Com cordiais
desejos de Boas Festas a todos/as os confrades & leitores
RECEITA PARA UM NATAL
Primeiro, ficar parado
durante um momento, de pé
ou sentado, numa sala ou mesmo
noutra dependência do lar.
Depois preparar
os olhos, as mãos, a memória
e outros utensílios indispensáveis.
A seguir
começar a reunir
coisas, por ordem bem do interior
do coração e do pensamento:
a ternura dos avós, uma mancheia;
rostos de primos distantes, uma
pitada;
sons de sinos ao longe, quanto
baste;
a recordação duma rua, uns
bocadinhos
um velho livro de quadradinhos
duas angústias mais tardias, alguns
restos de azevias,
a lembrança de vizinhos ainda vivos mas ausentes
e de uns já passados.
Quatro beijos de seres amados ou de
parentes
um cachecol de boa lã cinzenta aos
quadrados
e um pouco de azeite puro e fresco
igual ao que a mãe usava noutro
tempo saudoso.
Mexe-se bem, leva-se ao forno
e fica pronto e saboroso
- mesmo que, nostálgica, se solte
uma pequena lágrima.
NATAL ZERO 22
Quem fala de Natal perde palavras
à entrada do Inverno, na secura dos
dias
no vasto frio das noites, tão
lúcidas e antigas
tão de infância e de Agosto. O fogo
misturado: árvores, luzes, fantasmas
e as doces mãos das Avós. E ainda
um postal velho velho cheio de
vento e de memórias.
Quem fala de Natal perde palavras,
ganha
e perde as demais coisas que as
palavras edificam.
“Quem grita no Natal? E Deus
não os fulmina? “. Quem mergulha os
seus pulsos
na fria água do rio? Com seus chapéus à banda
em barcos engalanados
os anjos vão passando, dizendo
amores esquecidos
dizendo estranhas frases,
assombrando as moradas
onde afinal não nasce o tal de
Nazareh. O sal e o
pão terrenal dos que ainda não foram
pelo ar, pela vida, pelos túmulos
vazios.
Sim, pelo Natal as pobres casas em
ruínas.
Para ser do Natal é preciso possuir
uma lembrança ardente, um brinquedo
estripado
e muita tristeza feita nos anos em
leilão
dos retratos tombando com um nó na garganta.
Para ser do Natal é preciso morrer
e viver de seguida com o sangue nos
braços
esperando a estrela fixa do brusco
espanto nocturno
junto à porta perdida dum milagre
adiado.
Ah falar de Natal! Quem o consente?
O pão e o sal
talvez
de toda a gente. E um olho de
animal
pairando no poente. Decisivo,
visceral. E Deus, pobre dele
abrindo a água lustral (no bem, no
mal)
frente ao horror da morte
terrena e inocente.
Por isso, no Natal
os segredos demoram
e tudo muda e tudo se envolve num
pano branco barato
para que ninguém esqueça um corpo
ferido que por debaixo jaz
uma nova e desconhecida espécie de
cadáver achado na ilha
dos animais inominados
e outras diversas coisas que por
desespero se não apontam.
No Natal treme a casa, a casa
sempre caiada, como um sepulcro sem
número e sem nome.
E o inventário dá, se estiver
certo:
um coração ardido todo azul
uma recordação minúscula que se
guardou num bolso
um riso salutar ensanguentado
uma pequena ironia desenhada a
tinta de colegial
uma apenas esboçada mão posta sobre
um antebraço
o lenço de cabeça duma tia que
desapareceu na manhã
um gato tranquilamente dormindo ao
cimo das escadas
uma rosa e uma palavra que a si
mesmas se julgaram
duas mãos de pedra tremendo
atravessadas por uma ferida
numa cruz de polo a polo
um hálito que soprado no peito nos
enlouquece
um arrepio, uma agonia
uma tarde a fechar-se repleta de
amargura e de alegria.
Talvez o Natal seja um rosto
ou uma madrugada de outono
ou um avião nocturno
ou um verão por detrás das coisas
aparentes
ou um combatente jazendo de borco
numa pia baptismal
ou os bramidos de dois seres
abandonados encarando-se de súbito
numa rua da cidade
no escuro muito escuro de uma
cidade do universo
quer dizer – luminosa e aterrada. E
talvez
que tudo afinal esteja a mais, que
tudo afinal
se resuma a filhós e azevias de um
outrora
a canecas de café familiar
algures num horizonte, numa idade,
num momento
no imenso murmúrio de uma voz
sulcando o tempo.
E a chuva que diabo
irá cobrindo tudo
no infinito Natal dos mundos
desaparecidos.
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