segunda-feira, 12 de outubro de 2020

As espécies poéticas

 

ns


    Sabe-se que há pessoas felizes - segundo me confidenciou o meu assistente de bordo, que por coincidência crepuscular ou madrugadora ainda é parente do daimon do pensador grego - que colhem os seus textos (poemaria sentimental ou quotidiana, versalhada esotérica com e sem rima, naco de prosa ou entradazinha diarística relativamente sobranceira ou merencória) ao deambular pelas ruas, no escuro dum parque, à porta duma estalagem ou na dulcíssima e profícua casa-de-banho duma amante ocasional ou dum consistente companheiro de estúrdia.

   Assim como quem apanha, de passagem, no estrépito gratificante de um bar de luxo, meia-dúzia de amêndoas torradas ou um punhadinho de ervilhanas descascadas ao passar pelo balcão a caminho duma mesa onde os convivas o esperam com as peças de resistência.

   Pelo menos é o que se extrai, se bem lidos, da frequentação de alguns autores e de matérias de aturado estudo de costumes, de enviesados momentos de profunda criação (alheia) que nos fazem, nos melhores casos, salivar com apetite.

   Dizia Guillaume de Poitiers, numa bela tarde que também pode ter sido noite ou manhã, que fizera um poema de nada. Por seu turno, Saint-John Perse afirmou algures que a sua aspiração maior era fazer um poema sobre nada. Seria o nada que é tudo como artilhou o sagaz e melancólico portuguesinho de Durban (South África)? Mas é claro que por detrás destas pequenas e aparentes boutades vive e sobressalta-se uma profunda contemplação do Universo das probabilidades, no género das que Bernard Trevisan punha no seu tempo em equação.

   E, detalhe profundamente contemporâneo mas conjunturalmente inquietante embora sem metafísicas, tende imensos cuidados vós que me ledes: se mal vos precatardes, pelo descuido dum dedo podereis mandar interactivamente para a inexistência definitiva e sem piedade um lindíssimo trecho que acabastes de escrevicar, o que pode dar choro e ranger de dentes sem ponta de literatura dramática. Em tudo terá também de haver, sem desdouro, um pouco de ternura!

    A verdade é que, nos tempos mais chegados, por mor da modificação de usos societários (?) sai-se para o lirismo como se sai para a caça. E, conforme me esclarecem, isso dá-se tanto em Chicago como em Bruges, tanto em Edimburgo ou Lyon como no Funchal, no Porto, em Nápoles, em Lisboa. Serão aspectos da mundialização, do aquecimento global dos corações e dos cérebros postos à prova pelos que traçam (os Bielderbergs? os Opus Dei? os aqueles que nem é bom nomear para não se ficar feito em estilhas?) as nossas folhas de destino sobre o planeta?

   (Antes de passar para outro continente, continuando todavia a juntar alhos e bugalhos, permitam-me entretanto que proceda a alguns agradecimentos completamente filhos de uma comoção muito aparentada com certa inocência que me foi escapando devido à safra dos anos e às más companhias que sempre nos estorvam antes de as pontapearmos com decisão: a Axel Munthe por ter escrito tudo o que escreveu; a Mikhail Bulgakov por não ter escrito o que queriam que escrevesse; a Jean Husson por ter andado pouco com os gandulos das letras com quem queriam aparentá-lo; a Silver Kane por ser também Enrique Moriel e Francisco González Ledesma, além de possivelmente outros na vasta pradaria dos seus afectos; a Alain Decaux por ter narrado, em directo e de viva voz na televisão, todas as suas surtidas históricas que só depois, razoavelmente mais tarde, iria passar ao papel – feito notável que só um herói das letras conseguiria; a Sherlock Holmes e Poirot por terem existido; a Conan Doyle e Agatha Christie por não terem existido, excepto com a lupa e o cachimbo e o bigodinho roubados às suas criaturas; a Cézanne por ter sido apenas pintor; a Schubert por ter sido apenas compositor e músico; a Malte Laurids Brigge por não ser nem um a coisa nem outra; por último, mas não finalmente, a Rilke por ter sido tudo inclusivamente secretário particular de Rodin, que como poderia escrever outro companheiro da corda não entrava nesta estória; e a alguns ibéricos e lusitanos por o terem continuado a ser, não sendo alanos ou mouros).

    Mas dizia eu que se vai saindo para o lirismo como se sai para a caça. Nos últimos anos de civilização certos quadrantes aumentaram extraordinariamente o apuro da sua pituitária espiritual. A mistura em partes desiguais de carne de primeira e de segunda, ou mesmo de terceira ou quarta, vem permitindo uma transubstanciação que muitos julgariam inimaginável. Os gourmets da literatura não são, evidentemente, todos do mesmo género. Há felizmente nuances compensadoras. E se é um facto que se subdividem em dois grandes sectores – o escarlate e o cinzento, sendo o primeiro de tendência devoradora e o segundo raciocinadora – isso não implica o desaparecimento dos que vêem na poesia algo mais que uma tarefa ou uma fatalidade. Por enquanto – o panorama pode mudar.

   Há contudo variações insuspeitadas e não estou a lançar uma indirecta, garanto, àquele ensaísta genial que uma vez vi ao vivo numa sessão em Cascais e que afirmou com pujança que nunca nada tinha sido criado no programa do Bernard Pivot, o que não o impediu de um mês depois lá ter estado a convite, de face risonha e radiante e engrolando seus conceitos lusos que ora se engelham ora se distendem como se fossem bonecos insufláveis.

   Há o lirismo para comemorações patrióticas progressistas ou casamenteiras de estadão, para desforços conservadores, para amores infelizes, para gestos sociais diversos; o lirismo circunspecto, diríamos universitariante, em timbres secos e escanhoados, preciso e conciso como o relatório de um conselho de administração, ou o mais exaltado ainda que científico, sendo este uma variante algo descabelada do anterior. Digamos – mais pão pão, queijo queijo.

   Segundo julga saber-se, há poemas que não convém serem deglutidos de manhã: pesam no bucho, criam soluços e azia. De modo que é mais aconselhável tomá-los à tardinha, quando os apetites já se locupletaram com meia dúzia de canalhices bem rimadas ou uma pratada de sonetos à marinheira ou com todos os matadouros.

   A verdadeira vida está ausente, dizia Rimbaud. Ausente, no entender de alguns gastrónomos que por vezes também versejam – gastrónomos premiados, se calha, pelos salões de jantar letrados - como as narcejas, as galinholas, as lebres e as perdizes. A caça espiritual ainda será, se os fados ajudarem, uma realidade peculiar.

   Em certas alturas, o pesquisador-amador das várias espécies poéticas está particularmente inclinado para a amável prática desta salutar manducação: de alma à bandoleira, com boas reservas de cartuchos de escolaridade obrigatória no cinturão, facanejo de aço carbónico na ilharga, ei-los que partem para os lugares apropriados.

  Nos montes e valados distinguem-se então minúsculas figuras movendo-se ora ágil e graciosamente, ora mais pesadamente; uns mais ardilosamente que outros lá se acocoram, armadilham, tocaiam, simulam. E finalmente estendem a presa com dois ou três certeiros balázios.

  No fim, chegado o crepúsculo, aconchegadas as matilhas no palheiro ou no pátio, ao redor da grande mesa de madeira de pinho grosseiro ou de carvalho mal desbastado, abancam os amantes desta actividade venatória. Todo o dia o sol lhes ondeou sobre as frontes, queimando-lhes as faces, crestando-lhes os olhos e a vivacidade. Uma paz muito suave os prende agora à fraternal roda de congéneres. Da cozinha já chega até aos narizes dos convivas o cheiro picante dos pitéus: Camões guisado, Lorca salteado, Antero com rodelinhas de paio, Neruda com alcachofras na caçarola, Pessoa com vinho grego, Régio frito com batatinhas às rodelas, Pascoaes assado com uma gota de limão prudente. (Eugénio, por distracção da cozinheira, primeiro ficara meio cru, depois demasiado passado).

    No fim virão as sobremesas diversas: vates novos, postos em remolhão de vinho do Porto durante horas, a embeberem-se, para fazerem contraste com as arrufadas de Coimbra e as queijadas de Sintra espirituais, com sabores e com doçuras a dar para o selvagem e o inusitado (e que até requentadas calam no gosto, entrada a hora da ceia).

    Lá fora crescem luzes no céu: Sírius, Canis Minor, o sete-estrelo, o brilho nostálgico de Vega que na Caldeia inspirava magos e arquitectos (talvez, como alguns cá, traçando por vezes seu versinho no fim dum lauto repasto).

    Se o tempo é de grilos, ralos e cigarras ei-los que cantam ajudando à festa. Mas sempre, por sobre a massa pura das árvores e o negrume palpitante da noite estrelada, se expande um ruído difuso, amplo, que conviria ser – para que tudo estivesse a carácter – o filosófico rolar das esferas do universo.

   Seja como for, tenho para mim que as espécies poéticas ainda irão estar intensamente noutros locais privilegiados e privilegiadores – e que possibilitarão menos canseira - as grandes superfícies comerciais aprazíveis e acolhedoras onde por ora praticamente só se mercam produtos para bater: romances, novelas, robustas casquinadas políticas, memorialismo relativamente pindérico.

   Mais frescas e nutritivas (porque sujeitas ao congelamento eficaz e benéfico que lhes preserva os elementares), mais baratas e abundantes, terão ademais o aliciante do diploma e certificado de garantia. É aliás assim que tem de se proceder em sociedade organizada e moderna. Claro que a caça pode continuar, deve continuar, ninguém pretende hostilizar a surtida cinegética. No entanto dá obviamente um certo conforto saber-se que há nas bancas, estimuladas pela tecnologia, espécies prontinhas para a festança quando calham de ser subitamente desejadas.

   Enfim, será um quadro apropriado onde poderá talvez, até, achar-se um bom naco de felicidade. Havendo, mesmo, lugar para as surpresas porque existirão concerteza aspectos não contemplados nos manuais de civilidade obrigada a mote. Poderão inclusivamente propor-se, pelo seguro, interessantes variações: sonetilhos escalfados, elegias torradinhas, odes com mel e pinhões, haikais empapados em uísque ou no proverbial saké para os puristas. O espanto ganhará o seu justo lugar na sensibilização das línguas – mesmo mortas – através de uma ou outra distribuição fortuita mas enquadrada de provérbios e redondilhas.

     Entraremos no domínio da poesia quase perfeita, ora de cariz labirintiforme ora de raiz levemente mística. Às tantas, subindo verticalmente na bolsa de valores da existência como as pirites neo-zelandezas ou o café do Calulo.

   Um tom rosado irá paulatinamente cobrindo as faces outrora lívidas dos cidadãos alfabetizados.

   E tudo findará, evidentemente, por uma poderosa manducação geral só detida nos limites da antropofagia.

   Bastante épica.

 

                                                                  ns


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