Nascido na pitoresca vila de Daresbury em 1832, o autor de "Alice no País
das Maravilhas" congeminou esta obra famosa em 1862 durante um passeio de
barco através dos bosques cursados pelo Tamisa.
Cento e dez anos depois, "Alice do Outro lado do Espelho" era
divulgado em Portugal pela editora "Estampa" na sua conceituada
colecção de capa negra "Livro B".
Em 1985, por sugestão de Mário Cesariny
dei a lume, sob a égide do "Bureau Surrealista Alentejano", uma
folha-volante com o texto que a seguir se apresenta, numa edição/distribuição
de 50 exemplares ilustrados e assinados pelo signatário:
LEWIS CARROLL NUM POSITIVO FOTOGRÁFICO
Pelas
ruas de Daresbury, de Guilford e de Oxford e pelas sombras do campo inglês um
homem passa. O rosto entre o pensativo e o taciturno a que se sobrepõe por
momentos uma inconcreta expressão de fina alegria, de interrogação difusa, é
familiar aos transeuntes.
Em todo o homem há uma parte negra ou mal
iluminada que, provavelmente, é a sua parte mais luminosa. Acham estranho,
acham contraditório? Pode lá ser… Ruas escusas, parques gradeados com ruins
frequências, casas isoladas onde soam gemidos, choros, risos inqualificáveis –
e onde por vezes se percebem, vindas lá de que estranhos reinos, algumas luzes
inquietantes que não têm razão de ser? Sim, tudo isso.
O
poeta concentra em si todas as beberagens e os maus odores. É muitas vezes um
filho maldito do seu tempo, ama por excesso o que não deve, fotografa o passado
e o futuro em animais e em crianças, tem um desejo de absoluto que, suspeita,
nunca lhe será concedido. As matemáticas do mundo encarnam numa inocente
inclinação que o fazem contrair o rosto numa expressão de ternura cordial, de
fantasia entre o medo e a esperança. E os jogos malabares da imaginação
permitem-lhe seguir viagem.
O que
frequentemente o preocupa é que há silêncios que gritam, a sua busca tropeçou noutros
dramas, noutros pontos limite. Humpty-Dumpty desvela-se de súbito num muro de
uma das ruas do universo. Porque as ruas modificam-se, como se modificam os
rostos da Duquesa ou da Rainha. Também elas têm a sua geografia própria, o seu
semblante nostálgico ou alegre. As ruas estão para além do lugar-comum,
consoante os momentos, a disposição de quem por elas transita, consoante até as
mudanças cifradas no passar dos anos. E no fim de algumas, ao entrar no bosque,
abrem-se túneis de esquisito recorte na ramaria por onde passam as imagens virtuais
de coelhos, de chapeleiros e de quartos e salas que ora crescem ora diminuem
como se alguém as concebesse num sono peculiar.
ns
E assim
o poeta, nas suas horas, recria o mundo quotidiano e confere-lhe outra
dimensão. Admirável e necessária operação: levado por uma onda palpitante que
tanto pode vir do mar dos sonhos como da realidade mais elementar, dá-nos a
transfiguração dos dias e das noites com tudo o que nelas vive: bichos que são
gente, os ritmos secretos das horas e das Estações, lugares que amou ou o
impressionaram, a face tangível de pessoas, coisas e memórias transfiguradas
onde habita para sempre o seu ser profundo, o da criança primordial.
E se
o mundo dos minutos penosos, insustentáveis ou cruéis tenta cercear o melhor da
sua demanda, há que abrir a porta – ainda que pequena – com a chave inventada
pelo Desejo e para além da qual residem as maravilhas, esse território semeado
de sinais reveladores onde, finalmente, se acham, mediante a capacidade de
sentir e de criar, o conhecimento conquistado e a possível sabedoria.
Nicolau
Saião
Junho de 85
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