A certa
Assim lhe chama Sapienza a
Goliarda
a essa que nos habita sem
sabermos
Sabedoria alegre e jocosa
alegria essa arte inescapável
e sempre fugitiva
essa que um dia investigámos
e mais nos encontra que nós a encontramos
Certa sim como cada cabelo que
nos tomba
e nos está contado
guardado nos livros de um deve
e
haver implacáveis
Certa? Mais certa que a vida
mais certa que o pulsar
erétil e a vibração desses
olhos
juvenis ridentes frente a nós?
Sim certa Incertos apenas a
hora e o dia
E a vida igualmente certa ou
ilusão apenas?
Se vivos hoje e
agora se partimos um dia
se alguns já partiram
esses que amámos
e se constantemente partem
esses dos jornais
das notícias
nos furacões crematórios
bombas sismos suicídios
aos milhares ou um a um
no silêncio
que há mais que o nevoeiro que
nos cerca
que há de mais certo que o de
um dia tudo
o que vivemos ter passado?
Mas não nem a
morte é certa a não ser como morte
do que viveu e do não saber
mais nada
Fulgor de um olhar e de uma
pele
ilusão névoa voo indeciso
fugaz vislumbre
estamos aqui onde já não
estaremos
no dia em que a Certa vier
e até agora dentro em pouco um
momento breve
não estaremos já neste pátio
de pedra onde escrevemos,
vivos ainda e desaparecidos
Que reencontraremos?
O país que tu amaste
Romantic
Ireland's dead and gone
It's
with O'Leary in the grave.
«September
1913» in Responsibilities 1914
W.
B. Yeats
para a Margarida
O país que tu amaste foi-se e
jaz morto
e com Camões e Antero partilha
o túmulo.
Porém, quatro décadas apenas,
cúmulo
da vida tua, te roubam tua
praia e horto.
Que país foi esse que mal
absorto
no passado contemplas, que
presente no cume
ele tem que já não é ele, que
fio ou gume
perdeu, terra tua teu perdido
porto?
No presente contigo a
partilham tantos!
Tu declinas, outros ascendem e
não vêem
a tua que não perderam, a mesma
deles que perdem.
Porque da terra vivem cortados
e a que herdem
pouco cuidam, cuja beleza não
têm
já de amor, e nada valem teus
prantos.
Soneto Ferroviário
Reside no real ou explode a poesia.
E se a dizes, lutas por
exprimi-la
e pouco o consegues. O real a
desvia
de seguida e foge, inacessível
ilha.
Sorris. Arranca o comboio e a
menina palra.
No cais, a rija avó imita,
partindo,
o comboio. Alegria de criança,
galra,
surpresa viva, o real poesia
sorrindo.
Abstrata? Concreta? Pouco
importa.
Ideia como sangue, «ideia
sangrando».
Calor e riso, língua que
falando
oculta e cala e mais o que
revela.
Escrevemos sim. Mas a beleza é
dela,
nossa não.
Aponta ela somente a grande porta.
José Carlos Costa Marques (sob
o nome Aurélio Porto, in Safra do Regresso, Águas Santas, 2011)
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