do casal, rapazola de primeiros estudos, me suscitou para ir à Net
vistoriar certas coisas interessantes que ali achara.
Em
resumo: pus-me consequentemente a navegar um pouco, como intemerato descendente
dos descobridores de outrora, ainda que o meu veleiro não estivesse, como os
deles estavam, sujeito a mares de calmaria excessiva e imobilizadora ou a
borrascas súbitas e atordoantes.
Sem que me lembre bem como, fui dar a um site de pintura e pintores. E
correndo por ali fora no encalço dos nomes deles, achei e vi dois que me
fizeram ganhar a tarde: o americano do Oeste Lyle Carbajal e a espanholíssima,
mas com um timbre universal, Mayte Bayón.
Fiquei tão impressionado com a pintura destes dois – que ainda mais se
destacavam num mar de relativa impessoalidade e de convencional imitação que se
arrastavam no site em causa – que depois do regresso a Portalegre, logo no dia
seguinte, fiz dois poemas que os celebravam e à excelência da pintura deles.
Pouco tempo depois publiquei-os, de juntura com outros dois dedicados a
Hundertwasser e Morandi, numa conceituada revista ibérica por solicitação
estimável dum dos seus mantenedores. Foram os primeiros do bloco a que depois
chamaria “Poemas desenhados”.
E
com Mayte Bayón o contacto frequente não mais cessou.
Mayte Bayón (Colecção ns)
1. É possível fotografar a alma? Parece que, no
mundo da Ciência, as opiniões se dividem: uns asseguram-nos que isso de alma é
só mera convenção para comparticipativas
efabulações simbólicas, ao passo que outros, mais desempoeirados no que diz
parte a afirmativas religações, navegando pelos mares onde as ilhas fabulosas
têm a obstinação de gostar de aparecer, nos dizem com soma de pormenores que
essa substância etérea é mais consistente que a realidade real dos séculos.
Pode, portanto, fotografar-se a alma? Não o
iria jurar. No entanto tenho para mim que, embora duma forma muito própria,
inconvencional e matérica, há frequentações pelo menos aproximativas. No
continente, está de ver, onde cobram existência civil os mitos, as lendas, as
deambulações comezinhas de gente com uma forma muito peculiar e espiritual de
se deslocar através do espaço e do tempo – aqueles que, sendo pintores e poetas
das mais desvairadas congeminações, exercem no quotidiano o seu múnus
inquietante ou sedutor.
Mayte Bayón, através das obras onde se
inscreve, até mediante as cores com que as constrói, uma aparente estranheza
que, no fundo, aponta para os dias e as horas de quem se interroga sob o
firmamento do quotidiano mais habitual, se não nos dá a foto reconhecível da
alma, das almas do mundo, patenteia-nos indubitavelmente as radiografias de
seres inventados, de seres inteiramente fantasiados - ou seja: mais reais que
as figuras fortuitas que passam por nós numa megalópole ou num terrain vague e,
em questão de horas, desaparecem para sempre e apenas deixam um resíduo nos
nossos olhos interiores, lugares onde os símbolos e as realidades se encontram
como num universo absoluta e simplesmente imaginário.
Mayte Bayón
2. Mas esta pintora é uma operadora
multifacetada: actriz performer, poetisa e, com tudo isto, contadora de
estórias encantatórias mediante a escrita e o desenho, num sugestivo simulacro
à guisa da banda-desenhada e das iluminuras. Aliás os seus quadros, sejam óleos
ou guaches, sejam aguarelas ou colagens modificadas pela intervenção da tinta e
da cor, apontam sempre para verdadeiros relatos do que se passa ou poderá
passar como que fora de cena, nuns bastidores que nos são revelados, realmente
patenteados pela autora - a qual numa piscadela de olho amiga e convivencial
nos desvenda universos que não desconfiáramos existiam. Ela modifica coisas que
eram de uso corrente ou tradicional (por exemplo a série das cabacinhas
pintadas), para nos dar a ver esses mundos que formam um quotidiano em que se
revê, que habita, que cria num afã de demiurga poética. Nisso é bem uma irmã
colaça dos seus compatriotas Picasso e Joan Miró, mas num registo bem
diferente: em Mayte Bayón o universo maravilhoso dos utensílios e das quimeras
associadas perderam o tom de fábula, agregaram um tom que se é de
maravilhamento é também de inquietação e mesmo de algum terror: com efeito, nós
civilizações, nós pintura, nós criações (digamo-lo com a suficiente carga
irónica e o suficiente simbolismo) sabemos agora que somos mortais, sabemos
agora que o monstro, todos os monstros, nos podem espreitar a cada esquina, a
cada volta do caminho para nos quebrarem e desfazerem as “armas miraculosas” da
arte e da paixão interior com que tentamos subsistir, bem assim como as da vida
que vivemos como seres sociais.
Nesta pintora, o recurso ao simbólico e a
efectivação do desejo íntimo partem sempre de algo que vai dar, como numa
imaginária linha recta, às memórias da espécie – mas da espécie universal: é
perceptível a linha que, nela e numa linguagem bem moderna, vai contudo
encontrar-se e entroncar com as pinturas dos aborígenes australianos e os
quadros de areia dos navajos e dos lakotas (ambos seres de serenidade e de
ligação ao solo que sabiam entender-se com os plainos desérticos e com os
horizontes boscosos, ainda que existindo a milhares de quilómetros de
distancia).
Mayte Bayón é como que a terceira linha, o
terceiro lado, o terceiro ângulo deste triângulo universal que liga antiguidade
plena e plena modernidade através duma linguagem comum, salubre e fundacional
em que o conhecimento e a possível sabedoria, para nosso bem e nossa salvação
íntegra, acabarão por se encontrar e, assim, permanecer salutarmente.
ns
MAYTE BAYON
Segredos quem os tem
Se fosse só
a toalha aos quadrados, o gato na soleira
o pão torrado, o peixe frito
era caso para lançar ao vento
muitos quilos de infinito
músicas de outrora, terrores
e uma que outra solidão pintada
Mas desta forma
não é preciso:
há sempre o mar, o frio, essências
e outros jogos eternos e inocentes.
in “Poemas desenhados”
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