João Garção, Sem título
Quando o
cortejo de jornalistas finalmente abandonou a Sala de Imprensa, saiu por sua
vez e dirigiu-se ao seu gabinete. Desejava beber um belo whisky, em jeito de
reconforto pelo esforço que fizera para aparecer diante das câmaras de
televisão com um ar interessado e confiante. Com o copo na mão e o nó da
gravata desfeito, acercou-se da janela. Lá fora, os cacilheiros faziam a
ligação com a outra margem e as águas estavam acinzentadas e lúgubres. Uma
chuva miudinha perseguia os transeuntes apressados. Assoou-se. Enquanto
dobrava o lenço branco, meticulosamente como era seu hábito, espreitou pelo
canto do olho para a aglomeração de gente que se tinha formado em redor do
velhote que acabara de ser atropelado. Um chiar de pneus e um barulho de
motor indicavam que o dono do veículo se tinha posto em fuga. Conseguiu ainda
ver o pequeno automóvel vermelho a saltitar pelo meio dos outros carros numa
fuga desesperada. Pigarreou, pousou o copo e arranjou-se para ir para casa. À saída, não
deu as boas-noites ao porteiro que, deferente (ou deveria dizer-se antes
subserviente?...) lhe abriu a enorme porta envidraçada com o habitual
salamaleque ridículo e com o tradicional sorriso forçado na face
impecavelmente barbeada. Cá fora, puxou
para cima a gola do sobretudo. Tinha a garganta frágil e sempre que se
resfriava a sua voz, na rádio, soava-lhe como a daqueles bêbedos que, das
mesas do fundo das tabernas, subitamente acordam e, com os olhos semicerrados
e a voz insegura e rouca, pedem outra garrafa. Mandou embora
o motorista e o guarda-costas que nos períodos de maior contestação social
habitualmente o acompanhava. Queria ser visto a caminhar sozinho pelas ruas
como qualquer outro cidadão pois de manhã, no Hemiciclo, fora acusado pela
oposição de fazer as compras de Natal rodeado de dois espadaúdos
guarda-costas. Ele, que os seus colegas europeus sempre elogiavam por
continuar a ir aos mesmos centros comerciais que já frequentava antes de
ocupar aquele importante cargo!... Sabia, obviamente, que acusações daquele
tipo eram indispensáveis no jogo político. No entanto, porque o tinham como
alvo, ao fim destes anos todos de vida política ainda as achava
desagradáveis. Caminhou sob
as arcadas para se resguardar da chuva tanto quanto possível. Entrou no
"Martinho" para se mostrar e pediu uma 'Água das Pedras' com uma
polidez por ventura excessiva, mas queria agradar. Um cauteleiro aproximou-se
e tentou vender-lhe jogo. Tinha uma pala no olho direito e uma prótese abaixo
do joelho esquerdo substituía o resto da perna. Parecia o produto duma
mistura de Camões com o pirata da "Ilha do Tesouro", pensou. Só lhe
faltava o papagaio... O homem começou subitamente a tossir com tal veemência
que parecia decidido a expelir os pulmões a qualquer preço. Afastou-se com um
salto, horrorizado e receoso de contrair alguma doença. Raio do Homem! Ir
tossir para um sítio daqueles! Não podia, muito simplesmente, ser educado e
ir libertar os seus micróbios para outro lado? Engoliu o
resto da água à pressa e saiu. Ali perto, numa banca de jornais, uma mulher
gorda com varizes do tamanho de minhocas bem alimentadas afastou um cão vadio
com um pontapé bem colocado. O animal acabara de defecar mesmo entre as
pilhas dos jornais OTradicional e o A Luta. "Eis um bicho
indeciso e com convicções políticas pouco profundas...", disse para si.
Sorriu da piada que acabara de inventar e lamentou que o seu secretário não
estivesse ali com ele para que pudesse coroar a graça com uma gargalhada
sonora e bajuladora. Enquanto andava, observou ainda o cão que, mais longe da
banca de jornais, começou a raspar no chão, satisfazendo o instinto. Foi
reflectindo sobre a atitude do animal: este bicho tinha sobreposto o seu
instinto à eficácia do seu gesto. Determinara a sua acção, portanto, mais por
influências hereditárias do que por uma questão de utilidade. O gesto inútil
de raspar no chão longe dos excrementos sobrepusera-se porque a voz da raça
falara mais alto do que a voz da razão! Sentiu uma forte afinidade
sentimental para com o cão. Na verdade, também ele, como político, era
determinado a tomar certas medidas inúteis e a encetar acções sem qualquer
eficácia para a melhoria do corpo social da Nação, as quais, no entanto, não
podiam deixar de ser tomadas já que, em política, o mais importante é o que
parece e não o que é! Estes
raciocínios foram interrompidos quando sentiu o chão fugir-lhe sob os pés.
Deu consigo estatelado no passeio, sem saber como. Virou-se e viu um cego
ajoelhado a tactear o empedrado, à procura de algo. Percebeu então que tinha
tropeçado na bengala do homem. Raio do cego! Por sua culpa, estava agora todo
sujo e molhado. E o seu belo guarda-chuva tinha um par de varetas partidas! Levantou-se e
estugou o passo em direcção às arcadas, esperançado que o cão ainda estivesse
no mesmo sítio. Entrou num café e comprou três sanduíches de presunto, para
com elas tentar atrair o animal. Um miúdo que vendia pensos olhou com
humildade para a comida que o empregado lhe embrulhava. Saiu
apressadamente, com o garoto atrás de si. Rejubilou quando viu o cão deitado
sobre pedaços de papelão. Muito lentamente, tentou chegar-se ao pé dele, mas
o bicho pressentiu-o e, abrindo os olhos, meteu o rabo entre as pernas e
afastou-se, assustado. Desembrulhou rapidamente as sanduíches e deitou uma
para perto do cão. Este, receoso, aproximou-se da comida mas não lhe tocou.
Deitou uma segunda, mas o resultado foi idêntico. E por fim a terceira, mas o
cão continuava assustado, com um olho nele e outro na comida. Aborrecido,
aproximou-se do animal, que novamente se afastou. Sem saber o que fazer,
olhou em redor e viu o miúdo dos pensos. "Compro-te meia dúzia se me
trouxeres aquele cão", disse-lhe, em desespero de causa. O rapaz
aproximou-se do cão e começou a falar com ele. Não conseguiu ouvir o que lhe
dizia mas o cão aproximou-se do miúdo e deixou-se acariciar ternamente. Por
fim, pegou no bicho ao colo e, a muito custo, levou-lho. Ficou radiante!
Fez-lhe festas e baptizou-o logo ali: Helmut, pois o cão era grande e gordo.
Tirou um euro da carteira para dar ao rapaz, que estava de cócoras a limpar
avidamente as sanduíches e a embrulhá-las com as páginas menos molhadas de
jornais deitados fora. Um problema se
lhe deparava agora: como faria para levar o cão para casa? Arrependeu-se de
ter mandado embora o motorista, pois agora já não lhe apetecia ser visto a
passear sozinho pelas ruas. Maldita ideia, esta! Resolveu
chamar um táxi, mas o condutor não o deixou entrar com o cão. Estúpido homem,
pensou! Ele saberia, por acaso, com quem estava a falar? Chamou um outro. E
depois outro e outro e por fim outro, mas nenhum acedeu a transportá-lo com o
cão. Desistiu de ir de táxi e esforçou-se por arranjar um pedaço de cordel
que depois atou ao pescoço do animal. Seguiu com este pelas ruas iluminadas
da Baixa. Como a noite já tinha caído há muito, tinhas esperanças de poder
passar despercebido. Apesar de
assustado, o cão trotava a seu lado. Um carro de polícia fez então soar a sua
estridente sirena. Para azar seu, travou mesmo ao pé de si, sobre um dos
inumeráveis buracos cheios de água, imobilizando-se mais à frente. Tentou
limpar-se rapidamente com o lenço mas era inútil: estava já completamente
encharcado. Do carro saíram quatro agentes que entraram num café e que pouco
depois saíram com um negro algemado a quem empurravam com violência. Este
debatia-se e gritava: "Eu só quis que me servissem! Tenho esse
direito!" mas ninguém lhe dava ouvidos. À porta do café, alguns
frequentadores invectivavam o negro e mandavam-no para a sua terra. A maioria
limitava-se a olhar, despreocupada. Aquela
situação era nova para si. Aproximou-se para ver melhor. "Para onde o
levam?", perguntou, cheio de curiosidade, ao homem que se achava ao seu
lado. Admirados com aquela pergunta, os polícias estacaram e fitaram-no.
"O que é que você disse?", perguntou um, aproximando-se. As pessoas
em seu redor afastaram-se lentamente, com as mãos nos bolsos. "Perguntei
para onde é que o levam", repetiu com voz firme. O polícia, perplexo,
observou-o demoradamente. Estava encharcado e com o cabelo em desalinho. O
sobretudo, de excelente qualidade, estava enlameado no peito. A camisa Triple
Marfel estava manchada de água suja e as calças de fazenda inglesa tinham um
enorme rasgão em ambos os joelhos. Na mão esquerda trazia o guarda-chuva com
algumas varetas partidas e na direita segurava a sua bela pasta preta e a
ponta do cordel desfiado em cuja outra extremidade estava o cão,
completamente imundo. O agente olhou-o nos olhos, hesitante, como se o
reconhecesse. Por fim virou-se para os colegas e soltou uma sonora
gargalhada: "Olhem-me para este 'pássaro'! O que nos havia agora de sair
em rifa!". E mirando-o novamente, após outra breve hesitação, ameaçou:
"Desapareça, homem, você não arranje problemas se não quer ter notícias
nossas!... Veja lá o que é que diz!...". Ficou atónito.
Nunca ninguém lhe tinha falado naquele tom de voz! Preparava-se para
responder quando em seu redor dois homens se aproximaram e lhe pegaram por um
braço, dizendo-lhe um deles com um sorriso apaziguador e de forma a que o
polícia ouvisse: "Tenha calma, amigo, tenha calma. Os homens estão a
fazer o serviço deles, não é? Ouça, venha ali dentro beber um copo e fica
tudo em bem, certo?... Está tudo bem, sr. guarda, este amigo vai ali connosco
beber um copo...ele está só cansado...". Os polícias meteram-se no
carro, olhando-o de soslaio. Quando partiram, o outro homem deu-lhe uma
palmada nas costas: "Vá-se lá embora, homem, não me
agradeça: isto temos que ser uns para os outros, não é verdade?
Haja é saúde, amigo, haja é saúde!...". Baixou os
olhos e afastou-se sem dizer uma palavra. Ia possuído por uma fúria mal
contida. Decidiu, primeiro, que no dia seguinte faria os telefonemas
necessários para tramar o polícia. Depois, mais calmo, pensou melhor e chegou
à conclusão que a culpa tinha sido apenas sua. Na verdade, porque demónios
resolvera fazer aquela pergunta? Estava verdadeiramente preocupado pela sorte
do negro? Claro que não, pois ele que não fosse parvo e não se metesse em
sarilhos! Se fosse um cidadão respeitador e atinado a polícia não o teria
levado preso, não é verdade? Não, a culpa fora sua, só sua, tinha que o
reconhecer! Além do mais, o seu aspecto estava muito longe de reproduzir a
dignidade inerente ao cargo que ocupava. Devia era dar-se por feliz por
ninguém o ter reconhecido naquela figura! Reconfortado
com estas reflexões e satisfeito consigo próprio por este humilde acto de
contrição, pensou numa forma de chegar rapidamente a casa. Mais do que nunca,
estava agora furioso consigo próprio pela ideia absurda de andar sozinho
pelas ruas, a pé e sem qualquer protecção. Que estupidez! Só desejava
ardentemente não ser visto nem achado. Passar despercebido e chegar depressa
a casa, era agora a palavra de ordem. Decidiu
apanhar um autocarro pois com aquelas filas e com a massa de gente a
precipitar-se para a porta talvez ninguém reparasse no cão. Como não sabia o
número do autocarro que passava ao pé de sua casa, resolveu pôr o seu ar mais
generoso e confiante, aquele que sempre punha quando algum jornalista lhe
colocava alguma pergunta incómoda, e dirigiu-se a duas velhotas. Colocou-se
então no fim da fila e ao fim de três quartos de hora conseguiu finalmente
entrar num autocarro. O cão tinha ajudado e não ladrara, pelo que o condutor
não dera pela sua presença. Não tinha
passe, nem senhas, mas uma estudante picara um módulo por ele, cheia de pena
do seu ar quase andrajoso. Este gesto, em vez de o sensibilizar, teve o
condão de o incomodar profundamente. Não gostava de se sentir em dívida com
ninguém e o facto de ser uma estudante ainda o aborreceu mais. Não gostava
deles, sempre prontos a andarem em algazarras, desafiando as instituições e o
normal evoluir da sociedade. Mas viu o acontecimento pelo prisma da
utilidade: a alternativa era ir a pé, pelo que teve que considerar que se
tratara de um incómodo bem pequeno em relação ao benefício. Sentou-se
junto de um reformado, que lhe ofereceu batatas fritas do pacote que acabara
de abrir. Recusou delicadamente mas com firmeza. Não queria familiaridades
nem confianças, só queria poder ir descansado para casa e nada mais. À sua
frente, no meio da confusão de entradas e saídas de passageiros, um sujeito
bem vestido abriu a mala de mão que uma senhora carregada de sacos tinha a
tiracolo e surripiou-lhe a carteira com uma destreza que o deixou
boquiaberto. Ao colocar a carteira entre um jornal dobrado ao meio, o
indivíduo olhou-o, certo de ter sido observado. Mas ele voltou rapidamente a
cara para a janela, fingindo-se muito interessado no andamento das obras que
tinham lugar por todo o lado. Quando lá fora
reconheceu ruas familiares, resolveu descer. Estava ainda um pouco longe de
casa mas não sabia as voltas que o autocarro ainda ia dar e ir a pé era agora
mais seguro. O
contentamento do filho ao ver o cão contrabalançou o espanto e a má-cara da
mulher, receosa que a vizinhança soubesse que tinham em sua casa um cão sem
"pedigree". E depois do
banho e do jantar sentiu uma enorme sonolência. As orações da noite, que
desde criança nunca se esquecia de proferir ajoelhado junto da bela cama de
cerejeira, souberam-lhe bem melhor pois sentiu que nesse estranho dia tinha
cumprido de forma irrepreensível os seus deveres ao subtrair à violência da
rua um animal da Criação. Feliz e satisfeito consigo próprio, meteu-se então
entre os lençóis com um suspiro prolongado que traduzia o quão aconchegado se
sentia no conforto do lar. Antes de adormecer, esticou o braço na direcção do
telefone da banca de cabeceira e retirou o auscultador do descanso. Devido ao
cargo que ocupava, lidava com pessoas que muitas vezes o incomodavam,
telefonando-lhe às horas mais impróprias numa atitude de indiferença para com
o merecido descanso dos outros, algo que ele, sempre que podia, não deixava
de condenar com a veemência que se impunha.
JG
in “Contos do centro do meio” |
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