terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Nicolau Saião, DE PAU FEITO (os pedaços de madeira de Deus)

 


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    Sambène Ousmane é um grande escritor africano. O que caracteriza este romancista é o seu apego a África como um todo, um continente onde pairam ainda as presenças dos animais ancestrais com o Homem no seu centro pululante de vida. É/foi, como africano, um homem do mundo.

  Este escritor do Mali deu a lume uma obra célebre intitulada "Os pedaços de madeira de Deus", onde descreve a existência de gente simples, de trabalho e de humildade: essa gente feita, efectivamente, como de pedaços de madeira vulgar que, pela sua específica razão, ascende a algo mais significativo e humanizado.

  Tempos atrás, há anos, fui ao Reguengo. Era altura de festa, as gentes do lugar confraternizavam no largo onde se havia armado barracas de comes-e-bebes.

   Numa delas, abancado com amigos, estava o homem que eu ia procurar: o Tio Canas, que teve no civil o nome de Emílio Relvas. Ora acontece que o Tio Canas, homem cordial e sensível, é autor de uma obra soberba considerável em tamanho e diversidade, toda feita de madeira, a madeira (paus) que apanha aqui e ali ao sabor da fantasia e da imaginação criadora.

  Os pedaços de madeira de Deus...Tenho para mim que Sambène Ousmane saberia, embora tivesse feito parte doutro quadrante cultural, apreciar os magníficos bonecos do fraternal habitante do Reguengo: bailadores, animais e Cristos, barcos e baixos relevos de festas de casamento, paisagens ornamentais, objectos de uso comum, enfim - um ror de pequenas maravilhas que pouco a pouco têm enchido a vida deste nosso vizinho que, como maior motivo de regozijo, tinha a peculiaridade de se dar bem com toda a gente, como ele fez questão em nos dizer. "Apesar de ser pobre tenho gosto pela vida!", disse-nos com um sorriso bom na face crestada por anos de ar livre. "Ainda bem que gostou de ver cá as minhas coisinhas!". Era assim que se exprimia este homem, modestamente, ele que teve o condão de iluminar o seu dia-a-dia através da execução de peças que não ficam atrás das de qualquer outro artesão (artista) doutro qualquer lugar. Era com humildes pedaços de pau, a madeira do dia e da noite que o Tio Canas fabricava a sua madeira sagrada. Porque é possível, por intermédio do íntimo talento e pela magia da Arte, tirar o universal do particular e, voando sobre a incrementada vulgaridade dos tempos, criar algo de eterno e de permanente.

   Para quando, nesta cidade, uma grande exposição que preste justiça ao Tio Canas?

   E, por osmose, à arte regional autêntica, tão viva nos discursos de circunstância.

 

Nota – Recentemente, vários anos depois deste texto ser dado a lume, soube com alegria que a edilidade local criou justificadamente, num edifício do Reguengo, um pequeno museu que hoje acolhe a obra do tio Canas, já falecido.


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