Voltar à paz
Quantas
penas, quantas dores, até que ela descobriu:
–
Mudar-te, não posso!
Quantas
ilusões, quantos enigmas, até que ele entendeu:
– Tu és
tu, eu nada posso!
Foi
preciso descobrir que a paz inicial,
o
deslumbramento
– a
felicidade, dissera ela –
foram somente
a antecâmara:
tateando
no escuro,
sem
ferir, sem colidir,
mas
buscando o já perdido.
Até que,
o tempo triturando-os, de passos transviados,
onde,
através, resplendores brilharam sempre,
ensinou-os:
tu és tu,
eu sou
eu,
nós somos
nós.
E, agora,
esperar – somente.
Voltando
sempre,
volta
meia volta,
à paz
inicial,
ao deslumbramento.
Águas Santas, 3 de Setembro de 2020
Asfalto e macadame
pachorrentas
pesadas lentas devagar pisando a estrada de asfalto
bem no meio do
povoado majestosamente rodeado de muralhas de granito
jamais
construídas apenas ali estão desde remotas geológicas eras
com seu
rendilhado denteado caprichoso súbito irregular perfeito desenhado
pachorrentas
caminhando de chocalhos que tilintam por entre os automóveis
bem no meio da
póvoa branda a que ascendem inverneiras vigiadas
guiadas pelo
negro laboreiro cão que as segue guiadas pela velha que as prende
de negra lã
também vestida que os parcos automóveis não assustam
vindos de franças
e araganças com gente da terra ida e seus filhos
e já netos que
falam entre si a próxima estranha língua com a avó falam
o português
hibridizado gaulês andorrenho germanizado e irmanado
lentas
bamboleantes enormes vindas ao entardecer dos lameiros ricos de erva
sopradas na
fresca brisa enquanto lá mais longe brame a canícula
o incêndio
piroestival crónico repetitivo ano após ano que não cessa
grossos rolos de
fumo que se avistam lá por trás dos castelos de granito
de suas
estranhas formas a águia a tartaruga subindo e dispersando
grossos rolos de
fumo chamas rubras avassaladoras presentes por toda a parte
sobretudo no
ecrã na omnipresente tagarelice hertziana que nos impõe
bem no meio do
ermo povoado a sua presença obsessiva sem majestade alguma
de uma realidade
ela sim majestosa a do fogo a do granito altivo
enquanto devagar
entram obedientes o portão do quinteiro atrás da velha
à frente do cão
pachorrentas pesadas lentas vindas da estrada de asfalto
as duas
imponentes vacas de raça antiga com suas orelhas perfuradas
seus chipes
elegíveis a subsídios comunitários com brincos delas pendendo
as duas enormes
vacas o atrevido bezerro que as quer já cavalgar
por um momento
se confundem com aquelas que na estrada de macadame
iam levantando
pó puxando os carros que chiavam carregados de milho
e agora
inexistem e se não confundem com esses outros de metal e petróleo
vacas e bois
pachorrentos lentos devagar pisando e que súbito irrompem
velozmente
vindos da infância que inexiste do teu país que inexiste
da pátria tua
que inexiste da sua beleza pobre imorredoira renegada sepultada
da beleza morta
que nenhuma carpideira tu mesmo te restitui guarda ou sepulta
da beleza porém
viva já não na poeira levantada do macadame mas apenas
na mesma exata
música que ascende do asfalto no chocalho na mesma exata
luz fresca
levitando em torno à muralha de granito nunca construída
beleza hoje
sobrevivente no tempo mecânico veloz cosmopolita globalizado
sobre o cadáver
do país vergiliano de milénios quando na infância o conheceste
em instantâneas
escassas décadas sem que visses
tu que estavas
longe
como ausente ele
se ausentou
até que
inexistente na tua memória somente no teu coração apenas ainda existe
por mais que o
procures o não encontrarás jamais desaparecido
para sempre extinto
com ele levando para o túmulo essa beleza que procuras
que jamais
reencontrarás porém beleza intacta imperecível acossada
irrefragável
neste denteado de fragas tecido no azul declinante do sol poente
lá onde subsiste
impera reina o horizonte todo que embalsama levita salva
te consola tu
que em breve regressarás ao mais confuso mundo onde domina
omnipresente a
fealdade a destruição o acúmulo o repetitivo ensurdecedor
lá porém onde
majestosa reina sempre acossada reduzida apenas
ao domínio da
luz à pujança do sol à rítmica sucessão da noite empalidecida
do dia solar que
ascende sufocante na canícula onde sempre tem seu cetro
majestosa
a beleza
imperecível
Castro Laboreiro, 2006
(Sob o nome Aurélio Porto, in Safra
do Regresso, Águas Santas, 2011)
Sem comentários:
Enviar um comentário