UM DUO DE TRÊS
António
Luís Moita, José Alberto Reis Pereira e José Carlos Breia
Foto de João Garção
Trocando
por miúdos: dois mortos e um vivo, ou um vivo e dois mortos, mas os três bem
vivinhos da silva pois “livre é a raça
dos poetas” como dizia Demóstenes e a cada momento isso se confirma, se
certifica e reconverte através do que escreveram, deixaram escrito, continuam
escrevendo num outro espaço e num outro tempo – os olhos, o espírito e a alma
de quem os lê – se os colocamos no lugar expresso da Cidade, o lugar iluminado
e perene, se sabemos guardar-lhes a recordação, a legítima lembrança do que
sempre irão sendo.
Consintam-me que por uns segundos me cite, de
boamente e boa-fé: “A quem servem as
evocações? Em certas alturas, a nós mesmos. Talvez a um que outro, recheado de
minutos de dúvida sobre a face da sociedade. A gentes projectadas num futuro
incerto, possivelmente, viajando entre recordações e utopias. Entre os rochedos
da memória provável.
A certas horas, rodamos em torno das
recordações como um lobo em volta da presa. É a nossa própria carne que, como
num espelho, se faz significado, matéria afastada que pouco a pouco se ilumina (…)”.
É sem desdouro que assim
me exprimo, entre a emoção e a nostalgia. Mas eu vos conto:
1. Conheci
António Luís Moita no final dos anos oitenta, embora de há muito lhe conhecesse
o nome e alguns poemas colhidos por aqui e por ali na imprensa e, musicados por
cantores oposicionistas, na rádio dos tempos da velha senhora quando o rei fazia anos. Os seus livros
iria lê-los depois, completos e oferecidos pela sua generosidade de confrade
atento.
Ele dera a
lume num jornal de Castelo de Vide um belo texto evocativo dum seu amigo dilecto,
o poeta Cristóvam Pavia, no qual era também referido Francisco Bugalho, pai do
autor de “35 Poemas” e figura destacada no movimento da “Presença”.
Eu realizava nesse tempo numa das rádios
portalegrenses um programa semanal, o “Mapa de Viagens” e, por intermédio de
confrades comuns, convidei-o a estar presente para elaborarmos uma emissão
(“Uma noite com Cristóvam Pavia”). Aceitou de imediato e o programa aconteceu,
ouvido com agrado tal como com agrado fora feito. Ele fizera-se acompanhar por
José Carlos Breia, que ficou doravante sendo das minhas gratas relações.
E foi este, tempos atrás e no meio duma
conversa telefónica após um período seu de convalescença, quem me deu a triste
notícia do falecimento do nosso comum amigo, que eu julgava ainda vivo apesar
do seu, como ele usava dizer, “barroco
biológico” que a todos atinge nos anos finais.
Eis um dos
poemas que um dia me enviou:
ORNITOLOGIA
Dez papam lagosta.
Trinta, camarão.
Muitos,
alcagoitas. Os demais, tremoço.
A tudo isto assisto
na Associação:
“Esta teta é
minha! Mama tu um osso!”
Passarões,
decerto, na associciência
Com que tomam
posse do lugar cativo,
Hoje, à mesa de
honra, sábios se congressam,
Revirando os
olhos, refinando o bico.
As araras palram,
sacudindo as penas.
Palram papagaios,
frente ao macacal.
Telecoloridos
(como os seus poemas)
Vão rever-se à
noite, no telejornal.
Ei-los que,
ditosos, mútuos se deslumbram
Com saracoteios,
com salamaleques,
Tanto os que num
pipo de cachimbo fumam
Como as catatuas,
por detrás dos leques.
De repente o
espanto de mil sóis deflagra!
Cruzam-se
holofotes. Vê-se (do balcão)
Um peru, no
púlpito (ou uma abetarda?)
Crepitar no flash, pronta a promoção.
Junto ao
microfone, funga-lhe na boca
Fumegante, a fala,
foto-fungicida.
Se, microgravada, não
se fizer rouca
Por qualquer
defeito do hi-fi da fita,
Já meu tetraneto
poderá escutá-la,
Para sempre limpa
do presente morto,
Num glu-glu de stereo que gluglui na sala,
Milagrosamente,
sem um perdigoto.
Do Luiz quem sabe
qual a voz que tinha?
Do Cesário findo
qual a verde voz?
Mas daquele galo,
daquela galinha,
Repenicam, longos,
seus cocorocós.
Já o Tempo o eco
dos seus cantos bebe!
Já seus trinos
bebem, sem demora, o Tempo!
Pairam no futuro,
vivos na cassete
Da posteridade,
salvos nesse invento!
Entretanto, à
margem, os que pagam quotas
Buscam-se nos
bolsos, catam os tostões.
Bicam um tremoço,
cascas de alcagoitas.
- Este, o aviário.
Estas as gaivotas.
Umas são gaivinas.
Outras, gaviões.
25/1/82
A.L.M.
2. O meu conhecimento com o Engenheiro (que este
era mesmo engenheiro e não engenheiral…) José Alberto dos Reis Pereira, filho
do pintor/poeta Julio/Saúl Dias e sobrinho de José Régio, decorreu de outras
circunstâncias. Eu diria…profissionais.
No princípio dos anos noventa, tendo estado durante
algum tempo colocado na Biblioteca municipal para efectuar determinadas
tarefas, em certo dia foi-me dito pelo presidente da gerência de então da Câmara,
um antigo e benquisto amigo meu, que tinham pensado colocar-me definitivamente no
Centro de Estudos da Casa-Museu do autor de “Davam grandes passeios aos
domingos…”, que desejavam estivesse daí em diante sempre aberto aos visitantes
e em plena disponibilidade de contactos e actividades. Tinham tido a pronta
aquiescência do engº Reis Pereira, tanto mais que ele conhecia escritos meus e
sabia da minha posição ante a figura de Régio, que algumas vezes eu evocara na
imprensa e na rádio.
Após a minha entrada no Centro os contactos
foram-se paulatinamente estabelecendo e, a partir duma certa altura, estreitaram-se.
Cordialíssimo, de fino trato e marcada sensibilidade e talento, escrevia e
pintava de forma autónoma, com voz própria. Apesar da estatura do seu pai e do
seu tio lhe serem tão próximas, tinha os seus caminhos pessoais, o que pode ser
confirmado por quem consultar o belo álbum “O Surrealismo Abrangente, colecção
particular de Cruzeiro Seixas” - editado pela Fundação Cupertino de Miranda –
no qual é sublinhada a sua “pintura e
desenho neoexpressionista bad, próximo da Arte Bruta, com traço impulsivo e
cromatismo fauve”.
Em princípios de Fevereiro de 2013, admirado
de não ter, há algum tempo já, feedback p’los
envios que de tempos a tempos faço a confrades, resolvi telefonar-lhe. Fui
atendido por uma voz feminina, a de sua esposa, que com triste surpresa da
minha parte e mágoa mútua me disse que o engenheiro José Alberto tinha falecido em dezembro de 2012. Encontros…desencontros…que é disto que
se constrói o nosso périplo relacional.
O
texto que segue foi-me cedido para publicação (in suplemento cultural “Fanal”, que eu então co-coordenava) no número
dedicado a José Régio:
RÉGIO – A COERENTE
DIMENSÃO
A diferente valorização dos conceitos como
forma de intervir na orientação do que, em cada época, vai sendo tentado,
adquirido, conseguido, é por certo um indicador das coincidências, dos
encontros e dos desencontros que preenchem o relacionamento dos homens e das
ideias. Vem isto a propósito do que em Régio haverá de dissonante com correntes
ou tendências que hoje se vão afirmando e que, por isso mesmo, assumem o
natural confronto com o existente.
A sujeição a um novo olhar, à nova luz de
novos tempos, é assim um inevitável exercício para a obra de arte, para o que,
sendo o resultado da íntima criação, fica depois disponível ao diverso
entendimento, às várias circunstâncias, aos humores e aos afectos.
A importância dos valores permanentes, o
confessado gosto de Régio pelo perdurável, pelo intemporal, pela realização
continuada, com vagar e na íntima coerência de quem desenvolve posições muito
próprias, são aspectos que poderão constituir um ponto de partida para a breve
análise a que nos propomos. Como o será também o olhar profundo, a visão
interior que não teme a complexidade do homem nem cede a tentações de modas, ao
domínio dos valores formais ou outros alheios à condição artística.
Pensamos poder dizer que, no geral, será na
“coerente dimensão” da obra de Régio – e aqui a coerência não limita ou
condiciona a diversidade de uma dimensão que é muito mais que apenas física –
que se poderá encontrar alguma dissonância com autores mais recentes. Com
correntes que invocam, por exemplo, a restrição da liberdade criadora que dizem
caracterizar o pensamento coerente e o trabalho continuado e que por seu lado
valorizam práticas de eficácia mais imediata, como o improviso e a liberdade de
mudar, sem que para isso seja relevante qualquer condição anterior.
Por outro lado, conceitos como a valorização
do efémero, da conjuntura e da circunstância, bem assim como a visão mais à
superfície, na epiderme das coisas e dos seres, e a maior atenção ao detalhe e
ao pormenor diferenciado, têm na actualidade particular expressão. Como têm
também os aspectos formais que, valorizados pelas novas tecnologias, assumem
hoje um papel mais relevante, quando não dominante e em desfavor dos aspectos
de concepção e conteúdo.
Não nos ocupando agora em assinalar as
diferenças ou procurar os encontros – o que seria um outro trabalho, talvez com
resultados de alguma surpresa – interessa clarificar que é na própria obra, na
energia vital que sobrevive ao desaparecimento da sua origem, que terá que se
encontrar a capacidade de resposta ao confronto dos tempos. Por isso se indicam
alguns dos elementos que sendo significativos da vitalidade do texto e do
espírito regiano, serão determinantes para o necessário balanço revelador.
O primado da liberdade criativa, da criação
libérrima que só na autenticidade tem o seu limite e o elevar a actividade
crítica ao nível da restante produção literária, condicionada apenas pelo dever
ético da “compreensão crítica” são, desde logo, valores que temos por vitais na
obra de José Régio. Como o são também, e sem ser exaustivo, o fundo olhar sobre
si próprio e sobre os outros, uma permanente atitude dialética e antidogmática
que desde sempre manifestou; como o é ainda a coragem em assumir a sua
pluralidade – “Que diabo, não sou homem de uma só face! A minha unidade tem de
se afirmar na diversidade”, diz o poeta no Diário; - a interveniente prática da
polémica e da intervenção cívica; como ainda o é também o assumir da sua
particular condição de homem religioso, como confessava em livro quando a morte
o surpreendeu.
Obra centrada nos desafios da íntima
diversidade, na coerência onde há lugar para a razão, para o esforço continuado
do progresso do conhecimento, mas também para o mistério, para o sublime, para
tudo o que está para além dos limites, a obra de Régio permanece frente aos
desafios dos novos tempos, na coerente dimensão que é a sua energia vital. J.A.R.P.
3. E a finalizar - num registo que como decerto
verificarão tem um sentido aprazível de permanência pelo enfoque cerzindo o
passado, o presente e o futuro, pela justeza de tom e pela nostalgia que
contudo não nos destroça – 3 poemas de José Carlos Breia:
HOJE
Que
trouxe do passeio?
Um corte negro de asas
no último vermelho do poente
A lama nos sapatos
A bela flor de um cacto
O olhar que se arrasta
por um muro murado de graffiti
(uma porta arrombada?).
E um folheto sobre a eternidade
que me deu um senhor engravatado.
FLANANDO
Na palavra o que é lavrado?
Pala que só gera sombra?
Pá que não amanha, lavra?
Lavra pode ser só posse
e não arroteia nada.
Com este jogo à beira-rio passeio
– barcos, barra, Bugio
Enquanto o vento levanta
o que resta destes fios
que me servem de cabelo.
O NOVO ALADINO
Se
tivesse uma lâmpada
como tinha Aladino
que iria eu fazer para Pasárgada ?
Ser amigo de rei
tem desvantagens.
Não precisava de um rei
para escolher a cama desejada
e nela a mulher
com quem bulisse.
Primeiro,
queria uma casa com relvado,
entre campo e praia,
sem vizinhos amáveis
que são uma chatice.
Amigos
isso sim
quantos quisessem vir.
Mas nunca mais de dois
de cada vez.
Queria
uma cama de água
com comando,
para sentir a calma das lagunas
a lua das marés
e dos riachos
o sussurro fresco.
A mulher é que era o drama:
olhos que falassem fundo,
esguia e louca
feita malagueta,
frescura de água de coco
e o doce da carambola.
Mas nada de escravatura.
Nua ou velada,
só viesse
quando o ritmo lhe pedisse
ou a isso fosse levada.
E pouco mais queria.
Escrever por acaso.
A melodia
do meu galgo solto.
E, na iridiscência
do meu copo
o reflexo inquieto
da memória.
(Do livro “Outro Lado”)
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