segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Antologia: Um vivo e um morto

 

1. Henrik Edstrom e a reconversão do universo


    Todo o verdadeiro pintor é de facto um demiurgo. E, como referiu Pablo Picasso, “mais que o inspirado é aquele que inspira”. Que inspira o desejo de uma nova visão, de uma nova formulação e, ao mesmo tempo, fornece as faculdades interiores para que tal seja não só possível como concretizável.

   Mediante as cores e as formas com que se erguem os sinais dos três reinos da natureza, o que este pintor lírico e surrealista visa é transfigurar a existência em algo de significativo e de salubre, indo para além das condicionantes sociais e humanas. Uma vez que a pintura autêntica é uma alquimia espiritual, que transforma e que faz permanecer na existência quotidiana os signos que a sustentam e através dela permanecem no mundo.

    Sendo um filho da Europa do Norte, Henrik Edstrom. aprendeu bem cedo as lendas dessas terras onde os gnomos e as fadas dos bosques vivem paredes-meias com os habitantes dos jardins, onde os turbilhões de neve nos deixam adivinhar figuras mágicas ao crepúsculo das povoações. Onde as cores e os traços, por seu turno, nas tardes de sol e de bom tempo possuem uma exactidão precisa e luminosa.

   Porque dá mais facilidade de manejo, sendo mais libertador do gesto uma vez que confere mais rapidez à execução, o pintor utiliza preferentemente o guache e a aguarela, como nas obras (uma série de 24 pinturas encantadoras e plenas de frescura) com que ilustrou os poemas do grande poeta húngaro Attila Joszef.



   Henrik Edstrom, através da sua paleta tão sabedora e livre como o coração duma criança, viaja pelos mundos onde dá gosto viver, mas com o conhecimento que de tal pode ter um animal quotidiano ou fabuloso entre os bosques e jardins dos nossos afectos vitais.

   Nele habitam o poeta e o artista - que as cores e seus prestígios revelam como num encantamento que a todos é, afinal, íntimo e comunicativo.

    Tive o gosto de o conhecer na biblioteca municipal, em Portalegre, onde veio  há um par de anos expôr uma surpreendente série de 46 óleos, guaches, aguarelas e colagens. Eu cumpria ali os meus últimos dias de funcionário.

   Durante duas horas, na sua voz suavizada pela idade, mas firme e sugestiva como os versos do Kalevaala que aliás teve o ensejo de ilustrar, falou-me de lendas da sua terra, de projectos e de maneiras de pintar – pois este pintor-poeta é de igual modo um fabro, um hacedor no plano das matérias, da forma concreta pela qual se exerce a arte de efectivar uma obra que haverá de andar nos dois planos do tempo: a que se palpa com os olhos e a que se observa com os dedos das mãos. Adicionalmente, a que – como a “ars magna”, a opus primae – reside e se reconhece no plano da alma, como nos disse Eyrinée Philalète.

    Dias depois – já ele voava de regresso a Anneberg, onde nasceu em 1937 - sem que para tal eu houvesse feito algo de assinalável vieram trazer-me ao gabinete um embrulho relativamente volumoso. Abri-o com expectativa. Continha dois quadros belíssimos e, num bilhetinho, vinham os seguintes dizeres: “Para o amigo NS intitular como achar melhor”.

  Estão hoje na sala da minha casa de Portalegre. Chamam-se, com efeito, “A partida para a ilha” e “O príncipe colhendo a estrela” e epigrafam duas passagens do Kalevaala.

  Foi a fórmula mais adequada que encontrei para lhe agradecer.


2. Palácios da Silva ou a natureza transfigurada



    Nos quadros e nas esculturas de Palácios esplende a transfiguração do mundo. As cores, os traços, as manchas e as formas que projectam o seu universo interior organizam o caos e dão um sentido novo à perspectiva humana do quotidiano. Recriação da Natureza? Talvez. Mas uma natureza reencontrada, finalmente próxima do Homem, ou seja: habitável, plásmica e salubre - mesmo nos seus tempos de inquietação.

  Em Palácios há drama, - a selva obscura dos filósofos e místicos da Idade Média, mas há também a alegria forjada  por combinações coloridas em que o movimento da mão possibilita o encontro entre raciocínio e sentimento. Descendente directo de La Tour e de Dubuffet, Palácios retoma de forma muito própria a interrogação nuclear que foi cara a Gauguin: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?, o que significa que ele se apercebeu que a viagem humana pode ser interpretada mediante a elaboração de uma escrita pictural onde consciente e inconsciente se entrecruzam e palpitam. Não é assim estranho que este colorista se sinta atraído simultaneamente pelo vitral e pela escultura monocromática: no fundo, é a interrogação dos elementos contraditórios que, frequentemente, suscitam a atenção e o interesse de parentes pictóricos como Boccioni e Manolo Millares.   

    Ao mesmo tempo próximo e disperso, Palácios conservou do passado os mitos de uma infância que lhe permite esvoaçar sobre o abismo dos minutos que a razia social tenta limitar. Algumas vezes cândido outras vezes trágico, o universo de Palácios conhece os mistérios das estações. E, através duma concentração em que a paleta se transfigura, concebe visões vegetais e minerais que nos dão a imagem duma existência finalmente liberta e à medida do percurso humano.

 

   (Este artista alentejano, para cujas esculturas dei a lume os poemas de “Fotosíntese da pedra” (incluídos no livro “Os olhares perdidos)”, faleceu prematuramente em 2001).

                                                                                       ns

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