quinta-feira, 2 de julho de 2020

Hoje, António Salvado






           Há, neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o mundo da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).
  Poeta da natureza, António Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica, perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como fica patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.
   E, assim, é um contemporâneo tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo.
     Por último e ainda no continente da Poesia, gostaria de relevar o trabalho incontornável de AS enquanto tradutor – e dou ao termo trabalho, aqui, o seu exacto perfil e conteúdo não só de labor mas de encantamento partilhável, uma vez que é disso que se trata: ser António Salvado, como a meu ver tem sido, o poeta do seu poeta vertido em português sem jaça e com o ritmo próprio e a figura de quem escreve como se em língua lusa este escrevesse.

                                                                                                         ns

“AGUARDARÁS O TEMPO…”

Aguardarás o tempo da vindima:
que as uvas sofram, como bem-fazeja
dádiva férvida, o calor de enlevos
que aproximar vai o verão do fim.

E só depois as poderás colher,
e só depois tu poderás  fremindo
esmagá-las sem dor    com a leveza
com que se beija um corpo em cio unindo-se.

Aguarda pois. E faz da tua espera
a certeza insuspeita de que um dia
há-de num copo rutilar o vinho –

e nos teus dedos    em papel modesto
fulgirá o mistério da vindima
transformado nos versos que nutriste.

CASA DO AMOR

Foi nas perenes coisas que aprendi
a ser: a casa do amor cercada
de ruas que subiam junto ao fim
do céu que sempre mais se prolongava,

de longo mudos maternais jardins
onde as eternas flores eram lagos
de fragrância ofegante colorida
e os lagos sol em água mergulhado.

E nela: o pão cantado sobre a mesa,
a bilha da ternura a renascer,
a pureza do linho a dedilhar
as palavras nos lábios entoadas…

deito longe a saudade: permanece
a casa do amor, em mim, perene.

“VER UM BROTO SURGIR…”

Ver um broto surgir entre a secura
(um fruto anunciado, ante-manhã
que ao fim da noite s’esclarece   e tão
prestes a ser o dia   que é só luz)

na árvore não morta   quase murcha
mas que teimou   em ganhar seiva   errante
e alçando-se    - feliz -   na cor da esp’rança
a vigorar-se no que era um tronco inútil.

E cobre-se de verde e ganha forma,
de surpresa em surpresa   desafia
futuras tempestades, imprevistos –
ali: como a palavra que borbota
natural   singular   silenciosa
no início um verso a construir-se.


MEDITAÇÃO
                             (à memória de Claudio Rodriguez)

Dos olhos e das mãos brotam as coisas:
inocentes paisagens onde a vida
e a morte se insinuam e comprazem.
Feitas indagação, elas entregam
- mesmo longínquas – o fluir constante
do sangue atravessando o pensamento.
De há muito que o sabemos caminhando:
somente a natureza purifica os sons
da chama inviolável que destrói
enganos: uma flor desabrochada,
rapariga no curvo do distante,
calor do oiro na melancolia.
Daí, que a claridade estenda os braços
a resvalar-se à voz: e invada os veios
exaltados da pureza   e bafeje
para que ouçamos dela o sussurrar,
como um astro súbito   inesperado,
como a verdade plena de harmonia.
Em segredo, o pulsar do coração
traça novos destinos entre areia,
reconstruindo a casa à beira do abismo
solidifica a água das correntes.
Em segredo. Os olhos abrem-se mais
e as mãos, hirtas p’lo frio passageiro,
modelam ouro espaço e outro tempo
para que o canto seja eternidade.


ANOS SE LEVA

Anos se leva a descobrir a pátria:
a terra onde existir   p´ra sempre a salvo,
o barro que há-de    modelar a alma,
a língua a ser sabida   a ser falada.
E que os rios e serras e que mares
e que cidades grandes    ou lugares,
que plantas  animais   vão habitar
essas paisagens virgens   a brotarem.

Porque o amor  — uma conquista lenta —
precisa de passado e de presente
quando constrói os elos do futuro;

que a pátria seja    em ânsia   toda a gente —
de mãos nas mãos   e olhos indif´erentes
a quem não queira partilhar o fruto.


(Nota - Alguns destes poemas foram anteriormente dado a lume na “Revista do TriploV” e na “DiVersos – revista de poesia e tradução” e por mim ditos em programas radiofónicos no Brasil, França e Portugal.)

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