terça-feira, 5 de julho de 2022

Cristino Cortes, Em jeito de in memoriam

 


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UM ABRAÇO PARA JOÃO RUI DE SOUSA


   Faz hoje, 24 de Junho de 2022, uma semana que João Rui de Sousa morreu e eu ainda me não conformo com o facto de atempadamente o não ter sabido. Foi só alguns dias depois, navegando no sítio virtual do Nicolau Saião, que tomei conhecimento do infausto acontecimento. Não é que tal desenlace tivesse sido de todo surpreendente, dada a idade do Poeta (94 anos) e os problemas de saúde que sabia o afligiam. Mas a morte, por definitiva e irreversível, é sempre triste, custa muito ver partir um Camarada Querido como era o João Rui de Sousa. E eu gostaria de literalmente lhe ter deposto uma flor no túmulo do Alto de S. João. Por esta forma, gostosamente remedeio um mal que sei ser inultrapassável - embora me não possa ser cobrada a involuntária ausência. E a este testemunho decerto que em qualquer caso eu o faria.

  Quando vim para Lisboa, há mais de meio século, e comecei a ter alguma informação sobre o que se passava no campo das letras logo o nome de João Rui de Sousa se impôs ao meu espírito. Não sei agora dizer em que revistas ou jornais terei lido poemas seus que assim tão positivamente me impressionaram. Em 1983, reuniu, pela primeira vez, a sua obra poética - O Fogo Repartido, uma edição da Litexa, com um livro novo, Respirar Pela Água, além dos que até à data publicara nos últimos vinte anos, já que a sua primeira obra, Circulação, é de 1960, isto admitindo que A hipérbole na cidade, do mesmo ano, lhe é um pouco posterior. Lá estive presente, no auditório da Sociedade Portuguesa de Autores, na Avenida Duque de Loulé. Deverá ter sido também a minha estreia em acontecimentos desse género nos idos de Abril desse ano.

  O conhecimento pessoal do João Rui de Sousa deverá ter ocorrido um pouco antes, certamente no âmbito da Revista Sílex, a que ambos estávamos ligados: ele como patrono e garante de qualidade; eu como modesto aprendiz, procurando, sobretudo, ser publicado.  O exemplar que o Poeta então me autografou tem, aliás, a particularidade de apresentar um caderno, dezasseis páginas, colado ao contrário - isto é, de pernas para o ar no sentido normal da leitura. Jamais o quis trocar, privilegiando o autógrafo que nele figura em alternativa à perfeição técnica e à minha maior, e legítima, comodidade. Não haverá muitos mais como o meu - foi o que então pensei.

  No início desses anos 80 ambos coincidíamos profissionalmente no edifício da Biblioteca Nacional. De vez em quando nos encontrávamos nos corredores, decerto que também no bar - ou a caminho do mesmo. Recordo-me que João Rui de Sousa acamaradava então muito com um galego, ou descendente de galegos, José Carlos González - que muito impressionou os meus ainda puritanos ouvidos com o vernáculo da sua linguagem. Umas coisas levam a outras, naturalmente, e quando eu me inscrevi na Associação Portuguesa de Escritores, em 1986 - após a publicação do primeiro livro no ano anterior, curiosamente com a mesma idade com que também João Rui de Sousa se estreara nessas lides - foi a ele que recorri, para o necessário apadrinhamento. Nessa associação viríamos ambos, aliás, a mais tarde colaborar: ele dirigindo a Assembleia Geral, eu fazendo a acta, não suba o sapateiro acima da sua chinela.

  De qualquer forma o nosso relacionamento não evoluiu para uma amizade, mais ou menos estreita. Dificilmente tal poderia ter acontecido, dados os 25 anos que eu tinha a menos do que ele, pouco menos de metade da sua idade de então - ainda por cima tendo caído de para-quedas na cidade, no reino das letras inteiramente amador e sem quaisquer créditos ou formação específica. Além do mais vivia longe, tinha filhos pequenos, pouco me poderia demorar.

  Com o João Rui de Sousa eu sobretudo aprendia - e se aprendi, Santo Deus! O meu apreço pela sua poesia manteve-se sempre - posso dizer que cada vez mais fundamentado da minha parte. Algumas vezes decerto teremos almoçado juntos - por vezes na companhia de outros camaradas de ofício, quase sempre fora da Biblioteca. Com o Cândido José de Campos - que também o apreciava muito - sei que algumas vezes isso aconteceu. Numa dessas ocasiões, certamente no início de 1992, ofereceu-me o João Rui de Sousa o seu então recente Enquanto a noite, a folhagem que na altura muito me impressionou e continuo a considerar como uma das realizações cimeiras da sua poesia. Andaríamos decerto, o Cândido e eu, interessados em que João Rui de Sousa nos pudesse fazer alguma referência crítica nos sítios onde colaborava, a Colóquio-Letras ocupando a primazia nos nossos desejos. Era humano esse comportamento, sem diminuir o apreço e a amizade que pelo João Rui de Sousa sentíamos. Por mim falo, evidentemente. Na revista da Gulbenkian, aliás, no que me diz respeito tal não viria a acontecer.

  Jamais lhe levei a mal, dentro desse mesmo comprimento de onda, que não tivesse conseguido fazer um prefácio para um livro que publiquei em 1999. A culpa foi, decerto, maioritariamente minha - que não esperei o suficiente, porventura receoso de que o editor me roesse a corda. Aí consta o primeiro poema que tive o gosto de lhe dedicar, em homenagem ao seu Palavra azul e quando. Reeditei esses Poemas de Amor e Melodia dez anos mais tarde e aí foi o João Rui de Sousa que não pôde: os seus problemas de visão já o incomodavam seriamente. Estava assoberbado, além do mais, com a reedição do seu Fernando Pessoa, empregado de escritório.

  Com o passar do tempo, quase sem darmos por isso, as nossas relações foram bem mais próximas - embora talvez não muito mais frequentes. Ofereceu-me uma pequena publicação de 1999, Concisa instrução aos nautas, editada pela Câmara Municipal do Funchal, em função certamente da sua ascendência madeirense, por via paterna. Foi o primeiro livrinho acabado a cordel que entrou na minha biblioteca: 14 páginas, em papel quase de embrulho, o próprio agrafo dispensando. Mas é obra a sério, com marginália crítica e tudo.

  Essa característica comum das nossas vidas, no meu caso por via conjugal, foi pasto para interessantes conversas. Mas ele já nascera em Lisboa - e à Madeira poucas vezes fora - ao passo que eu viera para a capital, lá das alturas da Guarda, fazer os vinte anos. Recordo a dificuldade que tive em encontrar e comprar o que creio ter sido o seu último livro, Ardorosa súmula, inaugurando uma colecção de poesia em Novembro de 2016. Aí confirmei como o tema do erotismo, digamos assim, era em João Rui de Sousa cultivado sobretudo na velhice, contrariamente à maioria dos poetas. Forçosamente, nele é a clave evocativa que predomina.

  Mora comigo a satisfação de ter estado presente nos grandes momentos de consagração do seu percurso literário. Estes começaram tarde pois o João Rui de Sousa, apesar de ser muito respeitado entre os oficiais do mesmo ofício, apenas numa fase bem adiantada da sua vida obteve o reconhecimento público a que tinha inteira justiça. Foi na vizinhança dos seus setenta e cinco anos, em 2002, que ele de novo reuniu a sua obra poética - assim mesmo chamada, Obra Poética (1960 – 2000) - numa editora de grande prestígio público e presença comercial. Ao inscrever o seu nome no catálogo da D. Quixote, João Rui de Sousa como que entrou num outro campeonato, se me é permitida a linguagem futebolística. A essa obra, com um notável prefácio de Fernando J. B. Martinho, foram atribuídos os primeiros dois e importantes prémios com que o Poeta foi galardoado: o do Pen Clube e o do Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários. Na sua sequência também uma sua outra obra, o Quarteto para as próximas chuvas, de 2008, nos seus oitenta anos exactos, viria a receber o Prémio António Ramos Rosa.

  Não me querendo alongar em demasia começarei por referir, por ser o mais antigo, o jantar que lhe foi oferecido pela Sociedade da Língua Portuguesa, num hotel a meio da Almirante Reis, em Maio de 2008. Muito comentámos, ele e eu, e até mais alguns dias depois - dado que no decorrer do acto ele, como homenageado, tinha de guardar uma maior contenção - a gravata roxa sobre o coletinho amarelo de uma das empregadas que nos servira. Fiz questão de estar presente, eu que pouco frequentava estas realizações, sobretudo à noite. Não queria deixar de lhe manifestar a minha solidariedade, um apreço que era profundo e vinha em crescendo, uma estima que bem poderia ser equiparada a uma sólida amizade.

  Em Janeiro de 2011 realizou-se, na Casa Fernando Pessoa, uma sessão comemorativa dos seus cincoenta anos de vida literária. A reduzida dilação temporal começou por ser explicada por Fernando J. B. Martinho. Foi uma muito bela e concorrida sessão em que João Rui de Sousa pôde testemunhar como tantas pessoas o apreciavam e estimavam. E o local foi particularmente adequado para essa celebração.

  Referente ao ano de 2012 é o Prémio Vida Literária que lhe foi atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores, porventura o ponto mais alto desse reconhecimento público. Lá estive, no auditório da Culturgest, no Campo Pequeno, no dia 9 de Julho. Recordo-me que foi José Manuel de Vasconcelos a ler o seu texto e que a sessão foi presidida por Francisco José Viegas, então Secretário de Estado da Cultura. Confesso que mal o vi entrar - e do que disse - se é que falou - bem pouco retive. (Mas também poderá ter acontecido eu ter saído à francesa.)

  Crime de lesa majestade seria, naturalmente, esquecer como João Rui de Sousa era o nosso almirante - por uma vez por tal ter passado, quando ao grupo em que se integrava em determinado dia ter sido recusada a entrada num Clube Naval, por falta de lugar e de marcação. Alguém dos que o acompanhavam teve então a ideia de assim o tratar - e foi remédio santo. Não só para o almoço desse dia, como para a pequena história que, a partir dessa inofensiva mentira, assim se criou. Era como que uma senha, o franquear de uma certa intimidade. Apenas poucos conheciam essa quase lenda e ele próprio, se nela lhe falavam, se fazia desentendido.

  Por tudo isto se compreenderá como me custou não ter estado presente na sua última hora. Outros decerto evocarão a sua obra, os livros que publicou, os estudos em que se ocupou. Sem prejuízo da importância que atribuo aos títulos aqui indicados eu fico-me por este registo mais aéreo e pessoal, ligeiro e lateral, subjectivo e sentimental - mas que espero dê bem a ideia do meu muito apreço pelo Poeta, de como me honro em o ter conhecido, e reconhecido. O João Rui de Sousa foi à frente mas não estará sozinho durante muito tempo. Lá nos encontraremos - indubitavelmente, embora em incerta data. Não há pressa.

  É o meu abraço que por esta forma aqui lhe deixo - e deixo também a esperança de que outros, dele assim ouvindo falar, possam sentir-se motivados a procurar e conhecer a sua poesia. Esta é que verdadeiramente importa, os poetas passam mas a Poesia permanece. Dessa forma, nessa dimensão da existência, connosco continua o João Rui de Sousa. E por muito tempo continuará. E o meu abraço retribuirá.


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