quinta-feira, 1 de abril de 2021

É assim que se faz a estória...

 

Um relato-“reportagem”: “Pela porta do cavalo”



ns, Óleo sobre cartão


    No decorrer da turbulenta sessão surrealista aqui referida e durante a qual se esboçaram entre alguns assistentes amoráveis pequenas cenas de pugilato e outras danças a carácter propiciadas por espectadores fãs dos situacionistas de Leste, além de um poema (publicado na entrada acima) Mário Botas – que ali nos fora acompanhar como espectador - teve a gentileza de me oferecer também um desenho aguarelado de excelente feitura.

    Perdido sem apelo nem agravo entre os eflúvios da zaragata ficou ele, creio que capturado por um desembaraçado anónimo admirador do pintor - o que a ninguém dói mais que a mim, seu feliz proprietário durante o melhor de aí uns vinte minutos… ou duas horas.

 

    Sei, por tradição escrita e oral, que há uns senhores (ensaístas ou biógrafos, lhes chamam) que têm por mester traçar a vida e os cometimentos dos que em esta vida pintaram ou poetaram. Dedicado a esses bons espíritos, poupando-lhes assim trabalho moroso de investigação, é que segue este resquício de texto, enviesado porque os tempos não dão para mais.

    Ora foi que no passado dia 1 de Novembro dei comigo, de juntura com Mário Cesariny, num salão de Alcântara a falar de surrealismo. A sessão foi algo picaresca. No meio de gente atenta e interessada houve (e ainda bem, ou mal) uns fulanos que não aguentaram o Artaud, os negros Nauba em livro que lhes dei a ver, os poemas do Mário e os meus próprios. No meio da conversa deram de si, o que foi curioso de contemplar. Já toda a gente sabe que no Movimento político luso (digamos assim por comodidade) há, discreta e séria, uma doce corrente meio nazi/ meio estalinista, expressa ou camuflada. Tão camuflada que por vezes nem os próprios se reconhecem. Bem certo é que o estampido das suas cabeças por dentro lhes dificulta às vezes o conhecimento intrínseco de si mesmos, mas o que não está bonito é que deixemos os vindouros sem isto lhes assinalarmos.

    A palestra sucedeu no âmbito da Semana de Presença Libertária. Antes de nós tinha actuado o Grupo Mandrágora com uma peça em um acto de Jorge de Lima Alves, “Jau”, que está a preparar-se para enfrentar o público.

    Depois de eu ter apresentado uma breve resenha dos prolegómenos dadaístas e surrealistas, Mário Cesariny “para lançar uma ponte entre todos e que permitisse intervenções e perguntas”, começou a ler umas linhas de Artaud, do seu livro “Viagem à terra dos Tarahumaras”. Foi quase a seguir que começou a bagunça (peço desculpa aos meus leitores mas não posso utilizar outro termo menos vernáculo): um senhor de barbas, atingido pela voz do autor de “A cidade queimada” e pelos ecos de Artaud, increpou logo o ledor, perguntando-lhe com laivos que pensou irónicos se “aquilo era uma lição de antropologia”. O que ele queria, viu-se depois, era que os surrealistas dissessem ao que vinham, como os pajens de antanho. Qual era o seu presente e, eventualmente, o seu futuro. Antes de lhe responder, o que fiz seguidamente, uma senhora do sector interessado desfechou-lhe com vivacidade o que ele estava a pedir: “que aquilo não era um comício e, se não estava interessado na voz dos poetas, podia sair e arejar o ambiente”. O rapaz de barbas, que devia ser um tímido, calou-se prudentemente.

    Depois de Cesariny lhe ter dito que, ao contrário dele, não acreditava no seu  “progresso” ocidental, que era o que repassava a sua intervenção, pouco na história e ainda menos no futuro da literatura, afirmei-lhe por minha vez que me parecia que Artaud, pondo de parte o interesse evidente do seu relato, todo percorrido por uma aragem de paixão e imaginação, não estava morto. “Neófito, não há morte”, como dizia Fernando Pessoa. Além disso, era de nos interrogarmos se não estariam mais mortos os laboriosos mentores da cultura oficializada inventora da corrida em frente (para o abismo). Quanto ao surrealismo, vai indo bem e de saúde: a poesia sob todas as formas é o que lhe interessa, os totalitarismos o que não lhe quadra. Disse alguns textos de Cesariny e meus, espalhando revoada de diabos. Recompostas as coisas, tracei um panorama do que se pode entender por acção poética: prospecção do humor negro, do amor e da alta Aventura, da ligação ao não-autoritarismo, à Beleza e ao repúdio do que por detrás dela se esconde como um rinoceronte: o horrível do Belo, exemplificado entre nós por sarcófagos altifalantes como José Augusto França, Prado Coelho, “universitários” e outra gente de fraque. Expliquei mais ou menos em tempo porque é que aderimos à chamada Utopia dos Grandes Transparentes, porque negamos a religião clerical e o Poder, seja ele de Estado ou de sector. Foi a seguir, quando coloquei o Dada retardado Vaneigen no lugar que lhe compete (estraga-albardas mascarado de sacristão, exemplificado pela repugnante frase “a Esperança é a trela da submissão”) que alguns rapazes ficaram um pouco ourados. Após dar a minha opinião sobre o que eles pretendem destruindo a Poesia e a Arte (a arte lúcida e viva) e que é simplesmente destruir a forma mais eficaz de criatividade, dei a altura e a água ao Mário que mostrou sem margem para confusão a razão de serem os adeptos de Vaneigen iguaizinhos aos moços de Brejnev: adesão a um comportamento rígido e totalizador, sequelas sexuais não resolvidas, ódio à Vida no mais alto grau, adesão a esquemas maniqueístas. Depois de me referir ao exemplo que Bradbury equacionou no seu magnífico “Fahrenheit 451”, uma sociedade crestadora dos livros, das pinturas, mergulhada na masturbação, no comer-dormir-trabalhar e na delação, foi aí que tive oportunidade de ver saltar do canto um indivíduo espumando de fúria que, parecendo conhecer-me, achou “que tinha de acabar-se com a Arte e os artistas”. Retorqui-lhe que só havia um meio para isso – prender em campos de concentração os ditos, queimar os quadros e instaurar a polícia total do pensamento e do corpo. Pelo que me dizia respeito garantia-lhe que, mesmo numa cela, mesmo retalhado, continuaria a fazer versos, se não escritos pelo menos pensados. O indivíduo em causa, persistindo, afirmou-me que o que lhe interessava era “destruir o surrealismo”, programa aliás digo eu já no mapa de certos sujeitos como Hitler, Stalin, Mussolini, Mao, Fidel e Salazar. O que o indivíduo queria significar era sem dúvida “destruir a poesia” que para ele ao que percebi é apenas alibi e truque.

    Censurado por alguns assistentes, com quem chegou a envolver-se em disputa física apartada por outros, a pessoa tentou continuar a conversa lá fora, não sem antes me tentar aplacar dizendo-se magoado por eu o ter comparado ao Brejnev. De facto comparei-o mal: parece-se mais com um jovem e desaparecido membro da “Jugendgroup” que vi num filme sobre a Segunda Guerra Mundial.

    A sessão, ao que percebi, iria acabar mal se um interveniente não tivesse vindo pôr termo ao espectáculo (passe a ironia) falando na hora tardia.

    E foi só.

    Resta-me garantir aos jovens assistentes interessados que continuarei a poetar. Isto serve também para os não interessados. Agradeço também a atenção expressa pelos outros assistentes: mulheres e homens. E até sempre…

                                                                                             ns

 

Nota – Este texto foi publicado na página cultural do semanário alentejano “A Rabeca”, órgão de informação onde na altura colaborava.


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