segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Nicolau Saião, Dois poemas e um desenho para o Natal

 

   Com cordiais desejos de Boas Festas a todos/as os confrades & leitores






RECEITA PARA UM NATAL

 

Primeiro, ficar parado

durante um momento, de pé

ou sentado, numa sala ou mesmo

noutra dependência do lar.

Depois preparar

os olhos, as mãos, a memória

e outros utensílios indispensáveis. A seguir

começar a reunir

coisas, por ordem bem do interior

do coração e do pensamento:

a ternura dos avós, uma mancheia;

rostos de primos distantes, uma pitada;

sons de sinos ao longe, quanto baste;

a recordação duma rua, uns bocadinhos

um velho livro de quadradinhos

duas angústias mais tardias, alguns restos de azevias,

a lembrança de vizinhos   ainda vivos mas ausentes

e de uns já passados.

Quatro beijos de seres amados ou de parentes

um cachecol de boa lã cinzenta aos quadrados

e um pouco de azeite puro e fresco

igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso.

Mexe-se bem, leva-se ao forno

e fica pronto e saboroso

 

- mesmo que, nostálgica, se solte uma pequena lágrima.

 


NATAL ZERO 22

 

Quem fala de Natal perde palavras

à entrada do Inverno, na secura dos dias

no vasto frio das noites, tão lúcidas e antigas

tão de infância e de Agosto. O fogo

misturado: árvores, luzes, fantasmas

e as doces mãos das Avós. E ainda

um postal velho velho cheio de vento e de memórias.

 

Quem fala de Natal perde palavras, ganha

e perde as demais coisas que as palavras edificam.

 

“Quem grita no Natal? E Deus

não os fulmina? “. Quem mergulha os seus pulsos

na fria água do rio?  Com seus chapéus à banda

em barcos engalanados

os anjos vão passando, dizendo amores esquecidos

dizendo estranhas frases, assombrando as moradas

onde afinal não nasce o tal de Nazareh. O sal e o

pão terrenal dos que ainda não foram

pelo ar, pela vida, pelos túmulos vazios.

 

Sim, pelo Natal as pobres casas em ruínas.

 

Para ser do Natal é preciso possuir

uma lembrança ardente, um brinquedo estripado

e muita tristeza feita nos anos em leilão

dos retratos tombando com um nó na garganta.

Para ser do Natal é preciso morrer

e viver de seguida com o sangue nos braços

esperando a estrela fixa do brusco espanto nocturno

junto à porta perdida dum milagre adiado.

 

Ah falar de Natal! Quem o consente?

 

O pão e o sal

talvez

de toda a gente. E um olho de animal

pairando no poente. Decisivo, visceral. E Deus, pobre dele

abrindo a água lustral (no bem, no mal)

frente ao horror da morte

terrena e inocente.

 

Por isso, no Natal

os segredos demoram

e tudo muda e tudo se envolve num pano branco barato

para que ninguém esqueça um corpo ferido que por debaixo jaz

uma nova e desconhecida espécie de cadáver achado na ilha

dos animais inominados

e outras diversas coisas que por desespero se não apontam.

 

No Natal treme a casa, a casa

sempre caiada, como um sepulcro sem número e sem nome.

 

E o inventário dá, se estiver certo:

um coração ardido todo azul

uma recordação minúscula que se guardou num bolso

um riso salutar ensanguentado

uma pequena ironia desenhada a tinta de colegial

uma apenas esboçada mão posta sobre um antebraço

o lenço de cabeça duma tia que desapareceu na manhã

um gato tranquilamente dormindo ao cimo das escadas

uma rosa e uma palavra que a si mesmas se julgaram

duas mãos de pedra tremendo atravessadas por uma ferida

numa cruz de polo a polo

um hálito que soprado no peito nos enlouquece

um arrepio, uma agonia

uma tarde a fechar-se repleta de amargura e de alegria.

 

Talvez o Natal seja um rosto

ou uma madrugada de outono

ou um avião nocturno

ou um verão por detrás das coisas aparentes

ou um combatente jazendo de borco numa pia baptismal

ou os bramidos de dois seres abandonados encarando-se de súbito

numa rua da cidade

no escuro muito escuro de uma cidade do universo

quer dizer – luminosa e aterrada. E talvez

 

que tudo afinal esteja a mais, que tudo afinal

se resuma a filhós e azevias de um outrora

a canecas de café familiar

algures num horizonte, numa idade, num momento

no imenso murmúrio de uma voz sulcando o tempo.

 

E a chuva   que diabo   irá cobrindo tudo

no infinito Natal dos mundos desaparecidos.


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