segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Dois poemas de Maria Estela Guedes

 




Cesarianas e casuarinas

 

Passeios nas tardes de domingo

Pelo Jardim de Teixeira Pinto

Empurrando o carrinho com o bebé da D. Otília

Nascido entre dores e cortes de cesariana…

A estátua do militar no alto do outeiro

A dominar toda a cidade de Bissau

Mira ao longe as evoluções

Dos milicianos e da Mocidade Portuguesa

Diante do palácio do governador e do obelisco

No centro da Praça do Império,

Coroado com a legenda “Ao esforço da Raça”.

Hoje é o mesmo obelisco mas diversa a legenda:

“Monumento aos Heróis da Independência”.

 

Todas as raças se esforçaram,

Desde os muito brancos aos muito pretos

Passando pelos muito e quase nada mulatos

A que indistintamente se chamava “cabo-verdianos”.

Para enorme estranheza, no Alto Crim vivia um homem

Sem pêlos nem cabelos, mais orelhudo

Que um morcego, muito branco,

Apesar de ser filho de negros.

Era o Albino Orelhas e trabalhava na Granja

Para o Governo.

 

As casuarinas do Jardim de Teixeira Pinto

- O Pacificador -

Abrigavam olhares apaixonados na distância

Mais ou menos curta

O coração a pular no peito

Sempre o encontro anunciado

Pela melodia assobiada

Sempre com alguma diferença

Para não a confundires com a de algum pássaro.

Ah, as casuarinas de domingo

Abrindo-se como cesarianas...

 

Nha cretcheu ta papiando

Naquele familiar assobio

O coração na boca e a cara afogueada

Aquela inesquecível melodia

Sempre com alguma diferença

Para não o confundires com um pássaro.

 


Pescando bagres

 

Um dia o pai levou-te ao forte da Amura

Com os seus canhões de bronze

Depois desceste com ele até ao cais

Onde estava atracado um dos barcos em que

Costumáveis viajar até à metrópole

 

Era o navio Ana Mafalda e pertencia à CUF, como o Alfredo da Silva - nome do empresário dono da CUF. Creio que a Quimigal, na outra banda, frente a Lisboa, descende desse antigo empório industrial.

 

Ainda vos vejo sentados lado a lado

- Ao longe o ballet das canoas em contraluz

E mais ainda o esboço a carvão do misterioso

Ilhéu do Rei –

Puxaste a linha várias vezes e uma ou outra

Trazia um peixote grosso de áspera pele

Sem escamas

Pelo menos tens essa imagem na memória

Instantes felizes em que a lembrança

Traz aos olhos o rosto ainda novo e bonito

Desse grande pescador de devaneios

Que lia à mesa, mas volta e meia era teu pai.

 

                                                  in “Chão de Papel”


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