segunda-feira, 26 de outubro de 2020

3 poemas de José Carlos Costa Marques


A certa

 

Assim lhe chama Sapienza a Goliarda

a essa que nos habita sem sabermos

Sabedoria alegre e jocosa

alegria essa arte inescapável e sempre fugitiva

essa que um dia investigámos

e mais nos encontra que nós a encontramos

Certa sim como cada cabelo que nos tomba

e nos está contado

guardado nos livros de um deve e

haver implacáveis

Certa? Mais certa que a vida mais certa que o pulsar

erétil e a vibração desses olhos

juvenis ridentes frente a nós?

Sim certa Incertos apenas a hora e o dia

E a vida igualmente certa ou ilusão apenas?

Se vivos hoje e agora    se partimos um dia   

se alguns já partiram

esses que amámos

e se constantemente partem esses dos jornais

das notícias

nos furacões crematórios bombas sismos suicídios

aos milhares ou um a um

no silêncio

que há mais que o nevoeiro que nos cerca

que há de mais certo que o de um dia tudo

o que vivemos ter passado?

Mas não   nem a morte é certa a não ser como morte

do que viveu e do não saber mais nada

Fulgor de um olhar e de uma pele

ilusão névoa voo indeciso fugaz vislumbre

estamos aqui onde já não estaremos

no dia em que a Certa vier

e até agora dentro em pouco um momento breve

não estaremos já neste pátio de pedra onde escrevemos,

vivos ainda e desaparecidos

Que reencontraremos?

 

O país que tu amaste

 

        Romantic Ireland's dead and gone 

        It's with O'Leary in the grave.

        «September 1913» in Responsibilities 1914

                                                                  W. B. Yeats

 

                                                                   para a Margarida

 

O país que tu amaste foi-se e jaz morto

e com Camões e Antero partilha o túmulo.

Porém, quatro décadas apenas, cúmulo

da vida tua, te roubam tua praia e horto.

 

Que país foi esse que mal absorto

no passado contemplas, que presente no cume

ele tem que já não é ele, que fio ou gume

perdeu, terra tua teu perdido porto?

 

No presente contigo a partilham tantos!

Tu declinas, outros ascendem e não vêem

a tua que não perderam, a mesma deles que perdem.

 

Porque da terra vivem cortados e a que herdem

pouco cuidam, cuja beleza não têm

já de amor, e nada valem teus prantos.

 

 

Soneto Ferroviário

 

Reside no real ou explode a poesia.

E se a dizes, lutas por exprimi-la

e pouco o consegues. O real a desvia

de seguida e foge, inacessível ilha.

 

Sorris. Arranca o comboio e a menina palra.

No cais, a rija avó imita, partindo,

o comboio. Alegria de criança, galra,

surpresa viva, o real poesia sorrindo.

 

Abstrata? Concreta? Pouco importa.

Ideia como sangue, «ideia sangrando».

Calor e riso, língua que falando

 

oculta e cala e mais o que revela.

Escrevemos sim. Mas a beleza é dela,

nossa não.

               Aponta ela somente a grande porta.

 

 

 

José Carlos Costa Marques (sob o nome Aurélio Porto, in Safra do Regresso, Águas Santas, 2011)

Sem comentários:

Enviar um comentário

Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...