quinta-feira, 4 de março de 2021

Dois poemas de José do Carmo Francisco

 


Fernando Aguiar



A água de 1956

 

Na manhã de Abril

quando não me disseram

(nem poderiam ter dito)

«A tua mãe morreu»

Porque (todos o sabemos)

as mães de facto não morrem

apenas o seu corpo se esconde

nos degraus da terra e do silêncio.

Nessa manhã de Abril

senti que toda a terra secou

não toda a terra mas apenas

a que ficou entre os meus pés

e a terra propriamente dita.

Lembrei-me então de como

essa secura só poderia ser

de facto resolvida pela água

uma certa água de 1956

trazida em cântaros vermelhos

do Poço do Povo para os louceiros

com dois intervalos para o bojo.

Havia um pano branco a tapar o sol

que entrava por uma telha de vidro.

Havia uns papéis com motivos berrantes

a servirem de naperon nas prateleiras.

Havia o ar, o peso do ar de 1956

e só a memória desse ar me segurou.

Havia uma rodilha feita de um lenço azul

comprado na Feira Grande de Rio Maior.

Havia (enfim) a água de 1956

aquela que hoje me poderia matar a sede

ou resolver de vez a secura da terra

debaixo dos meus pés suspensos

como naquela manhã de Abril.  

 

Poema sem direcção nem código postal

A rua onde te encontrei de raspão

A sair e a entrar de um autocarro

Foi rio de lavadeiras de sabão e pedra

E canções de galeras velozes na estrada.

Hoje estou arrependido de ter dito adeus

Tão depressa entre as duas portas de fole

Sem tempo para pedir a tua direcção actual

E o código postal respectivo e obrigatório.

A vida é um mistério, nunca um negócio

Quarenta e oito anos depois fiquei calado

Quando deveria falar de moradas e de ruas

E dar-te ao mesmo tempo o meu telemóvel.  

A estrada onde foi outrora uma ribeira limpa

Com lavadeiras a cantar nas manhãs de sol

É o mesmo lugar cento e quarenta anos depois

Quando o nome de Sete Rios se justificava.

Perdi teu nome todo na porta do autocarro

O mesmo nome que como o meu num repique

Se seguiu a um baptizado na mesma pia sagrada

Da igreja paroquial da fotografia a preto e branco.

 

in  40 Poemas Periféricos”


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