quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

João Garção, O rapaz e o cão

 


João Garção, Sem título


Quando o cortejo de jornalistas finalmente abandonou a Sala de Imprensa, saiu por sua vez e dirigiu-se ao seu gabinete. Desejava beber um belo whisky, em jeito de reconforto pelo esforço que fizera para aparecer diante das câmaras de televisão com um ar interessado e confiante. Com o copo na mão e o nó da gravata desfeito, acercou-se da janela. Lá fora, os cacilheiros faziam a ligação com a outra margem e as águas estavam acinzentadas e lúgubres. Uma chuva miudinha perseguia os transeuntes apressados. Assoou-se. Enquanto dobrava o lenço branco, meticulosamente como era seu hábito, espreitou pelo canto do olho para a aglomeração de gente que se tinha formado em redor do velhote que acabara de ser atropelado. Um chiar de pneus e um barulho de motor indicavam que o dono do veículo se tinha posto em fuga. Conseguiu ainda ver o pequeno automóvel vermelho a saltitar pelo meio dos outros carros numa fuga desesperada. Pigarreou, pousou o copo e arranjou-se para ir para casa.

À saída, não deu as boas-noites ao porteiro que, deferente (ou deveria dizer-se antes subserviente?...) lhe abriu a enorme porta envidraçada com o habitual salamaleque ridículo e com o tradicional sorriso forçado na face impecavelmente barbeada.

Cá fora, puxou para cima a gola do sobretudo. Tinha a garganta frágil e sempre que se resfriava a sua voz, na rádio, soava-lhe como a daqueles bêbedos que, das mesas do fundo das tabernas, subitamente acordam e, com os olhos semicerrados e a voz insegura e rouca, pedem outra garrafa.

Mandou embora o motorista e o guarda-costas que nos períodos de maior contestação social habitualmente o acompanhava. Queria ser visto a caminhar sozinho pelas ruas como qualquer outro cidadão pois de manhã, no Hemiciclo, fora acusado pela oposição de fazer as compras de Natal rodeado de dois espadaúdos guarda-costas. Ele, que os seus colegas europeus sempre elogiavam por continuar a ir aos mesmos centros comerciais que já frequentava antes de ocupar aquele importante cargo!... Sabia, obviamente, que acusações daquele tipo eram indispensáveis no jogo político. No entanto, porque o tinham como alvo, ao fim destes anos todos de vida política ainda as achava desagradáveis.

Caminhou sob as arcadas para se resguardar da chuva tanto quanto possível. Entrou no "Martinho" para se mostrar e pediu uma 'Água das Pedras' com uma polidez por ventura excessiva, mas queria agradar. Um cauteleiro aproximou-se e tentou vender-lhe jogo. Tinha uma pala no olho direito e uma prótese abaixo do joelho esquerdo substituía o resto da perna. Parecia o produto duma mistura de Camões com o pirata da "Ilha do Tesouro", pensou. Só lhe faltava o papagaio... O homem começou subitamente a tossir com tal veemência que parecia decidido a expelir os pulmões a qualquer preço. Afastou-se com um salto, horrorizado e receoso de contrair alguma doença. Raio do Homem! Ir tossir para um sítio daqueles! Não podia, muito simplesmente, ser educado e ir libertar os seus micróbios para outro lado?

Engoliu o resto da água à pressa e saiu. Ali perto, numa banca de jornais, uma mulher gorda com varizes do tamanho de minhocas bem alimentadas afastou um cão vadio com um pontapé bem colocado. O animal acabara de defecar mesmo entre as pilhas dos jornais OTradicional e o A Luta. "Eis um bicho indeciso e com convicções políticas pouco profundas...", disse para si. Sorriu da piada que acabara de inventar e lamentou que o seu secretário não estivesse ali com ele para que pudesse coroar a graça com uma gargalhada sonora e bajuladora. Enquanto andava, observou ainda o cão que, mais longe da banca de jornais, começou a raspar no chão, satisfazendo o instinto. Foi reflectindo sobre a atitude do animal: este bicho tinha sobreposto o seu instinto à eficácia do seu gesto. Determinara a sua acção, portanto, mais por influências hereditárias do que por uma questão de utilidade. O gesto inútil de raspar no chão longe dos excrementos sobrepusera-se porque a voz da raça falara mais alto do que a voz da razão! Sentiu uma forte afinidade sentimental para com o cão. Na verdade, também ele, como político, era determinado a tomar certas medidas inúteis e a encetar acções sem qualquer eficácia para a melhoria do corpo social da Nação, as quais, no entanto, não podiam deixar de ser tomadas já que, em política, o mais importante é o que parece e não o que é!

Estes raciocínios foram interrompidos quando sentiu o chão fugir-lhe sob os pés. Deu consigo estatelado no passeio, sem saber como. Virou-se e viu um cego ajoelhado a tactear o empedrado, à procura de algo. Percebeu então que tinha tropeçado na bengala do homem. Raio do cego! Por sua culpa, estava agora todo sujo e molhado. E o seu belo guarda-chuva tinha um par de varetas partidas!

Levantou-se e estugou o passo em direcção às arcadas, esperançado que o cão ainda estivesse no mesmo sítio. Entrou num café e comprou três sanduíches de presunto, para com elas tentar atrair o animal. Um miúdo que vendia pensos olhou com humildade para a comida que o empregado lhe embrulhava.

Saiu apressadamente, com o garoto atrás de si. Rejubilou quando viu o cão deitado sobre pedaços de papelão. Muito lentamente, tentou chegar-se ao pé dele, mas o bicho pressentiu-o e, abrindo os olhos, meteu o rabo entre as pernas e afastou-se, assustado. Desembrulhou rapidamente as sanduíches e deitou uma para perto do cão. Este, receoso, aproximou-se da comida mas não lhe tocou. Deitou uma segunda, mas o resultado foi idêntico. E por fim a terceira, mas o cão continuava assustado, com um olho nele e outro na comida. Aborrecido, aproximou-se do animal, que novamente se afastou. Sem saber o que fazer, olhou em redor e viu o miúdo dos pensos. "Compro-te meia dúzia se me trouxeres aquele cão", disse-lhe, em desespero de causa. O rapaz aproximou-se do cão e começou a falar com ele. Não conseguiu ouvir o que lhe dizia mas o cão aproximou-se do miúdo e deixou-se acariciar ternamente. Por fim, pegou no bicho ao colo e, a muito custo, levou-lho. Ficou radiante! Fez-lhe festas e baptizou-o logo ali: Helmut, pois o cão era grande e gordo. Tirou um euro da carteira para dar ao rapaz, que estava de cócoras a limpar avidamente as sanduíches e a embrulhá-las com as páginas menos molhadas de jornais deitados fora.

Um problema se lhe deparava agora: como faria para levar o cão para casa? Arrependeu-se de ter mandado embora o motorista, pois agora já não lhe apetecia ser visto a passear sozinho pelas ruas. Maldita ideia, esta!

Resolveu chamar um táxi, mas o condutor não o deixou entrar com o cão. Estúpido homem, pensou! Ele saberia, por acaso, com quem estava a falar? Chamou um outro. E depois outro e outro e por fim outro, mas nenhum acedeu a transportá-lo com o cão. Desistiu de ir de táxi e esforçou-se por arranjar um pedaço de cordel que depois atou ao pescoço do animal. Seguiu com este pelas ruas iluminadas da Baixa. Como a noite já tinha caído há muito, tinhas esperanças de poder passar despercebido.

Apesar de assustado, o cão trotava a seu lado. Um carro de polícia fez então soar a sua estridente sirena. Para azar seu, travou mesmo ao pé de si, sobre um dos inumeráveis buracos cheios de água, imobilizando-se mais à frente. Tentou limpar-se rapidamente com o lenço mas era inútil: estava já completamente encharcado. Do carro saíram quatro agentes que entraram num café e que pouco depois saíram com um negro algemado a quem empurravam com violência. Este debatia-se e gritava: "Eu só quis que me servissem! Tenho esse direito!" mas ninguém lhe dava ouvidos. À porta do café, alguns frequentadores invectivavam o negro e mandavam-no para a sua terra. A maioria limitava-se a olhar, despreocupada.

Aquela situação era nova para si. Aproximou-se para ver melhor. "Para onde o levam?", perguntou, cheio de curiosidade, ao homem que se achava ao seu lado. Admirados com aquela pergunta, os polícias estacaram e fitaram-no. "O que é que você disse?", perguntou um, aproximando-se. As pessoas em seu redor afastaram-se lentamente, com as mãos nos bolsos. "Perguntei para onde é que o levam", repetiu com voz firme. O polícia, perplexo, observou-o demoradamente. Estava encharcado e com o cabelo em desalinho. O sobretudo, de excelente qualidade, estava enlameado no peito. A camisa Triple Marfel estava manchada de água suja e as calças de fazenda inglesa tinham um enorme rasgão em ambos os joelhos. Na mão esquerda trazia o guarda-chuva com algumas varetas partidas e na direita segurava a sua bela pasta preta e a ponta do cordel desfiado em cuja outra extremidade estava o cão, completamente imundo. O agente olhou-o nos olhos, hesitante, como se o reconhecesse. Por fim virou-se para os colegas e soltou uma sonora gargalhada: "Olhem-me para este 'pássaro'! O que nos havia agora de sair em rifa!". E mirando-o novamente, após outra breve hesitação, ameaçou: "Desapareça, homem, você não arranje problemas se não quer ter notícias nossas!... Veja lá o que é que diz!...".

Ficou atónito. Nunca ninguém lhe tinha falado naquele tom de voz! Preparava-se para responder quando em seu redor dois homens se aproximaram e lhe pegaram por um braço, dizendo-lhe um deles com um sorriso apaziguador e de forma a que o polícia ouvisse: "Tenha calma, amigo, tenha calma. Os homens estão a fazer o serviço deles, não é? Ouça, venha ali dentro beber um copo e fica tudo em bem, certo?... Está tudo bem, sr. guarda, este amigo vai ali connosco beber um copo...ele está só cansado...". Os polícias meteram-se no carro, olhando-o de soslaio. Quando partiram, o outro homem deu-lhe uma palmada nas costas: "Vá-se lá embora, homem, não me agradeça: isto temos que ser uns para os outros, não é verdade? Haja é saúde, amigo, haja é saúde!...".

Baixou os olhos e afastou-se sem dizer uma palavra. Ia possuído por uma fúria mal contida. Decidiu, primeiro, que no dia seguinte faria os telefonemas necessários para tramar o polícia. Depois, mais calmo, pensou melhor e chegou à conclusão que a culpa tinha sido apenas sua. Na verdade, porque demónios resolvera fazer aquela pergunta? Estava verdadeiramente preocupado pela sorte do negro? Claro que não, pois ele que não fosse parvo e não se metesse em sarilhos! Se fosse um cidadão respeitador e atinado a polícia não o teria levado preso, não é verdade? Não, a culpa fora sua, só sua, tinha que o reconhecer! Além do mais, o seu aspecto estava muito longe de reproduzir a dignidade inerente ao cargo que ocupava. Devia era dar-se por feliz por ninguém o ter reconhecido naquela figura!

Reconfortado com estas reflexões e satisfeito consigo próprio por este humilde acto de contrição, pensou numa forma de chegar rapidamente a casa. Mais do que nunca, estava agora furioso consigo próprio pela ideia absurda de andar sozinho pelas ruas, a pé e sem qualquer protecção. Que estupidez! Só desejava ardentemente não ser visto nem achado. Passar despercebido e chegar depressa a casa, era agora a palavra de ordem.

Decidiu apanhar um autocarro pois com aquelas filas e com a massa de gente a precipitar-se para a porta talvez ninguém reparasse no cão. Como não sabia o número do autocarro que passava ao pé de sua casa, resolveu pôr o seu ar mais generoso e confiante, aquele que sempre punha quando algum jornalista lhe colocava alguma pergunta incómoda, e dirigiu-se a duas velhotas. Colocou-se então no fim da fila e ao fim de três quartos de hora conseguiu finalmente entrar num autocarro. O cão tinha ajudado e não ladrara, pelo que o condutor não dera pela sua presença.

Não tinha passe, nem senhas, mas uma estudante picara um módulo por ele, cheia de pena do seu ar quase andrajoso. Este gesto, em vez de o sensibilizar, teve o condão de o incomodar profundamente. Não gostava de se sentir em dívida com ninguém e o facto de ser uma estudante ainda o aborreceu mais. Não gostava deles, sempre prontos a andarem em algazarras, desafiando as instituições e o normal evoluir da sociedade. Mas viu o acontecimento pelo prisma da utilidade: a alternativa era ir a pé, pelo que teve que considerar que se tratara de um incómodo bem pequeno em relação ao benefício.

Sentou-se junto de um reformado, que lhe ofereceu batatas fritas do pacote que acabara de abrir. Recusou delicadamente mas com firmeza. Não queria familiaridades nem confianças, só queria poder ir descansado para casa e nada mais. À sua frente, no meio da confusão de entradas e saídas de passageiros, um sujeito bem vestido abriu a mala de mão que uma senhora carregada de sacos tinha a tiracolo e surripiou-lhe a carteira com uma destreza que o deixou boquiaberto. Ao colocar a carteira entre um jornal dobrado ao meio, o indivíduo olhou-o, certo de ter sido observado. Mas ele voltou rapidamente a cara para a janela, fingindo-se muito interessado no andamento das obras que tinham lugar por todo o lado.

Quando lá fora reconheceu ruas familiares, resolveu descer. Estava ainda um pouco longe de casa mas não sabia as voltas que o autocarro ainda ia dar e ir a pé era agora mais seguro.

O contentamento do filho ao ver o cão contrabalançou o espanto e a má-cara da mulher, receosa que a vizinhança soubesse que tinham em sua casa um cão sem "pedigree".

E depois do banho e do jantar sentiu uma enorme sonolência. As orações da noite, que desde criança nunca se esquecia de proferir ajoelhado junto da bela cama de cerejeira, souberam-lhe bem melhor pois sentiu que nesse estranho dia tinha cumprido de forma irrepreensível os seus deveres ao subtrair à violência da rua um animal da Criação. Feliz e satisfeito consigo próprio, meteu-se então entre os lençóis com um suspiro prolongado que traduzia o quão aconchegado se sentia no conforto do lar. Antes de adormecer, esticou o braço na direcção do telefone da banca de cabeceira e retirou o auscultador do descanso. Devido ao cargo que ocupava, lidava com pessoas que muitas vezes o incomodavam, telefonando-lhe às horas mais impróprias numa atitude de indiferença para com o merecido descanso dos outros, algo que ele, sempre que podia, não deixava de condenar com a veemência que se impunha.

 

                                                                                         JG

                                                     in “Contos do centro do meio”


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