ns, A música
A música, imagem da alma, como referiu com
propriedade Frederich Herzfeld, tem sido uma segura acompanhante do Homem
embora só tardiamente o tivesse sido da sociedade. Com efeito, se nos
lembrarmos que a primeira escola de música – ainda estabelecida em termos muito
artesanais – foi criada em mil e nove por Saint-Gall e que o primeiro público
musical (ou seja, reunido com o fito de ouvir a música por si mesma) só começou
a existir no ano de 1725, com a criação por Philidor dos chamados “concertos
espirituais”, começaremos a perceber que, como uma âncora profundamente fixada
no mar societário, a música enquanto fenómeno ou, para dizer doutra maneira, a
música enquanto entidade criadora de acontecimentos partilhados por milhares ou
por milhões é um dado relativamente recente, tanto mais que os meios técnicos
de difusão só neste século se tornaram uma presença quase absoluta.
Nos dias de hoje, em que vivemos rodeados de
sons e de timbres organizados de forma lógica (e relembro que foi somente no
séc. XVIII, com Mozart, que o timbre começou a ser utilizado de modo
significativo e criativo) é-nos difícil entender quanto a música estava
afastada das grandes massas populares como fruição habitual e quotidiana. Como
refere apropriadamente Konrad Riemann, para o geral da população havia, nos
dias de semana, as frases musicais ritmadas ao jeito de pequenas canções que
sublinhavam o trabalho feito ou a fazer; no domingo era a canção entoada quando
havia festas mas, acima de tudo, a presença do canto religioso, frequentemente
expresso mediante a monódia gregoriana.
Antes disso – e a memória mais afastada vai
só até 40 mil anos, documentados no fresco de Ariège, na gruta dos Três Irmãos
em França – a música seria um sublinhar de fastos mágicos ou ritos religiosos,
pois era coisa de deuses e de alguns homens que se haviam subtraído ao seu
presumido controle.
A música era apanágio do mago, do sacerdote
ou do monarca, fracção espiritual que proporcionava um contacto directo com as
divindades e os seus áulicos.
Contudo, no nosso tempo a música espalhou-se
pelo imaginário, dando azo a muitas figurações sociais, políticas e
psicológicas. Goebbels, por exemplo, com a sua fina intuição de patifório
esclarecido, conhecia bem o peso que tem, ante os basbaques, o desfilar dum
cortejo precedido duma poderosa charanga e fez disso um uso infernalmente
manipulador. Também os nossos meios de comunicação de massas manejam bem esta
matéria: repare-se na forma psicologicamente bem estudada com que nos
bombardeiam os ouvidos, repetindo até à saciedade temas de sucesso (as mais das
vezes de pouca qualidade) entoados por vedetas primárias que eles próprios
criam. Aliás, o consabido ambiente musical dito ligeiro dispensa-me de maiores
comentários.
Seja a música – como alguns pretendem – uma
variante da linguagem ou, como outros defendem, a abstracção da linguagem
levada às últimas consequências, a verdade é que constitui um dado
incontornável do nosso tempo. É, em suma, um dos componentes do grande
imaginário actual para além de ser, nos casos mais exemplares – como por
exemplo em Bach, Mozart ou Schubert – talvez um sinal com que a “música das
esferas” chega até nós para nos dar testemunho profundo do rosto secreto da
eternidade.
ns
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