Dezassete
anos (1) depois da sua morte caiu
sobre a obra de Santos Fernando (1927-1975) um silêncio tenebroso. É tão
difícil encontrar nas livrarias os treze livros que publicou como encontrar nas
revistas e jornais literários um texto de estudo e divulgação da sua obra. Esta
pequena viagem à volta dos prefácios dos seus livros surge como um alerta a
quem ainda não o descobriu e uma chamada de atenção a quem já conhece. Todos
sabemos o significado da palavra «prefácio» (discurso preliminar, inserto no
princípio de um livro) mas Santos Fernando utilizou o prefácio como instrumento
privilegiado de comunicação com o leitor: neles se pode descobrir o perfil
biográfico ao lado da nota sobre a sociologia da literatura, relações com a
crítica, problemas da fortuna editorial e da precária posteridade. Sem esquecer
um olhar sobre os disparates do Mundo. Sobre a biografia lê-se em Os Cotovelos de Vénus: «Dizem que nasci
em Lisboa, na Travessa do Moinho de Vento à Lapa, no dia 22 de Janeiro de 1927,
num quarto exíguo onde mal couberam as três balas disparadas da Cova da Moura,
onde se cozinhava uma revolução» E em Areia
nos Olhos: «A nossa rua é algo que, mais tarde ou mais cedo, começa a
significar alguma coisa para nós. A sua calma secular, aureolada por uma
tradição de suspiros de amantes, escondidos em arcas encouradas, vejo-a agora
fugir em montões de terra e pedra, que estrondosas viaturas transportam num
frenesim apocalíptico.» Sobre o ofício de escritor lê-se em Os Cotovelos de Vénus: «O escritor,
parte integrante da vida da sua época, observador firme no meio social, bastas
vezes insociável, não pode desempenhar o papel frio e frívolo que volta as
costas à cena. A sua missão lógica é estudar a geração a que pertence, de molde
a auxiliá-la, gritando-lhe os podres, caricaturando-a, amando-a, em suma.» Mais
tarde, em As Uvas Estão Maduras: «A
literatura é uma arte famélica numa época de simbioses, mitos e contrastes –
opinião para a qual se pode fornecer o seguinte exemplo: naquele prédio há um
agregado familiar que morre vítima da fome e uma família que rebenta de
indigestão.» Finalmente em Sexo 20:
«Não se escrevem já livros extensos. Livros longos e mulheres enormes, assustam
e o homem deixou de ter tempo para leituras excessivas.» Sobre o problema da
posteridade descobrimos em Areia nos
olhos: «Convencionou-se deixar passar o préstito dos artistas para, após
terceira badalada, se invocarem então as glórias do defunto, depois da crítica
severa dos íntegros infalíveis os ter apunhalado em vida. E eu pergunto: será
fundamental, imprescindível chegar ao estado de fertilizante, de repolho, de
fóssil, para finalmente se nascer?». Ou em As
Uvas Estão Maduras: «Explorado como uma mina de antracite resta ao escritor
a imortalidade que, se um dia chega, é já muito depois da transladação dos ossos,
dos poucos, ainda assim, que resistiram aos prodigiosos roedores.» Sobre a
importância dos prefácios lemos em A
Bolsa do Canguru: «Perguntar se alguém costuma escrever os prefácios dos
seus livros ou dá-los a outros para que os façam não será o mesmo que inquirir
duma pessoa se manda fazer os filhos ao estrangeiro?» Já em As Uvas estão Maduras escrevia: «Eu
gosto dos prefácios rosados, redondos, rijos como os seios que despontam às
jovens colegiais, quase sem darem por isso, entre as aulas de ginástica e de
físico-química. O prefácio é o meu living
room. Onde eu aguardo os amigos. Os que gostam de dois dedos de conversa.»
Em Os Cotovelos de Vénus reafirmava:
«Escrevo estas linhas porque estimo os prefácios que são para a literatura o
que um beijo é para as grandes paixões. Mas um prefácio nunca transmitirá
bacilos.» Em Seis Gramas de Paraíso
advertia: «O Mundo é, às vezes, pequeno para os Homens que cresceram demasiado
e – sobretudo – para os que incharam soprados pelo fole hiperóxido da toleima.
Talvez que num Mundo hipotético mas bem intencionado, as falsas convicções de
vaidade se vistam com o rigor da modéstia; os problemas da matemática diária se
resolvam no quadro negro da branca equidade…» E em Areia nos Olhos denunciava o esplendor gritante da nossa época:
«Noites de núpcias de alta roda, ventiladas pela revista mundana, até ao
pormenor rendilhado da íntima cueca; espirros de magnate com repercussões de
abalo telúrico; frases desmioladas de um médio-centro lançadas à venta do
indígena como relevantes descobrimentos científicos…» Mas se é preciso
defrontar o Mundo com Humor – o que é o Humor? Talvez aquilo que diz o prefácio
de A Bolsa do Canguru: «Eça de
Queirós afirmava que uma só gargalhada chegaria para abalar uma instituição mas
isto só é adaptável à nossa época se a instituição estiver a cair de podre.» Ou
mais adiante no mesmo prefácio: «O humorismo, muitas vezes, não é uma
gargalhada mas um silêncio que se faz à sua volta. Beaudelaire era da opinião
de que o riso é provocado por uma quebra de equilíbrio.» Como nota final estas
duas frases amargas dum autor que teve um livro publicado no Círculo de
Leitores em 1971 (Consolação número três)
no qual afirmou: «Com quem eu me entendo ainda melhor é comigo mesmo. Quando
não estou irreflectidamente ao pé de mim.» No prefácio de Sexo 20 advertia: «A cozinha é o cérebro dos povos; o coração a
alcova. As bibliotecas foram condenadas.» Anos antes em Os Cotovelos de Vénus tinha sido profético: «Morrem breve os que,
escrevendo para viver, acabam por escrever do mal que vivem.»
OS
LIVROS DE SANTOS FERNANDO
A, Ante, Após, Até
(1957), Seis gramas de Paraíso
(1959), A Bolsa do Canguru (1961), Areia nos Olhos (1963), Os cotovelos de Vénus (1963), Tempo de roubar (1964), As Uvas estão Maduras (1965), Consolação número três (1968), Os grilos não cantam ao Domingo (1969), A sopa dos ricos (1970, Absurdíssimo (1972), A árvores dos sexos (1974) e Sexo 20 (1975)
(1)
O
texto é de 1993 (Revista Ler nº 22) e entretanto foi publicado (Editora
Sulfúria) o livro «Sexo 20»
José
do Carmo Francisco
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