Rosas, à entrada do
quintal de ns
Anos atrás, Joaquim Montezuma de Carvalho organizou, no suplemeno
literário que então mantinha no jornal “Primeiro de Janeiro”, uma antologia dedicada
a Eugénio de Andrade –depois publicada em livro, bastante encorpado –
subordinada a dois versos deste que rezavam “Se não for para arder/ser rosa
no inverno de que serve?". A minha
aquiescente resposta foi o envio do poema que agora aqui vos deixo:
Serve para estar posta
como se fosse num sonho sobre o peito dum morto.
Serve p´ra não arder. E no entanto
arde.
E os castanheiros também. Ardem como
papoilas
numa tarde de Agosto. E os espinheiros. E
os lírios. E
os manjericões: é vê-los, por exemplo, num
canto
dum quintal, no bolso dum transeunte,
sobre a testa
dum enamorado. (Há outros, entretanto, que
preferem
a buganvília; e já se viu, num povoado a
oeste
um rapazola com uma orquídea ardendo
nas omoplatas ou no
ombro direito). Mas o que mais arde
de facto, são as rosas. Seu íntimo
fulgor
entre canecas de vinho, num banquete
na toalha do chá numa sala perdida do
passado
sobre o aparador de cerejeira da pensão
familiar
no tablier
dum automóvel ou no chão duma caleche
nos destroços sórdidos dum monturo
numa parede larga e branca
arde, queima, projecta
sombras entre os dedos das mãos abertas
e lança súbitos clarões
tão firmes
fugazes
tão secretos e tensos
que as silhuetas, por um momento se curvam
como em celebração. E pergunta-se a medo:
será
uma chegada uma
abalada
de mestres
de aprendizes da Verdade
que jamais se encontrou? Será um pássaro
uma miragem no Inverno a partir? Será mera
ilusão
cinematográfica
indício sonolento? Ou apenas
a Rosa
a rosa simultânea
a sucessiva rosa a rosa enublada
multiplicada, enorme
com estranheza em sua volta, com sonoros
tinidos
no entanto silêncio, no entanto solidão?
E a rosa arde, como papel amarfanhado
como papel escrito
como um rosto ou um crâneo sobre o solo verdejante
como os primeiros versos (porque não?) de
juan rámon jiménez
ou as trevas (porque sim) de h. p.
lovecraft
ou as palavras (pois então!) escritas por
sensatez
complacência, desgosto ou mesmo fantasia
amargura difusa, inconcreta alegria
dum anónimo ser em anónima folha. (Porque as rosas, por
mistério muito delas
mas ainda, contudo, sem cabal explicação
quando a neve se vai e vem a areia
ardem
furiosa e ternamente em muitos
versos e estrofes
além, claro está, de serenamente arderem
sobre casacos de Verão, sobre colchas,
sobre memórias
de gente distraída ou simplesmente
inocente).
Mas sim ardem. Sobre a noite e a manhã
ardem e tremulam, ardem
e são como imensas plantas inconclusas
como sarças ou pirilampos
como pequenas estrelas matinais
como coisas verdadeiramente coisas temerosas
e puras.
ns
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