Um
relato-“reportagem”: “Pela porta do cavalo”
ns, Óleo sobre cartão
No decorrer da turbulenta sessão surrealista aqui referida e durante a
qual se esboçaram entre alguns assistentes amoráveis pequenas cenas de pugilato
e outras danças a carácter propiciadas por espectadores fãs dos situacionistas
de Leste, além de um poema (publicado na entrada acima) Mário Botas – que ali
nos fora acompanhar como espectador - teve a gentileza de me oferecer também um
desenho aguarelado de excelente feitura.
Perdido sem apelo nem agravo
entre os eflúvios da zaragata ficou ele, creio que capturado por um
desembaraçado anónimo admirador do pintor - o que a ninguém dói mais que a mim,
seu feliz proprietário durante o melhor de aí uns vinte minutos… ou duas horas.
Sei, por tradição escrita e oral, que há uns senhores (ensaístas ou
biógrafos, lhes chamam) que têm por mester traçar a vida e os cometimentos dos
que em esta vida pintaram ou poetaram. Dedicado a esses bons espíritos,
poupando-lhes assim trabalho moroso de investigação, é que segue este resquício
de texto, enviesado porque os tempos não dão para mais.
Ora foi que no passado dia 1 de Novembro dei comigo, de juntura com
Mário Cesariny, num salão de Alcântara a falar de surrealismo. A sessão foi algo picaresca. No meio de gente
atenta e interessada houve (e ainda bem, ou mal) uns fulanos que não aguentaram
o Artaud, os negros Nauba em livro que lhes dei a ver, os poemas do Mário e os
meus próprios. No meio da conversa deram
de si, o que foi curioso de contemplar. Já toda a gente sabe que no
Movimento político luso (digamos assim por comodidade) há, discreta e séria,
uma doce corrente meio nazi/ meio estalinista, expressa ou camuflada. Tão
camuflada que por vezes nem os próprios se reconhecem. Bem certo é que o
estampido das suas cabeças por dentro lhes dificulta às vezes o conhecimento
intrínseco de si mesmos, mas o que não está bonito é que deixemos os vindouros
sem isto lhes assinalarmos.
A palestra sucedeu no âmbito da Semana de Presença Libertária. Antes de
nós tinha actuado o Grupo Mandrágora com uma peça em um acto de Jorge de Lima
Alves, “Jau”, que está a preparar-se para enfrentar o público.
Depois de eu ter apresentado uma breve resenha dos prolegómenos
dadaístas e surrealistas, Mário Cesariny “para lançar uma ponte entre todos
e que permitisse intervenções e perguntas”, começou a ler umas linhas de
Artaud, do seu livro “Viagem à terra dos Tarahumaras”. Foi quase a seguir que
começou a bagunça (peço desculpa aos
meus leitores mas não posso utilizar outro termo menos vernáculo): um senhor de
barbas, atingido pela voz do autor de “A cidade queimada” e pelos ecos de
Artaud, increpou logo o ledor, perguntando-lhe com laivos que pensou irónicos
se “aquilo era uma lição de antropologia”. O que ele queria, viu-se
depois, era que os surrealistas dissessem ao que vinham, como os pajens de
antanho. Qual era o seu presente e, eventualmente, o seu futuro. Antes de lhe
responder, o que fiz seguidamente, uma senhora do sector interessado
desfechou-lhe com vivacidade o que ele estava a pedir: “que aquilo não era
um comício e, se não estava interessado na voz dos poetas, podia sair e arejar
o ambiente”. O rapaz de barbas, que devia ser um tímido, calou-se prudentemente.
Depois de Cesariny lhe ter dito que, ao contrário dele, não acreditava
no seu “progresso” ocidental, que
era o que repassava a sua intervenção, pouco na história e ainda menos no
futuro da literatura, afirmei-lhe por minha vez que me parecia que Artaud,
pondo de parte o interesse evidente do seu relato, todo percorrido por uma
aragem de paixão e imaginação, não estava morto. “Neófito, não há morte”,
como dizia Fernando Pessoa. Além disso, era de nos interrogarmos se não
estariam mais mortos os laboriosos mentores da cultura oficializada inventora
da corrida em frente (para o abismo). Quanto ao surrealismo, vai indo bem e de
saúde: a poesia sob todas as formas é o que lhe interessa, os totalitarismos o
que não lhe quadra. Disse alguns textos de Cesariny e meus, espalhando revoada
de diabos. Recompostas as coisas, tracei um panorama do que se pode entender
por acção poética: prospecção do humor negro, do amor e da alta Aventura, da
ligação ao não-autoritarismo, à Beleza e ao repúdio do que por detrás dela se
esconde como um rinoceronte: o horrível do Belo, exemplificado entre nós por
sarcófagos altifalantes como José Augusto França, Prado Coelho, “universitários”
e outra gente de fraque. Expliquei mais ou menos em tempo porque é que aderimos
à chamada Utopia dos Grandes Transparentes, porque negamos a religião clerical
e o Poder, seja ele de Estado ou de sector. Foi a seguir, quando coloquei o
Dada retardado Vaneigen no lugar que lhe compete (estraga-albardas mascarado de
sacristão, exemplificado pela repugnante frase “a Esperança é a trela da
submissão”) que alguns rapazes ficaram um pouco ourados. Após dar a minha
opinião sobre o que eles pretendem destruindo a Poesia e a Arte (a arte lúcida
e viva) e que é simplesmente destruir a forma mais eficaz de criatividade, dei
a altura e a água ao Mário que mostrou sem margem para confusão a razão de
serem os adeptos de Vaneigen iguaizinhos aos moços de Brejnev: adesão a um
comportamento rígido e totalizador, sequelas sexuais não resolvidas, ódio à
Vida no mais alto grau, adesão a esquemas maniqueístas. Depois de me referir ao
exemplo que Bradbury equacionou no seu magnífico “Fahrenheit 451”, uma
sociedade crestadora dos livros, das pinturas, mergulhada na masturbação, no
comer-dormir-trabalhar e na delação, foi aí que tive oportunidade de ver saltar
do canto um indivíduo espumando de fúria que, parecendo conhecer-me, achou “que tinha de acabar-se com a Arte e os
artistas”. Retorqui-lhe que só havia um meio para isso – prender em campos
de concentração os ditos, queimar os quadros e instaurar a polícia total do
pensamento e do corpo. Pelo que me dizia respeito garantia-lhe que, mesmo numa
cela, mesmo retalhado, continuaria a fazer versos, se não escritos pelo menos
pensados. O indivíduo em causa, persistindo, afirmou-me que o que lhe
interessava era “destruir o surrealismo”, programa aliás digo eu já no
mapa de certos sujeitos como Hitler, Stalin, Mussolini, Mao, Fidel e Salazar. O
que o indivíduo queria significar era sem dúvida “destruir a poesia” que
para ele ao que percebi é apenas alibi e truque.
Censurado por alguns assistentes, com quem chegou a envolver-se em
disputa física apartada por outros, a pessoa tentou continuar a conversa lá
fora, não sem antes me tentar aplacar dizendo-se magoado por eu o ter comparado
ao Brejnev. De facto comparei-o mal: parece-se mais com um jovem e desaparecido
membro da “Jugendgroup” que vi num filme sobre a Segunda Guerra Mundial.
A sessão, ao que percebi, iria acabar mal se um interveniente não
tivesse vindo pôr termo ao espectáculo (passe a ironia) falando na hora tardia.
E foi só.
Resta-me garantir aos jovens assistentes interessados que continuarei a
poetar. Isto serve também para os não interessados. Agradeço também a atenção
expressa pelos outros assistentes: mulheres e homens. E até sempre…
ns
Nota – Este texto foi publicado na página
cultural do semanário alentejano “A Rabeca”, órgão de informação onde na altura
colaborava.

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