João Garção
Um mundo de animais fabulosos que são quotidianos e domésticos e
familiares quanto baste, um universo de anjos que são pessoas vulgares, um
continente de gente diversa e de situações encenadas que de repente cobram
razões e têm a sua razão muito própria, a naturalidade do tempo e o inaudito
que a cada momento se encontram e se completam. É possível ser livre, serve
dizer: transportar a liberdade – seja de existir seja de conceber a existência
desta ou daquela maneira intensa e peculiar?
O
pintor diz-nos que sim. E atesta-o com os seus quadros, onde cobra realidade
uma vida tumultuosa, encantada e quase miraculosa: a do seu pensamento.
O
seu pensamento, sublinho.
Pois Carbajal, tendo nele toda a singularidade dos ritmos que às
crianças em geral se atribuem, está longe de ser um pintor naif. Com efeito,
detectam-se facilmente na sua pintura os vestígios dum conhecimento profundo
tanto dos autores do Renascimento como dos modernos que o antecederam, de
Cézanne a Matisse, de Beckman a Picasso, de todos os pintores que souberam
excursionar tanto pela realidade como pela imaginação que cria os mundos
alternativos e reconvertidos que a arte permite e proporciona. Ele é mais um
pintor do fantástico, daquele surrealismo onde a poesia busca um sentido de memória
que lhe permita dar o retrato transfigurado – e por isso mais real – do passado
que se teve e que se lembra com emoção, esse passado onde era possível encenar
um futuro provável – ou antes: desejado.
Numa entrevista dada a um órgão de comunicação onde sagazmente é chamada
a nossa atenção para as suas raízes hispânicas, Carbajal refere o que sempre o
motivou e orienta a sua pintura: as estórias com que as crianças pontilham o
dia a dia, esse dia a dia feito de coisas habituais – de idas e vindas da escola
pelo “chemin des écoliers”, de objectos e móveis de uso quotidiano, de frutos e
de animais, de pessoas que se vêem ao deambular pelas horas correntes; mas
também os grandes medos, os grandes espantos e as grandes alegrias das
descobertas de um lugar, daquilo que se aprende seja com os parentes seja com
os mestres, seja mediante o nosso próprio silêncio e a nossa meditação. E a
maravilha dum livro, dum filme, dum passeio, duma ida a um circo… Para além do
específico bem material dum trabalho aturado.
Sendo um grande colorista, ou seja, um
conhecedor profundo de como um rosa se liga a um cinzento, de como um verde
azeitona pode fazer sentido junto a um amarelo escuro ou um anil, Carbajal tem
também um domínio exemplar do inacabado, do imperfeito e do obscuro – esses que
mudam de plano no interior e no exterior do suporte e que de repente criam uma
nova realidade, tão multifacetada como oportuna.
«Un soldat marche, seul, a travers
la forêt. Il est minuscule, parmi les troncs des sapins immenses, serrés et
compacts comme un mur. On distingue à peine un sentier étroit dans la neige». O pintor, tal como o soldado na floresta
assombrada da Sabedoria Tradicional, só tem para se orientar a sua capacidade
de entrega aos mundos que ele cria e que lhe permitem não desistir, rodeado que
está (como todos afinal) dos perigos que a cada momento o tentam destroçar. Ou
pelo menos impedir que se veja livre dos liames do hábito, do preconceito e da
mesquinhez um pouco sórdida dos infernos sociais.
Com
a naturalidade dos que sabem purificar o seu modus operandi, sem os dramatismos
que os zoilos tentam colar-lhe na face (a arte como objecto de turismo
mental…), o pintor faz com enlevo nascer o quadro, razão de quem sabe que a
arte é ou deve ser um elemento próximo e ao alcance de todos os olhos que
querem de facto ver.
Leia-se: que sabem maravilhar-se, isto é - entender a existência como
inteira evidencia e doação dos adultos que souberam conservar o seu coração de
criança.
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