terça-feira, 10 de maio de 2022

Dois poemas de Nicolau Saião

 




O PÃO

 

1.

 

Eis o pão sobre a toalha:

não se agita, não grita

- está ali,  simplesmente

como uma ilha a descobrir

pelo sabor e o cheiro.

 

Um pão morto, um pão vivo

o cortado ou o inteiro?

 

O pão por vezes geme

como uma égua louca

e cresce, cresce ardendo

no sangrento e lavrado

triste e desabitado

nevoento, esfomeado

céu da boca.

 

O pão é a substância

dum bicho transformado:

o tempo   e a terra

onde foi criado.

 

2.

 

Tronco de paz, tronco de escuridão

erguendo o cadafalso para todos

 

Suavíssimo, cercado de claridade

um avião gelou o sonho e a aurora

 

Uma flor crepuscular desafia o delírio

litania de fome destruindo o desejo

 

e uma cidade, angustiada, afoga-se

na sua própria imagem

sem que lembrada seja

como o sabor do pão

 

para ninguém.







NAVALHA

 

O próprio nome assusta

embora seja só

uma operária a sangrar

a pele da fruta. Como um sol

multiplicando-se no seu corpo de aço

marfim ou corno de boi: como um sino

vibrando se se toca

com ela numa pedra

de casa ou sepultura.

 

Com ela limpo às vezes

o lixo do tempo: sóbria mergulhadora

em unhas, pães, barrigas.

 

Fechada é como um nome

calado para sempre.

 

 

ns

in “Os objectos inquietantes”

Prémio Revelação/Poesia 1990 da A.P.E.

Editorial Caminho


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