1. Henrik Edstrom e a reconversão do universo
Mediante as cores e as formas com que se erguem os sinais dos três
reinos da natureza, o que este pintor lírico e surrealista visa é transfigurar
a existência em algo de significativo e de salubre, indo para além das
condicionantes sociais e humanas. Uma vez que a pintura autêntica é uma
alquimia espiritual, que transforma e que faz permanecer na existência
quotidiana os signos que a sustentam e através dela permanecem no mundo.
Sendo um filho da Europa do Norte, Henrik Edstrom. aprendeu bem cedo as
lendas dessas terras onde os gnomos e as fadas dos bosques vivem paredes-meias
com os habitantes dos jardins, onde os turbilhões de neve nos deixam adivinhar
figuras mágicas ao crepúsculo das povoações. Onde as cores e os traços, por seu
turno, nas tardes de sol e de bom tempo possuem uma exactidão precisa e
luminosa.
Porque dá mais facilidade de manejo, sendo mais libertador do gesto uma vez
que confere mais rapidez à execução, o pintor utiliza preferentemente o guache
e a aguarela, como nas obras (uma série de 24 pinturas encantadoras e plenas de
frescura) com que ilustrou os poemas do grande poeta húngaro Attila Joszef.
Henrik Edstrom, através da sua paleta tão sabedora e livre como o
coração duma criança, viaja pelos mundos onde dá gosto viver, mas com o
conhecimento que de tal pode ter um animal quotidiano ou fabuloso entre os bosques
e jardins dos nossos afectos vitais.
Nele habitam o poeta e o artista - que as cores e seus prestígios
revelam como num encantamento que a todos é, afinal, íntimo e comunicativo.
Tive o gosto de o conhecer na biblioteca municipal, em Portalegre, onde
veio há um par de anos expôr uma
surpreendente série de 46 óleos, guaches, aguarelas e colagens. Eu cumpria ali
os meus últimos dias de funcionário.
Durante duas horas, na sua voz
suavizada pela idade, mas firme e sugestiva como os versos do Kalevaala que
aliás teve o ensejo de ilustrar, falou-me de lendas da sua terra, de projectos
e de maneiras de pintar – pois este pintor-poeta é de igual modo um fabro, um hacedor no plano das matérias, da forma concreta pela qual se
exerce a arte de efectivar uma obra que haverá de andar nos dois planos do
tempo: a que se palpa com os olhos e a que se observa com os dedos das mãos.
Adicionalmente, a que – como a “ars magna”, a opus primae – reside e se
reconhece no plano da alma, como nos disse Eyrinée Philalète.
Dias depois – já ele voava de regresso a Anneberg, onde nasceu em 1937 -
sem que para tal eu houvesse feito algo de assinalável vieram trazer-me ao
gabinete um embrulho relativamente volumoso. Abri-o com expectativa. Continha
dois quadros belíssimos e, num bilhetinho, vinham os seguintes dizeres: “Para
o amigo NS intitular como achar melhor”.
Estão hoje na sala da minha casa de Portalegre. Chamam-se, com efeito,
“A partida para a ilha” e “O príncipe colhendo a estrela” e epigrafam duas
passagens do Kalevaala.
Foi a fórmula mais adequada que encontrei para lhe agradecer.
2. Palácios da Silva ou a natureza transfigurada
Nos quadros e nas esculturas de Palácios
esplende a transfiguração do mundo. As cores, os traços, as manchas e as formas
que projectam o seu universo interior organizam o caos e dão um sentido novo à
perspectiva humana do quotidiano. Recriação da Natureza? Talvez. Mas uma
natureza reencontrada, finalmente próxima do Homem, ou seja: habitável,
plásmica e salubre - mesmo nos seus tempos de inquietação.
Em Palácios há drama, - a selva obscura dos filósofos e místicos da
Idade Média, mas há também a alegria forjada
por combinações coloridas em que o movimento da mão possibilita o
encontro entre raciocínio e sentimento. Descendente directo de La Tour e de
Dubuffet, Palácios retoma de forma muito própria a interrogação nuclear que foi
cara a Gauguin: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?, o que significa
que ele se apercebeu que a viagem humana pode ser interpretada mediante a
elaboração de uma escrita pictural onde consciente e inconsciente se
entrecruzam e palpitam. Não é assim estranho que este colorista se sinta
atraído simultaneamente pelo vitral e pela escultura monocromática: no fundo, é
a interrogação dos elementos contraditórios que, frequentemente, suscitam a
atenção e o interesse de parentes pictóricos como Boccioni e Manolo Millares.
Ao mesmo tempo próximo e
disperso, Palácios conservou do passado os mitos de uma infância que lhe
permite esvoaçar sobre o abismo dos minutos que a razia social tenta limitar.
Algumas vezes cândido outras vezes trágico, o universo de Palácios conhece os mistérios
das estações. E, através duma concentração em que a paleta se transfigura,
concebe visões vegetais e minerais que nos dão a imagem duma existência
finalmente liberta e à medida do percurso humano.
(Este artista alentejano, para cujas esculturas dei a lume os poemas de “Fotosíntese da pedra” (incluídos no livro “Os olhares perdidos)”, faleceu prematuramente em 2001).
ns
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