Sabe-se que há pessoas felizes - segundo me
confidenciou o meu assistente de bordo, que por coincidência crepuscular ou
madrugadora ainda é parente do daimon
do pensador grego - que colhem os seus textos (poemaria sentimental ou
quotidiana, versalhada esotérica com e sem rima, naco de prosa ou entradazinha
diarística relativamente sobranceira ou merencória) ao deambular pelas ruas, no
escuro dum parque, à porta duma estalagem ou na dulcíssima e profícua casa-de-banho
duma amante ocasional ou dum consistente companheiro de estúrdia.
Assim como quem apanha, de passagem, no
estrépito gratificante de um bar de luxo, meia-dúzia de amêndoas torradas ou um
punhadinho de ervilhanas descascadas ao passar pelo balcão a caminho duma mesa
onde os convivas o esperam com as peças de resistência.
Pelo menos é o que se extrai, se bem lidos,
da frequentação de alguns autores e de matérias de aturado estudo de costumes,
de enviesados momentos de profunda criação (alheia) que nos fazem, nos melhores
casos, salivar com apetite.
Dizia Guillaume de Poitiers, numa bela tarde
que também pode ter sido noite ou manhã, que fizera um poema de nada. Por seu turno, Saint-John Perse
afirmou algures que a sua aspiração maior era fazer um poema sobre nada. Seria o nada que é tudo como artilhou o sagaz e melancólico portuguesinho
de Durban (South África)? Mas é claro que por detrás destas pequenas e
aparentes boutades vive e
sobressalta-se uma profunda contemplação do Universo das probabilidades, no
género das que Bernard Trevisan punha no seu tempo em equação.
E, detalhe profundamente contemporâneo mas
conjunturalmente inquietante embora sem metafísicas, tende imensos cuidados vós
que me ledes: se mal vos precatardes, pelo descuido dum dedo podereis mandar
interactivamente para a inexistência definitiva e sem piedade um lindíssimo
trecho que acabastes de escrevicar, o que pode dar choro e ranger de dentes sem
ponta de literatura dramática. Em tudo terá também de haver, sem desdouro, um
pouco de ternura!
A verdade é que, nos tempos mais chegados,
por mor da modificação de usos societários (?) sai-se para o lirismo como se
sai para a caça. E, conforme me esclarecem, isso dá-se tanto em Chicago como em
Bruges, tanto em Edimburgo ou Lyon como no Funchal, no Porto, em Nápoles, em
Lisboa. Serão aspectos da mundialização, do aquecimento global dos corações e
dos cérebros postos à prova pelos que traçam (os Bielderbergs? os Opus Dei? os
aqueles que nem é bom nomear para não se ficar feito em estilhas?) as nossas
folhas de destino sobre o planeta?
(Antes de passar para outro continente,
continuando todavia a juntar alhos e bugalhos, permitam-me entretanto que
proceda a alguns agradecimentos completamente filhos de uma comoção muito aparentada
com certa inocência que me foi escapando devido à safra dos anos e às más
companhias que sempre nos estorvam antes de as pontapearmos com decisão: a Axel
Munthe por ter escrito tudo o que escreveu; a Mikhail Bulgakov por não ter
escrito o que queriam que escrevesse; a Jean Husson por ter andado pouco com os
gandulos das letras com quem queriam aparentá-lo; a Silver Kane por ser também
Enrique Moriel e Francisco González Ledesma, além de possivelmente outros na
vasta pradaria dos seus afectos; a Alain Decaux por ter narrado, em directo e
de viva voz na televisão, todas as suas surtidas históricas que só depois,
razoavelmente mais tarde, iria passar ao papel – feito notável que só um herói
das letras conseguiria; a Sherlock Holmes e Poirot por terem existido; a Conan
Doyle e Agatha Christie por não terem existido, excepto com a lupa e o cachimbo
e o bigodinho roubados às suas criaturas; a Cézanne por ter sido apenas pintor;
a Schubert por ter sido apenas compositor e músico; a Malte Laurids Brigge por não
ser nem um a coisa nem outra; por último, mas não finalmente, a Rilke por ter
sido tudo inclusivamente secretário particular de Rodin, que como poderia
escrever outro companheiro da corda não entrava nesta estória; e a alguns
ibéricos e lusitanos por o terem continuado a ser, não sendo alanos ou mouros).
Mas dizia eu que se vai saindo para o
lirismo como se sai para a caça. Nos últimos anos de civilização certos
quadrantes aumentaram extraordinariamente o apuro da sua pituitária espiritual.
A mistura em partes desiguais de carne de primeira e de segunda, ou mesmo de
terceira ou quarta, vem permitindo uma transubstanciação que muitos julgariam
inimaginável. Os gourmets da
literatura não são, evidentemente, todos do mesmo género. Há felizmente nuances compensadoras. E se é um facto
que se subdividem em dois grandes sectores – o escarlate e o cinzento, sendo o
primeiro de tendência devoradora e o segundo raciocinadora – isso não implica o
desaparecimento dos que vêem na poesia algo mais que uma tarefa ou uma
fatalidade. Por enquanto – o panorama pode mudar.
Há contudo variações insuspeitadas e não
estou a lançar uma indirecta, garanto, àquele ensaísta genial que uma vez vi ao
vivo numa sessão em Cascais e que afirmou com pujança que nunca nada tinha sido
criado no programa do Bernard Pivot, o que não o impediu de um mês depois lá
ter estado a convite, de face risonha e radiante e engrolando seus conceitos
lusos que ora se engelham ora se distendem como se fossem bonecos insufláveis.
Há o lirismo para comemorações patrióticas
progressistas ou casamenteiras de estadão, para desforços conservadores, para
amores infelizes, para gestos sociais diversos; o lirismo circunspecto,
diríamos universitariante, em timbres
secos e escanhoados, preciso e conciso como o relatório de um conselho de
administração, ou o mais exaltado ainda que científico,
sendo este uma variante algo descabelada do anterior. Digamos – mais pão pão, queijo queijo.
Segundo julga saber-se, há poemas que não
convém serem deglutidos de manhã: pesam no bucho, criam soluços e azia. De modo
que é mais aconselhável tomá-los à tardinha, quando os apetites já se
locupletaram com meia dúzia de canalhices bem rimadas ou uma pratada de sonetos
à marinheira ou com todos os
matadouros.
A
verdadeira vida está ausente, dizia Rimbaud. Ausente, no entender de alguns
gastrónomos que por vezes também versejam – gastrónomos premiados, se calha,
pelos salões de jantar letrados - como as narcejas, as galinholas, as lebres e
as perdizes. A caça espiritual ainda
será, se os fados ajudarem, uma realidade peculiar.
Em certas alturas, o pesquisador-amador das
várias espécies poéticas está particularmente inclinado para a amável prática
desta salutar manducação: de alma à bandoleira, com boas reservas de cartuchos
de escolaridade obrigatória no cinturão, facanejo de aço carbónico na ilharga,
ei-los que partem para os lugares apropriados.
Nos montes e valados distinguem-se então
minúsculas figuras movendo-se ora ágil e graciosamente, ora mais pesadamente;
uns mais ardilosamente que outros lá se acocoram, armadilham, tocaiam, simulam.
E finalmente estendem a presa com dois ou três certeiros balázios.
No fim, chegado o crepúsculo, aconchegadas as
matilhas no palheiro ou no pátio, ao redor da grande mesa de madeira de pinho
grosseiro ou de carvalho mal desbastado, abancam os amantes desta actividade
venatória. Todo o dia o sol lhes ondeou sobre as frontes, queimando-lhes as
faces, crestando-lhes os olhos e a vivacidade. Uma paz muito suave os prende
agora à fraternal roda de congéneres. Da cozinha já chega até aos narizes dos
convivas o cheiro picante dos pitéus: Camões guisado, Lorca salteado, Antero
com rodelinhas de paio, Neruda com alcachofras na caçarola, Pessoa com vinho
grego, Régio frito com batatinhas às rodelas, Pascoaes assado com uma gota de
limão prudente. (Eugénio, por distracção da cozinheira, primeiro ficara meio
cru, depois demasiado passado).
No fim virão as sobremesas diversas: vates
novos, postos em remolhão de vinho do Porto durante horas, a embeberem-se, para
fazerem contraste com as arrufadas de Coimbra e as queijadas de Sintra
espirituais, com sabores e com doçuras a dar para o selvagem e o inusitado (e
que até requentadas calam no gosto, entrada a hora da ceia).
Lá fora crescem luzes no céu: Sírius, Canis
Minor, o sete-estrelo, o brilho nostálgico de Vega que na Caldeia inspirava
magos e arquitectos (talvez, como alguns cá, traçando por vezes seu versinho no
fim dum lauto repasto).
Se o tempo é de grilos, ralos e cigarras
ei-los que cantam ajudando à festa. Mas sempre, por sobre a massa pura das
árvores e o negrume palpitante da noite estrelada, se expande um ruído difuso,
amplo, que conviria ser – para que tudo estivesse a carácter – o filosófico
rolar das esferas do universo.
Seja como for, tenho para mim que as
espécies poéticas ainda irão estar intensamente noutros locais privilegiados e
privilegiadores – e que possibilitarão menos canseira - as grandes superfícies
comerciais aprazíveis e acolhedoras onde por ora praticamente só se mercam
produtos para bater: romances,
novelas, robustas casquinadas políticas, memorialismo relativamente pindérico.
Mais frescas e nutritivas (porque sujeitas
ao congelamento eficaz e benéfico que lhes preserva os elementares), mais
baratas e abundantes, terão ademais o aliciante do diploma e certificado de
garantia. É aliás assim que tem de se proceder em sociedade organizada e
moderna. Claro que a caça pode continuar, deve continuar, ninguém pretende
hostilizar a surtida cinegética. No entanto dá obviamente um certo conforto
saber-se que há nas bancas, estimuladas pela tecnologia, espécies prontinhas
para a festança quando calham de ser subitamente desejadas.
Enfim, será um quadro apropriado onde poderá
talvez, até, achar-se um bom naco de felicidade. Havendo, mesmo, lugar para as
surpresas porque existirão concerteza aspectos não contemplados nos manuais de
civilidade obrigada a mote. Poderão inclusivamente propor-se, pelo seguro,
interessantes variações: sonetilhos escalfados, elegias torradinhas, odes com
mel e pinhões, haikais empapados em uísque ou no proverbial saké para os
puristas. O espanto ganhará o seu justo lugar na sensibilização das línguas – mesmo
mortas – através de uma ou outra distribuição fortuita mas enquadrada de
provérbios e redondilhas.
Entraremos no domínio da poesia quase
perfeita, ora de cariz labirintiforme ora de raiz levemente mística. Às tantas,
subindo verticalmente na bolsa de valores da existência como as pirites
neo-zelandezas ou o café do Calulo.
Um tom rosado irá paulatinamente cobrindo as
faces outrora lívidas dos cidadãos alfabetizados.
E tudo findará, evidentemente, por uma
poderosa manducação geral só detida nos limites da antropofagia.
Bastante épica.
ns
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