terça-feira, 31 de maio de 2022

Nicolau Saião, Lyle Carbajal ou O passeio real pelo país da infância

 


João Garção


   Um mundo de animais fabulosos que são quotidianos e domésticos e familiares quanto baste, um universo de anjos que são pessoas vulgares, um continente de gente diversa e de situações encenadas que de repente cobram razões e têm a sua razão muito própria, a naturalidade do tempo e o inaudito que a cada momento se encontram e se completam. É possível ser livre, serve dizer: transportar a liberdade – seja de existir seja de conceber a existência desta ou daquela maneira intensa e peculiar?

   O pintor diz-nos que sim. E atesta-o com os seus quadros, onde cobra realidade uma vida tumultuosa, encantada e quase miraculosa: a do seu pensamento.

   O seu pensamento, sublinho.

   Pois Carbajal, tendo nele toda a singularidade dos ritmos que às crianças em geral se atribuem, está longe de ser um pintor naif. Com efeito, detectam-se facilmente na sua pintura os vestígios dum conhecimento profundo tanto dos autores do Renascimento como dos modernos que o antecederam, de Cézanne a Matisse, de Beckman a Picasso, de todos os pintores que souberam excursionar tanto pela realidade como pela imaginação que cria os mundos alternativos e reconvertidos que a arte permite e proporciona. Ele é mais um pintor do fantástico, daquele surrealismo onde a poesia busca um sentido de memória que lhe permita dar o retrato transfigurado – e por isso mais real – do passado que se teve e que se lembra com emoção, esse passado onde era possível encenar um futuro provável – ou antes: desejado.

   Numa entrevista dada a um órgão de comunicação onde sagazmente é chamada a nossa atenção para as suas raízes hispânicas, Carbajal refere o que sempre o motivou e orienta a sua pintura: as estórias com que as crianças pontilham o dia a dia, esse dia a dia feito de coisas habituais – de idas e vindas da escola pelo “chemin des écoliers”, de objectos e móveis de uso quotidiano, de frutos e de animais, de pessoas que se vêem ao deambular pelas horas correntes; mas também os grandes medos, os grandes espantos e as grandes alegrias das descobertas de um lugar, daquilo que se aprende seja com os parentes seja com os mestres, seja mediante o nosso próprio silêncio e a nossa meditação. E a maravilha dum livro, dum filme, dum passeio, duma ida a um circo… Para além do específico bem material dum trabalho aturado.

   Sendo um grande colorista, ou seja, um conhecedor profundo de como um rosa se liga a um cinzento, de como um verde azeitona pode fazer sentido junto a um amarelo escuro ou um anil, Carbajal tem também um domínio exemplar do inacabado, do imperfeito e do obscuro – esses que mudam de plano no interior e no exterior do suporte e que de repente criam uma nova realidade, tão multifacetada como oportuna.

    «Un soldat marche, seul, a travers la forêt. Il est minuscule, parmi les troncs des sapins immenses, serrés et compacts comme un mur. On distingue à peine un sentier étroit dans la neige». O pintor, tal como o soldado na floresta assombrada da Sabedoria Tradicional, só tem para se orientar a sua capacidade de entrega aos mundos que ele cria e que lhe permitem não desistir, rodeado que está (como todos afinal) dos perigos que a cada momento o tentam destroçar. Ou pelo menos impedir que se veja livre dos liames do hábito, do preconceito e da mesquinhez um pouco sórdida dos infernos sociais.

   Com a naturalidade dos que sabem purificar o seu modus operandi, sem os dramatismos que os zoilos tentam colar-lhe na face (a arte como objecto de turismo mental…), o pintor faz com enlevo nascer o quadro, razão de quem sabe que a arte é ou deve ser um elemento próximo e ao alcance de todos os olhos que querem de facto ver.

   Leia-se: que sabem maravilhar-se, isto é - entender a existência como inteira evidencia e doação dos adultos que souberam conservar o seu coração de criança.


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