Ilustração de Fernando Aguiar
Desde há cerca de trinta anos que a denominada sociedade ocidental participa numa
mutação tecnológica acelerada a que, por vezes, não consegue dar resposta
adequada no campo espiritual. O nosso mundo conceptual transfigurou-se duma
maneira brusca e tal facto tem condicionado o nosso universo de relação. Há
factores exógenos e outros endógenos, nem sempre bem meditados ou enfrentados
com perspicácia ou capacidade para bem gerir a vida colectiva. E não falamos
agora, é claro, nas tentativas deliberadas de orientar a realidade em direcções
que só acarretam prejuízos às populações.
Ora, a televisão, como meio privilegiado e
totalizador a nível de comunicação de massas, reflecte com enorme relevo esse
panorama inquietante.
Numa obra saída há já algum tempo, o
pensador Alexander Himmelweit diz-nos a dado passo que “a visão do mundo apresentada pela televisão afecta o comportamento real
dos telespectadores em função das tendências que se têm e que através dela são
pois reforçadas. Verifica-se assim que a televisão orienta comportamentos
pré-dispostos.”. O problema é que, como referia noutro estudo o sociólogo
Alain Dickinson, “apanhada num fluxo
turbulento de mudança, além de intelectualmente confusa, a pessoa sente-se
desorientada no plano dos valores pessoais; à medida que o ritmo se acelera, à
confusão juntam-se a dúvida acerca de si mesma, podendo comparecer a ansiedade
e o medo. À medida que o tempo decorre, a pessoa torna-se tensa e chega a
cansar-se com facilidade, ficando mais permeável à doença. Com o aumento
implacável das pressões habilmente induzidas, a tensão transforma-se em
irritabilidade e, por vezes, em cólera e até violência – que, por outros meios
socialmente directos, o poder canaliza então em direcções que lhe interessam.
Ninharias desencadeiam grandes reacções; grandes acontecimentos, reacções
insignificantes”.
Ou seja, é-se objecto de arteira manipulação.
Antes de passarmos adiante gostaria de
referir que recentemente, num dos laboratórios de ponta duma famosa
universidade europeia, foi levada a efeito uma experiência com pessoas de
várias etnias e de diversos níveis etários. E concluiu-se que a música –
principalmente certo tipo de música – actua nos mesmos centros cerebrais onde
actuam as drogas.
E, a talho de foice, pergunto: será por
isso que nos últimos tempos, principalmente nos meios radiofónicos - aliás
caracterizados por uma enorme mediocridade - são incessantemente emitidos
programas musicais e, mesmo, maioritariamente entrevistados ou epigrafados
protagonistas desse mundo (além, é claro, das consabidas rubricas sobre
política partidária e futebol)?
De há uns tempos até agora, tem-se voltado a
falar com intensidade na questão da violência veiculada pela televisão.
Determinados próceres da politica à portuguesa, com aprumo jesuítico têm vindo
a lume com pezinhos de lã sugerindo diversas formas de controle (de censura, que é o que lhe subjaz)
contra a violência que se exprime através de películas com tiros a granel e
pancadaria de criar bicho. No entanto, com a sua efígie mesureira e hipócrita
no limite, geralmente deixam de fora – claro! – outras formas graves de violência, mais disfarçada e insidiosa que,
quando muito, tocam pela rama: o espectáculo da lagrimeta, do sentimentalismo
bacoco e do humorismo que não passa de propaganda partidária/governamental
mal-disfarçada, o apelo à contemplação do mexerico e da bisbilhotice, os
trechos elementares ou boçais geralmente protagonizados por luminárias da
frivolidade básica ou embandeirada do jet
set. As rubricas de opinião ou de comentário que não passam de
ideologia torcida, os talk shows pretensamente modernaços que se
apoiam, notoriamente, num certo erotismo para primários que não é mais que
pornografia manhosa e sem subtileza.
E não devemos esquecer que a pornografia,
como o denotou Sarane Alexandrian e tantos outros, com a sua carga
“comercialista” evidente, é um dos sinais típicos do recalcamento injectado
pelo fideísmo eclesial ou partidário, essa suma violência dos espíritos em que
se exprime a monomania.
Aproveitando-se dos traumas e dos
preconceitos duma sociedade bloqueada ou disfuncional no plano afectivo, estas
formas disfarçadas de violência, mas não menos mistificadora e perigosa, têm
como objectivo criar audiências teledependentes, uma vez que estas são o
suporte da publicidade, que é uma das faces do império dos negócios. E, quando
digo império, quero significar o
economicismo sem pudor e sem freio, não a legítima troca ou compra-e-venda que
subjaz e conforma uma fase característica de existência societária.
O que, evidentemente, a manipulação
televisiva tenta estabelecer, é a criação de seres supranumerários, em quem a
docilidade é adquirida de maneira progressiva e serena, predispondo o grande público para a passividade, a ausência
de calor humano, de solidariedade e a dispersão/banalização dos sentimentos,
ligando-se a ideias colectivas sob a batuta de gurus e de condottieris cheios de lábia que, de forma suave e afectuosa,
estabelecem o primado do justamente descrito como “ur-fascismo doce”, que um
dos líderes do sinistro “Grupo Bilderberg” estabeleceu como sendo o efeito de “em vez de seres levado à matraca, és
conduzido com jeitinho e ternura”…
A televisão, que podia ser um meio
qualificado de comunicabilidade humanizada – e nos melhores casos (sem a
velhacaria dos que com ou sem máscaras desprezam o cidadão e o ser humano por
extenso) é de facto um veículo de qualidade (lembremo-nos por exemplo de
notáveis documentários da BBC, dos concertos austríacos, das peças de teatro
francesas e de alguns especialistas espanhóis e lusos) – tem sido levada por
maus caminhos por esses émulos de pequenos
goebbels que usualmente a conseguiram colonizar por obra e graça do politicamente correcto e do descaramento
estatal que, nos casos mais sintomáticos e impudicos, tentam fazer de nós
todos idiotas úteis…
ns
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