segunda-feira, 3 de maio de 2021

Nicolau Saião, Dos encontros e desencontros na Cidade

 

UM DUO DE TRÊS

António Luís Moita, José Alberto Reis Pereira e José Carlos Breia



Foto de João Garção


   Trocando por miúdos: dois mortos e um vivo, ou um vivo e dois mortos, mas os três bem vivinhos da silva pois “livre é a raça dos poetas” como dizia Demóstenes e a cada momento isso se confirma, se certifica e reconverte através do que escreveram, deixaram escrito, continuam escrevendo num outro espaço e num outro tempo – os olhos, o espírito e a alma de quem os lê – se os colocamos no lugar expresso da Cidade, o lugar iluminado e perene, se sabemos guardar-lhes a recordação, a legítima lembrança do que sempre irão sendo.

  Consintam-me que por uns segundos me cite, de boamente e boa-fé: “A quem servem as evocações? Em certas alturas, a nós mesmos. Talvez a um que outro, recheado de minutos de dúvida sobre a face da sociedade. A gentes projectadas num futuro incerto, possivelmente, viajando entre recordações e utopias. Entre os rochedos da memória provável.

  A certas horas, rodamos em torno das recordações como um lobo em volta da presa. É a nossa própria carne que, como num espelho, se faz significado, matéria afastada que pouco a pouco se ilumina (…)”. 

  É sem desdouro que assim me exprimo, entre a emoção e a nostalgia. Mas eu vos conto:

1.  Conheci António Luís Moita no final dos anos oitenta, embora de há muito lhe conhecesse o nome e alguns poemas colhidos por aqui e por ali na imprensa e, musicados por cantores oposicionistas, na rádio dos tempos da velha senhora quando o rei fazia anos. Os seus livros iria lê-los depois, completos e oferecidos pela sua generosidade de confrade atento.

  Ele dera a lume num jornal de Castelo de Vide um belo texto evocativo dum seu amigo dilecto, o poeta Cristóvam Pavia, no qual era também referido Francisco Bugalho, pai do autor de “35 Poemas” e figura destacada no movimento da “Presença”.

  Eu realizava nesse tempo numa das rádios portalegrenses um programa semanal, o “Mapa de Viagens” e, por intermédio de confrades comuns, convidei-o a estar presente para elaborarmos uma emissão (“Uma noite com Cristóvam Pavia”). Aceitou de imediato e o programa aconteceu, ouvido com agrado tal como com agrado fora feito. Ele fizera-se acompanhar por José Carlos Breia, que ficou doravante sendo das minhas gratas relações.

  E foi este, tempos atrás e no meio duma conversa telefónica após um período seu de convalescença, quem me deu a triste notícia do falecimento do nosso comum amigo, que eu julgava ainda vivo apesar do seu, como ele usava dizer, “barroco biológico” que a todos atinge nos anos finais.




 Eis um dos poemas que um dia me enviou:


ORNITOLOGIA

Dez papam lagosta. Trinta, camarão.

Muitos, alcagoitas. Os demais, tremoço.

A tudo isto assisto na Associação:

“Esta teta é minha! Mama tu um osso!”

 

Passarões, decerto, na associciência

Com que tomam posse do lugar cativo,

Hoje, à mesa de honra, sábios se congressam,

Revirando os olhos, refinando o bico.

 

As araras palram, sacudindo as penas.

Palram papagaios, frente ao macacal.

Telecoloridos (como os seus poemas)

Vão rever-se à noite, no telejornal.

 

Ei-los que, ditosos, mútuos se deslumbram

Com saracoteios, com salamaleques,

Tanto os que num pipo de cachimbo fumam

Como as catatuas, por detrás dos leques.

 

De repente o espanto de mil sóis deflagra!

Cruzam-se holofotes. Vê-se (do balcão)

Um peru, no púlpito (ou uma abetarda?)

Crepitar no flash, pronta a promoção.

 

Junto ao microfone, funga-lhe na boca

Fumegante, a fala, foto-fungicida.

Se, microgravada, não se fizer rouca

Por qualquer defeito do hi-fi da fita,

 

Já meu tetraneto poderá escutá-la,

Para sempre limpa do presente morto,

Num glu-glu de stereo que gluglui na sala,

Milagrosamente, sem um perdigoto.

 

Do Luiz quem sabe qual a voz que tinha?

Do Cesário findo qual a verde voz?

Mas daquele galo, daquela galinha,

Repenicam, longos, seus cocorocós.

 

Já o Tempo o eco dos seus cantos bebe!

Já seus trinos bebem, sem demora, o Tempo!

Pairam no futuro, vivos na cassete

Da posteridade, salvos nesse invento!

 

Entretanto, à margem, os que pagam quotas

Buscam-se nos bolsos, catam os tostões.

Bicam um tremoço, cascas de alcagoitas.

 

- Este, o aviário. Estas as gaivotas.

Umas são gaivinas. Outras, gaviões.

 

25/1/82

A.L.M.

 

 

2.  O meu conhecimento com o Engenheiro (que este era mesmo engenheiro e não engenheiral…) José Alberto dos Reis Pereira, filho do pintor/poeta Julio/Saúl Dias e sobrinho de José Régio, decorreu de outras circunstâncias. Eu diria…profissionais.

   No princípio dos anos noventa, tendo estado durante algum tempo colocado na Biblioteca municipal para efectuar determinadas tarefas, em certo dia foi-me dito pelo presidente da gerência de então da Câmara, um antigo e benquisto amigo meu, que tinham pensado colocar-me definitivamente no Centro de Estudos da Casa-Museu do autor de “Davam grandes passeios aos domingos…”, que desejavam estivesse daí em diante sempre aberto aos visitantes e em plena disponibilidade de contactos e actividades. Tinham tido a pronta aquiescência do engº Reis Pereira, tanto mais que ele conhecia escritos meus e sabia da minha posição ante a figura de Régio, que algumas vezes eu evocara na imprensa e na rádio.

    Após a minha entrada no Centro os contactos foram-se paulatinamente estabelecendo e, a partir duma certa altura, estreitaram-se. Cordialíssimo, de fino trato e marcada sensibilidade e talento, escrevia e pintava de forma autónoma, com voz própria. Apesar da estatura do seu pai e do seu tio lhe serem tão próximas, tinha os seus caminhos pessoais, o que pode ser confirmado por quem consultar o belo álbum “O Surrealismo Abrangente, colecção particular de Cruzeiro Seixas” - editado pela Fundação Cupertino de Miranda – no qual é sublinhada a sua “pintura e desenho neoexpressionista bad, próximo da Arte Bruta, com traço impulsivo e cromatismo fauve”.

   Em princípios de Fevereiro de 2013, admirado de não ter, há algum tempo já, feedback p’los envios que de tempos a tempos faço a confrades, resolvi telefonar-lhe. Fui atendido por uma voz feminina, a de sua esposa, que com triste surpresa da minha parte e mágoa mútua me disse que o engenheiro José Alberto tinha falecido em dezembro de 2012. Encontros…desencontros…que é disto que se constrói o nosso périplo relacional.




     O texto que segue foi-me cedido para publicação (in suplemento cultural “Fanal”, que eu então co-coordenava) no número dedicado a José Régio:

 

RÉGIO – A COERENTE DIMENSÃO

 

    A diferente valorização dos conceitos como forma de intervir na orientação do que, em cada época, vai sendo tentado, adquirido, conseguido, é por certo um indicador das coincidências, dos encontros e dos desencontros que preenchem o relacionamento dos homens e das ideias. Vem isto a propósito do que em Régio haverá de dissonante com correntes ou tendências que hoje se vão afirmando e que, por isso mesmo, assumem o natural confronto com o existente.

    A sujeição a um novo olhar, à nova luz de novos tempos, é assim um inevitável exercício para a obra de arte, para o que, sendo o resultado da íntima criação, fica depois disponível ao diverso entendimento, às várias circunstâncias, aos humores e aos afectos.

   A importância dos valores permanentes, o confessado gosto de Régio pelo perdurável, pelo intemporal, pela realização continuada, com vagar e na íntima coerência de quem desenvolve posições muito próprias, são aspectos que poderão constituir um ponto de partida para a breve análise a que nos propomos. Como o será também o olhar profundo, a visão interior que não teme a complexidade do homem nem cede a tentações de modas, ao domínio dos valores formais ou outros alheios à condição artística.

   Pensamos poder dizer que, no geral, será na “coerente dimensão” da obra de Régio – e aqui a coerência não limita ou condiciona a diversidade de uma dimensão que é muito mais que apenas física – que se poderá encontrar alguma dissonância com autores mais recentes. Com correntes que invocam, por exemplo, a restrição da liberdade criadora que dizem caracterizar o pensamento coerente e o trabalho continuado e que por seu lado valorizam práticas de eficácia mais imediata, como o improviso e a liberdade de mudar, sem que para isso seja relevante qualquer condição anterior.

   Por outro lado, conceitos como a valorização do efémero, da conjuntura e da circunstância, bem assim como a visão mais à superfície, na epiderme das coisas e dos seres, e a maior atenção ao detalhe e ao pormenor diferenciado, têm na actualidade particular expressão. Como têm também os aspectos formais que, valorizados pelas novas tecnologias, assumem hoje um papel mais relevante, quando não dominante e em desfavor dos aspectos de concepção e conteúdo.

   Não nos ocupando agora em assinalar as diferenças ou procurar os encontros – o que seria um outro trabalho, talvez com resultados de alguma surpresa – interessa clarificar que é na própria obra, na energia vital que sobrevive ao desaparecimento da sua origem, que terá que se encontrar a capacidade de resposta ao confronto dos tempos. Por isso se indicam alguns dos elementos que sendo significativos da vitalidade do texto e do espírito regiano, serão determinantes para o necessário balanço revelador.

   O primado da liberdade criativa, da criação libérrima que só na autenticidade tem o seu limite e o elevar a actividade crítica ao nível da restante produção literária, condicionada apenas pelo dever ético da “compreensão crítica” são, desde logo, valores que temos por vitais na obra de José Régio. Como o são também, e sem ser exaustivo, o fundo olhar sobre si próprio e sobre os outros, uma permanente atitude dialética e antidogmática que desde sempre manifestou; como o é ainda a coragem em assumir a sua pluralidade – “Que diabo, não sou homem de uma só face! A minha unidade tem de se afirmar na diversidade”, diz o poeta no Diário; - a interveniente prática da polémica e da intervenção cívica; como ainda o é também o assumir da sua particular condição de homem religioso, como confessava em livro quando a morte o surpreendeu.

   Obra centrada nos desafios da íntima diversidade, na coerência onde há lugar para a razão, para o esforço continuado do progresso do conhecimento, mas também para o mistério, para o sublime, para tudo o que está para além dos limites, a obra de Régio permanece frente aos desafios dos novos tempos, na coerente dimensão que é a sua energia vital.  J.A.R.P.

                                                                                       

3.  E a finalizar - num registo que como decerto verificarão tem um sentido aprazível de permanência pelo enfoque cerzindo o passado, o presente e o futuro, pela justeza de tom e pela nostalgia que contudo não nos destroça – 3 poemas de José Carlos Breia:

 

                             HOJE

 

                             Que trouxe do passeio?

 

Um corte negro de asas

no último vermelho do poente

 

A lama nos sapatos

 

A bela flor de um cacto

 

O olhar que se arrasta

por um muro murado de graffiti

(uma porta arrombada?).

 

E um folheto sobre a eternidade

que me deu um senhor engravatado.

 

 

 FLANANDO

 

Na palavra o que é lavrado?

Pala que só gera sombra?

Pá que não amanha, lavra?

 

Lavra pode ser só posse

e não arroteia nada.

 

Com este jogo à beira-rio passeio

– barcos, barra, Bugio

Enquanto o vento levanta

o que resta destes fios

que me servem de cabelo.

                            

 O NOVO ALADINO

 

                             Se tivesse uma lâmpada

como tinha Aladino

que iria eu fazer para Pasárgada ?

 

Ser amigo de rei

tem desvantagens.

 

Não precisava de um rei

para escolher a cama desejada

e nela a mulher

com quem bulisse.

 

Primeiro,

queria uma casa com relvado,

entre campo e praia,

sem vizinhos amáveis

que são uma chatice.

 

Amigos

isso sim

quantos quisessem vir.

Mas nunca mais de dois

de cada vez.

 

Queria

uma cama de água

com comando,

para sentir a calma das lagunas

a lua das marés

e dos riachos

o sussurro fresco.

 

A mulher é que era o drama:

 

olhos que falassem fundo,

esguia e louca

feita malagueta,

frescura de água de coco

e o doce da carambola.

 

Mas nada de escravatura.

 

Nua ou velada,

só viesse

quando o ritmo lhe pedisse

ou a isso fosse levada.

 

E pouco mais queria.

 

Escrever por acaso.

A melodia

do meu galgo solto.

E, na iridiscência

do meu copo

o reflexo inquieto

da memória.

 

 

(Do livro “Outro Lado”)


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