segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Dois poemas de José Carlos Costa Marques


Voltar à paz

 

Quantas penas, quantas dores, até que ela descobriu:

– Mudar-te, não posso!

Quantas ilusões, quantos enigmas, até que ele entendeu:

– Tu és tu, eu nada posso!

Foi preciso descobrir que a paz inicial,

o deslumbramento

– a felicidade, dissera ela –

foram somente a antecâmara:

tateando no escuro,

sem ferir, sem colidir,

mas buscando o já perdido.

 

Até que, o tempo triturando-os, de passos transviados,

onde, através, resplendores brilharam sempre,

ensinou-os:

tu és tu,

eu sou eu,

nós somos nós.

E, agora, esperar – somente.

 

Voltando sempre,

volta meia volta,

à paz inicial,

ao deslumbramento.


                                              Águas Santas, 3 de Setembro de 2020



Asfalto e macadame

 

pachorrentas pesadas lentas devagar pisando a estrada de asfalto

bem no meio do povoado majestosamente rodeado de muralhas de granito

jamais construídas apenas ali estão desde remotas geológicas eras

com seu rendilhado denteado caprichoso súbito irregular perfeito desenhado

pachorrentas caminhando de chocalhos que tilintam por entre os automóveis

bem no meio da póvoa branda a que ascendem inverneiras vigiadas

guiadas pelo negro laboreiro cão que as segue guiadas pela velha que as prende

de negra lã também vestida que os parcos automóveis não assustam

vindos de franças e araganças com gente da terra ida e seus filhos

e já netos que falam entre si a próxima estranha língua com a avó falam

o português hibridizado gaulês andorrenho germanizado e irmanado

lentas bamboleantes enormes vindas ao entardecer dos lameiros ricos de erva

sopradas na fresca brisa enquanto lá mais longe brame a canícula

o incêndio piroestival crónico repetitivo ano após ano que não cessa

grossos rolos de fumo que se avistam lá por trás dos castelos de granito

de suas estranhas formas a águia a tartaruga subindo e dispersando

grossos rolos de fumo chamas rubras avassaladoras presentes por toda a parte

sobretudo no ecrã na omnipresente tagarelice hertziana que nos impõe

bem no meio do ermo povoado a sua presença obsessiva sem majestade alguma

de uma realidade ela sim majestosa a do fogo a do granito altivo

enquanto devagar entram obedientes o portão do quinteiro atrás da velha

à frente do cão pachorrentas pesadas lentas vindas da estrada de asfalto

as duas imponentes vacas de raça antiga com suas orelhas perfuradas

seus chipes elegíveis a subsídios comunitários com brincos delas pendendo

as duas enormes vacas o atrevido bezerro que as quer já cavalgar

por um momento se confundem com aquelas que na estrada de macadame

iam levantando pó puxando os carros que chiavam carregados de milho

e agora inexistem e se não confundem com esses outros de metal e petróleo

vacas e bois pachorrentos lentos devagar pisando e que súbito irrompem

velozmente vindos da infância que inexiste do teu país que inexiste

da pátria tua que inexiste da sua beleza pobre imorredoira renegada sepultada

da beleza morta que nenhuma carpideira tu mesmo te restitui guarda ou sepulta

da beleza porém viva já não na poeira levantada do macadame mas apenas

na mesma exata música que ascende do asfalto no chocalho na mesma exata

luz fresca levitando em torno à muralha de granito nunca construída

beleza hoje sobrevivente no tempo mecânico veloz cosmopolita globalizado

sobre o cadáver do país vergiliano de milénios quando na infância o conheceste

em instantâneas escassas décadas sem que visses

tu que estavas longe

como ausente ele se ausentou

até que inexistente na tua memória somente no teu coração apenas ainda existe

por mais que o procures o não encontrarás jamais desaparecido

para sempre extinto com ele levando para o túmulo essa beleza que procuras

que jamais reencontrarás porém beleza intacta imperecível acossada

irrefragável neste denteado de fragas tecido no azul declinante do sol poente

lá onde subsiste impera reina o horizonte todo que embalsama levita salva

te consola tu que em breve regressarás ao mais confuso mundo onde domina

omnipresente a fealdade a destruição o acúmulo o repetitivo ensurdecedor

lá porém onde majestosa reina sempre acossada reduzida apenas

ao domínio da luz à pujança do sol à rítmica sucessão da noite empalidecida

do dia solar que ascende sufocante na canícula onde sempre tem seu cetro

majestosa

a beleza

imperecível                                     

                                                                            Castro Laboreiro, 2006

 

           (Sob o nome Aurélio Porto, in Safra do Regresso, Águas Santas, 2011)



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