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Sambène Ousmane é um grande escritor
africano. O que caracteriza este romancista é o seu apego a África como um
todo, um continente onde pairam ainda as presenças dos animais ancestrais com o
Homem no seu centro pululante de vida. É/foi, como africano, um homem do mundo.
Este escritor do Mali deu a lume uma obra
célebre intitulada "Os pedaços de madeira de Deus", onde descreve a
existência de gente simples, de trabalho e de humildade: essa gente feita,
efectivamente, como de pedaços de madeira vulgar que, pela sua específica
razão, ascende a algo mais significativo e humanizado.
Tempos atrás, há anos, fui ao Reguengo. Era
altura de festa, as gentes do lugar confraternizavam no largo onde se havia
armado barracas de comes-e-bebes.
Numa delas, abancado com amigos, estava o
homem que eu ia procurar: o Tio Canas, que teve no civil o nome de Emílio
Relvas. Ora acontece que o Tio Canas, homem cordial e sensível, é autor de uma obra
soberba considerável em tamanho e diversidade, toda feita de madeira, a madeira
(paus) que apanha aqui e ali ao sabor da fantasia e da imaginação criadora.
Os pedaços de madeira de Deus...Tenho para
mim que Sambène Ousmane saberia, embora tivesse feito parte doutro quadrante
cultural, apreciar os magníficos bonecos do fraternal habitante do Reguengo:
bailadores, animais e Cristos, barcos e baixos relevos de festas de casamento,
paisagens ornamentais, objectos de uso comum, enfim - um ror de pequenas
maravilhas que pouco a pouco têm enchido a vida deste nosso vizinho que, como
maior motivo de regozijo, tinha a peculiaridade de se dar bem com toda a gente,
como ele fez questão em nos dizer. "Apesar de ser pobre tenho gosto pela
vida!", disse-nos com um sorriso bom na face crestada por anos de ar
livre. "Ainda bem que gostou de ver cá as minhas coisinhas!". Era
assim que se exprimia este homem, modestamente, ele que teve o condão de
iluminar o seu dia-a-dia através da execução de peças que não ficam atrás das
de qualquer outro artesão (artista) doutro qualquer lugar. Era com humildes
pedaços de pau, a madeira do dia e da noite que o Tio Canas fabricava a sua
madeira sagrada. Porque é possível, por intermédio do íntimo talento e pela
magia da Arte, tirar o universal do particular e, voando sobre a incrementada
vulgaridade dos tempos, criar algo de eterno e de permanente.
Para quando, nesta cidade, uma grande
exposição que preste justiça ao Tio Canas?
E, por osmose, à arte regional autêntica,
tão viva nos discursos de circunstância.
Nota – Recentemente, vários anos depois deste texto
ser dado a lume, soube com alegria que a edilidade local criou
justificadamente, num edifício do Reguengo, um pequeno museu que hoje acolhe a
obra do tio Canas, já falecido.
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