Recebemos do autor o seguinte texto, inserido numa das divulgações que
distribui ciclicamente:
Rita Kernn-Larsen
O DIREITO À PAZ
O direito à paz
constitui um dos direitos da chamada terceira geração, segundo a estrutura que
é estabelecida, tais como outros direitos, por exemplo, ecológicos, parece-me,
contudo, cada vez mais um objetivo, importante e necessário a salvaguardar, não
fossem os inúmeros conflitos regionais de guerra declarada ou latente, seja por
motivos políticos, seja por razões de ordem económica, estratégica ou
religiosa.
A “Instituição da Guerra” apresenta-se-nos como uma ordem de magnitude que
transcende qualquer agressor – a vítima particular -, na medida em que faz mais
sentido responsabilizar um país por uma agressão sobre outro, do que imputar
culpas a indivíduos isolados, além de que existe, obviamente, violência
estrutural no sentido em que danos não intencionais são infligidos,
frequentemente, a indivíduos ou países em todo o mundo, porque o opressor está
incrustado nas estruturas, com culturas que não deixam outras alternativas.
A agressão é provocada e algumas das causas são estruturais, outras culturais:
o colonialismo é uma dessas estruturas que ligam a colónia ao poder colonial,
de tal forma que aquela pode revoltar-se para se libertar. Ora, o caminho para
a paz passa, necessariamente, por resoluções imaginativas dos conflitos, o que
pode significar a transformação de algumas estruturas através da substituição
de culturas de violência por mecanismos de apoio ao desenvolvimento
sociocultural, científico e económico dos povos até então oprimidos.
O homem tem o dever de procurar e construir um mundo melhor, porque: «o direito
de viver em paz também pode ser interpretado como o direito de não ser vítima
da agressão. Mas se assumirmos que a agressão não é aleatória, mas causada por
factores estruturais e culturais entre e dentro dos actores, então o direito de
viver em paz é o direito de viver num cenário social (...) onde se faz qualquer
coisa sobre factores e não só sobre actores (...).» (POPPER, 1992:213).
A construção de um mundo melhor, no sentido de promover e preservar a paz,
quaisquer que sejam os conceitos deste valor inestimável (mesmo o mais
rudimentar, como aquele que define paz como ausência de guerra), passa,
certamente, pelo conhecimento dos valores universais constantes na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, e dos instrumentos legais, técnicos e
científicos para os defender, porque, desde logo, é necessário, combater o
irracionalismo que tanto parece estar na moda, sendo certo que atitudes
incoerentes, não se fundamentam na observância dos direitos humanos e, mesmo
aceitando que todo o conhecimento humano é falível e incerto, também não é
menos verdade que o conhecimento é uma procura da realidade, de teorias
explicativas e, objetivamente, verdadeiras.
Neste contexto, não nos é difícil compreender que qualquer violação dos
Direitos Humanos constitui um erro grave, contudo: «combater a falha, o erro,
significa, pois, procurar uma verdade mais objectiva e fazer tudo para detectar
e eliminar tudo o que é falso. (...). Ao reconhecermos a falibilidade do
conhecimento humano, reconhecemos, simultaneamente, que nunca podemos estar
completamente seguros de não termos cometido algum erro.» (Ibid.:18).
A prática de deveres que conduzem a soluções pacíficas de conflitos humanos,
naturalmente que carece de profundos conhecimentos ético-morais, de cidadania,
de Saber-ser e saber-estar no mundo com os outros, numa permanente postura de
tolerância e responsabilidade intelectual e, quantas vezes, na nossa tolerância
e humanidade, somos objetos da intolerância e da desumanidade de outros.
Infelizmente, o número de casos não para de aumentar: campos de concentração,
assassinatos, violação de mulheres e crianças, deportações, migrações em
condições infra-humanas, enfim, destinos terríveis, horrores que ainda
sentimos, seres humanos, homens, mulheres, crianças, idosos, são vítimas de
outros seres humanos, cuja motivação e objetivos são muito discutíveis.
O mundo confronta-se hoje com uma nova calamidade, com dimensões regionais que
podem, provavelmente, alastrar-se mundialmente, qual nova e terrífica pandemia,
esta de natureza bélico/nuclear, a partir da invasão da Ucrânia pela Rússia.
Iniciado este ataque desumano, criminoso e ilegítimo, em 24 de fevereiro de
2022, os combates prosseguem e, em algumas localidades, corpo a corpo.
Na Ucrânia, aldeias, vilas e cidades já foram praticamente destruídas. Centenas
de milhares de pessoas: mulheres, crianças, jovens, idosas e até animais de
estimação, foram dizimadas pelos bombardeamentos russos. Os nossos irmãos não
têm as mínimas condições para desfrutarem de algum conforto, porque; a fome
grassa, a água, os alimentos, a eletricidade e as infraestruturas já não
satisfazem as populações. Glória à Ucrânia.
O homem intelectual, culto e responsável, tem hoje, mais do que no passado, o
dever inalienável de rejeitar o relativismo radical, na medida em que há
valores que jamais se podem mensurar: Deus, verdade, bem, justiça, paz,
liberdade e tantos outros, aliás, parece-me que as posições radicais, não
conduzem, geralmente, a soluções equilibradas, afigurando-se do mais elementar
bom senso, optar por atitudes moderadas, dialogantes, consensuais.
Tal como nos diz Popper: «O pluralismo crítico apresenta uma posição de acordo
com a qual, no interesse da verdade, cada teoria - e quanto mais teorias tanto
melhor - deve ser posta em plano de concorrência com as demais. Esta
concorrência consiste na discussão racional: isto significa que o que está em
causa é a verdade das teorias concorrentes. Aquela teoria, que na discussão
crítica parecer aproximar-se mais da verdade é a melhor e a melhor teoria
prevalece sobre as menos boas. O mesmo se passa com a verdade.» (Ibid.:178).
A Paz constrói-se, seguramente, a partir de um conhecimento cada vez mais
profundo das realidades humanas e, todas as ciências serão poucas, todos os
cientistas e intelectuais, não serão suficientes para prosseguirem na busca de
um mundo melhor, no sentido: não apenas de ausência de guerra; mas também e,
principalmente, no que respeita ao dever do cumprimento dos direitos humanos,
sejam estes individuais ou coletivos, pelo que, de facto, urge cada vez mais
debruçarmo-nos sobre o que as ciências cognitivas podem fazer por um mundo em
efervescência. Afinal, onde é que está localizado, no cérebro humano o
“bom-senso”?
Poder-se-á colocar aqui, também, a questão da vontade e liberdade suficientes,
para resolvermos a deprimente situação da violação dos Direitos Humanos? Será
que, também aqui, o homem está determinado por circunstâncias que não controla
nem domina? Ou, pelo contrário, tem o homem a capacidade para alterar alguma
coisa?
Porque, conforme escreve SEARLE: «A liberdade humana é precisamente, um facto
de experiência. Se desejar alguma prova empírica de tal facto, podemos sem mais
aludir à possibilidade que sempre nos cabe de falsificar quaisquer predições
que alguém possa ter feito acerca do nosso comportamento. Se alguém prediz que
eu vou fazer alguma coisa, posso muito bem não fazer essa coisa.» (SEARLE,
1987:107). Nesta linha, o autor prossegue, mais adiante, afirmando o seguinte:
«A ciência não deixa espaço para a liberdade da vontade (...). Por outro lado,
somos incapazes de abandonar a crença na liberdade da vontade.» (Ibid:113).
A liberdade da vontade não depende, portanto, do determinismo porque, de acordo
com o raciocínio de SEARLE: «A forma de determinismo que em última análise é
incómoda não é o determinismo psicológico. A ideia de que os nossos estados da
mente são suficientes para determinar tudo o que fazemos é, provavelmente
falsa. (...). Se a liberdade é uma ilusão, porque é que é uma ilusão que,
aparentemente, somos incapazes de abandonar? A primeira coisa a observar a
propósito da liberdade humana é que ela está essencialmente ligada à
consciência.
Apenas atribuímos liberdade aos seres conscientes. (...) a maior parte dos
filósofos pensam que a convicção da liberdade humana está essencialmente ligada
ao processo da decisão racional. (...) A experiência característica que nos dá
a convicção da liberdade humana, e é uma experiência da qual somos incapazes de
arrancar a convicção da liberdade, é a experiência de nos empenharmos em acções
voluntárias e intencionais. (...) É esta experiência a pedra basilar da nossa
crença na liberdade da vontade (...)» porque: «No comportamento normal cada
coisa que fazemos suscita a convicção válida ou inválida de que poderíamos
fazer alguma coisa mais, aqui e agora, isto é, permanecendo idênticas todas as
outras condições», donde e concluindo: «... a evolução deu-nos uma forma de
experiência da acção voluntária onde a experiência da liberdade, isto é, a
experiência do sentido de possibilidades alternativas, está inserida na genuína
estrutura do comportamento humano, consciente e intencional.» (Ibid.:
1987:114-120)
Bibliografia
POPPER, Karl R, (1992). Em Busca de um Mundo Melhor, 3a ed. Tradução, Teresa
Curvelo. Lisboa: Editorial Fragmentos.
SEARLE, J., (1987). Mente, Cérebro e Ciência, Lisboa: Edições 70
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