UM POUCO DE
PARAÍSO
A
seguir ao golpe do 25 de Abril, que tendencialmente procurava abrir o País à
“modernidade”, multiplicaram-se as publicações - escritas, plásticas,
cinematográficas e radiofónicas – sobre o corpo encarado dum ponto de vista
sexuado. Frequentemente de forma ora exagerada ora confusa, mau grado os
exemplos consistentes e adequados que também tem havido.
Creio que fará sentido, como achega ou sublinhado, dar a lume o texto
que constituiu a minha intervenção aquando da mostra de Sevilha “De puta madre
– arte erótica”, no qual se perpetram as dissemelhanças (que alguns querem
abafar, solapar, maquilhar) entre estes dois factos absolutamente
opostos (erotismo versus pornografia)
da condição humana/social aonde alguns, ou até um razoável número, querem ver a
foto “a saque e a sangue”, do imaginário individual ou colectivo ocidental.
ARTE E EROTISMO
No descontínuo da
existência humana o erotismo assegura a continuidade do som envolvente. “Este corpo fala”, dizia Lacan. Suspenso
entre dois silêncios, o da vida e o da morte, o erotismo é mais que mero sinal
na campina onde os fantasmas primordiais do espírito vagueiam sem destino.
Se ao princípio foi o
Verbo, logo a seguir o Homem teve de confrontar-se com um surpreso e confuso
balbuciar. “Coisas de deuses”,
dir-me-eis familiarmente. “Coisas
universais, onde se reproduzem realidades misteriosas”,
responder-vos-ei. Afirmando a desordem
sonora (que é uma bem ordenada configuração) contra o tímido império de uma
perturbada realidade muda, o erotismo participa na instauração duma realidade
outra, transfigura as experiências e o próprio sentido da Natureza circundante.
Não é arbitrariamente, pois, que Marianne Roland-Michel nos diz que “A humanidade só existe graças à infinidade
milenar dos acasalamentos, aos sucessivos nascimentos, num encantamento e
encadeamento inumeráveis como a areia dos desertos. Homens e mulheres
enlaçam-se na noite dos tempos e procriam, por muito que se recue no passado.
Daí nós aqui estarmos hoje, gerados e geradores.
A arte é, antes de
tudo, linguagem dos sentidos em movimento. À arte não se chega pela Razão: a
poesia, como dizia Lautréamont, “é um rio
majestoso e fértil”; a pintura erótica, por seu turno - na minha concepção
metafórica - é uma região silvestre onde
vagueiam Dionísio e as ninfas, acompanhados por todas as estrelas e cometas que
constituem o seu séquito. E, como se sabe, os deuses pagãos enquanto símbolos
existem no nosso tempo, se os soubermos ver, que o mesmo é dizer: se soubermos
reconhecer-nos no sagrado que é a vida.
Em 1908 declarou
Alfred Loos que “toda a arte é erótica”.
Esta frase tem de entender-se no contexto em que foi pronunciada. É uma verdade
que a arte pertence ao mundo de Eros, ao mundo que se opõe a Thanatos, que mais
que o território da morte é o lugar da não-existência, das frias pulsões
destrutivas. No entanto, a arte erótica tem características que a definem: ela
epigrafa o corpo amoroso e a pessoa
sexuada, apresenta-a simultaneamente como objecto
e sujeito de desejo, coloca os dados da questão na capacidade humana de
fruir o espaço da sexualidade e de transfigurar essa experiência em poesia e
libertação da nossa triste condição de seres mortais.
Já o mesmo não se dá
com a pornografia: esta, pelo contrário, recenseando falsas premissas (é um
mundo de frieza e de supressão da lógica dos relacionamentos e mesmo da sua
exemplaridade) é uma espécie de caricatura existencial – terreno onde apenas se
jogam esquemas pré-determinados, naturalmente controlados por razões
simplesmente argentárias e de comércio deliberado.
A arte erótica tende
pois a sublinhar uma evidência
fundamental rodeada de sombras suspeitas, a trazê-la ao quotidiano salubre.
Na infinita madrugada dos corpos que se amam, as classificações só contam se
evocam e provocam um rito mais perfeito e gerador de novas e exaltantes
comunhões interiores: a experiência banal eleva-se até ao ponto supremo, ao
vértice da comunicação. Tal como, na religião, a cerimónia de ordenação
sacerdotal comporta uma unção, uma transfiguração – mesmo que ilusória,
porquanto é dirigida a uma entidade fora do mundo, um deus – no acto erótico
passa-se a outro plano, aquele que une dois corpos, duas mentes, duas
experiências, dois percursos. Amar não é dois tornarem-se um, mas um tornar-se
dois – é, por extensão, o ser humano tornar-se universo. O amor é uma infinita repetição. Para o enamorado a sua amada é
todas as mulheres - e vice versa. O Homem, definitivamente re-ligado, existe
então em plenitude. Daí que o acto amoroso seja uma simulação da morte (ultrapassando-a soberanamente) e não uma pequena morte como queriam os
aristocratas libertinos e derivados menores ou uma grande morte como propunham os sádicos, míopes sexuais que
necessitam de óculos/faca, ou os autoritários no plano social, membros em geral
de crenças reveladas com o seu ódio ao amor humano, que esplendidamente se
ergue contra o egoísmo teocentrista.
A voz sibilina que
até nós chega do fundo das eras traz com ela a certeza de que a realeza absoluta pode ser compartilhada
por todos os homens e mulheres que se livraram da pequena escala hipócrita e
redutora que os próceres societários armadilharam tendo-os como alvo (expressa,
por exemplo, através do negócio
da moda e da cosmética, do aperfeiçoamento corporal como um absoluto, da
pacóvia alegria de blocos para solteiros, jornadas para a terceira idade,
etc.). Assim se explica que as religiões reveladas, que subjazem a deuses
autoritários, persigam aberta ou dissimuladamente o erotismo, o corpo e a sua
dimensão amorosa enquanto discretamente incentivam pela sua acção castradora e
estupefaciente a pornografia e os recalcamentos societários. É esta a
explicação, também, para a atitude do mundo argentário, que descaradamente
explora as forças eróticas - que primeiro sufoca - nos bordéis e nas lojas de
sexo. Ou a do mundo da política totalitária, que procura incluir a feição
sexual, controlando-a, numa razão de Estado ou de partido.
Uma face, na arte,
não é apenas uma face: milhares de
momentos de outras faces nela se representam e consubstanciam. O nu da imagem
corresponde à nudez assumida do homem e da mulher em comunhão, pois o erotismo
é o sinal da sacralização do mundo concretizado em seres que se amam e
possuem. Viaja-se através de um corpo como se viaja em busca dum planeta a
milhares de anos-luz. A arte erótica, seja pelo traço e a cor de Cézanne,
Watteau, Bazille, Clóvis Trouille, etc., ajuda-nos a encalhar a nossa barca nas
margens onde cresce o mirto e a rosa, onde os fulgores do dia se transmutam
incessantemente na penumbra de que os amantes necessitam para os mistérios do
seu coração.
Suspensa entre o
brilho duma imagem ausente e a saudade daquilo que a imaginação nos concede, a
arte erótica fala com vital soberania: e é desta maneira que se assume como
signo da humanidade liberta, eternamente colocada além das aparências
passageiras e compreensivelmente sujeitas ao desaparecimento final.
ns
in “De puta madre “ – exposição de arte
erótica” (Sevilha)
Sem comentários:
Enviar um comentário