Aqui transcrevo o texto, de minha autoria,
que a revista Nova Águia, órgão do Movimento Internacional Lusófono (MIL) dirigida
por Renato Epifânio, a quem endosso a devida vénia, deu a lume no seu número 29,
há poucos dias distribuída.
“Há
seres que para mim, para o meu imaginário de sucessivamente criança,
adolescente e homem maduro, me apareceram e os vi sempre como uma espécie de
entidades caídas da cauda de um cometa.
Assim com Verne, Régio, Nicolas Flamel,
Verhaeren, Camilo Pessanha, Antero, assim com alguns outros de outras bandas,
serve dizer: Monet, Cimarosa, Jacob Epstein, Fritz Lang.
Se os tenho como uma espécie de parábolas através da vida breve, do tempus fugit, não distingo na perfeição
o que neles move o meu reconhecimento pelo que me deram, me foram dando e me
dão ainda nesta aventura peculiar que tem sido viver com os outros e comigo
mesmo, enquanto os anos rolam sob as estrelas imutáveis.
Apenas sei endereçar-lhes um halo de
gratidão.
*
“Concebi
pela inteligência um molde e não atendi à matéria com que tinha de o encher”,
disse Antero em Paris a Alberto Sampaio. E eis que assim e aqui se vê entrar em
cena o deserto com a sua presença inquietante de madre negra e silenciosa, de
olhos acesos no princípio e no fim de Antero. Tentando ocultar a “matéria” que
o Poeta se esforçava por encontrar.
De facto, a busca de novos planetas
empreendida por este claro espírito tão exigente que de si mesmo dizia ser “um parto da Terra monstruoso” e que até
na destruição usava de rigor (como no célebre episódio em que, com esmero algo
arrepiante, esquartejou centenas de laudas escritas nas suas melhores horas,
sob o olhar estupefacto de Eça) processou-se entre palácios e altos jardins,
mas por ora lhe estavam os gelos, os reduzidos oásis, as estradas de pesadelo
onde a cada passo um molosso surge, não atento, ou absurdamente atento, ao
caminhar sem medida, de medida própria, do poeta e do homem.
Antero foi homem e foi poeta e ao extremo
das coisas levou essa condição.
Em Coimbra, onde fora a estudos, encabeça o
movimento que cura de antepor a Castilho,
magister da razão velha, soldado de outro fortim, novos ventos e novos
sóis. E atrás de si leva, e consigo, outros pesquisadores, posto que alguns o
fossem de mais limitados fôlego e trajectória. De Antero se haviam animado. E
passada a ponte e a árvore da “Questão Coimbrã”, construída a nave que haveria
de levar uma tripulação em demanda de outras estrelas e portos, seguiu Antero o
seu navegar com a luz, o acre, o inteiro da vida e da morte por “erros próprios”. É dessa rota que nos
falam os seus poemas e o que de mais fez.
Da sua poesia deverá dizer-se que a anima o
despertar de sons e toadas distantes, não sendo uma poética de certificação mas
de sonho, de desejos e de esperanças (prováveis?improváveis?). Música que
Antero bem adivinhava e sabia e que iria no depois
forjar acontecimentos que pelo menos durante algum tempo mudariam por completo
a face do mundo. “E, pois somos loucos,
vamos / Atraz dos loucos mistérios…/ Deixemos ricas cidades/ Ao sério dos
homens sérios!”, escrevera ele para ser publicado em 1864 nas “Primaveras
românticas – Versos dos vinte anos”. E nos “Sonetos Completos”, “Não me fales de glória: é outro o altar/
onde queimo piedoso o meu incenso”, estes datados de 1862, colocara perto
de si a verdadeira fogueira “de immoto
brilho, poderoso e terno” na qual é dado ao verdadeiro poeta consumir-se: o
amor do mundo, ainda que - se assim o decide o destino - eventualmente plasmado
num ser.
É que Antero era castor e tigre, mas se
deixou as ricas cidades não o fez com
o fito de tornar à floresta: a despeito
de tudo, atingiu cidades mais belas e mais operosas.
Soletro: Nerval, Van Gogh, Vaché, Crevel.
Comparo, medito. E colho em José Régio estas palavras: “Vida de boémia literária, de aspirações ardentes e vagas, de
solicitações tão diversas como logo suspensas, de caóticas leituras em que
simultaneamente figuravam a poesia romântica, a metafísica alemã, a crítica
francesa, o socialismo, o naturalismo ou os grandes pessimistas – essa vida
iniciada em Coimbra para sempre lhe roubou a paz. Mestre amado dos seus
companheiros, chefe pelo vigor da inteligência, a superioridade do talento, o
prestígio da consciência clara e a própria sedução pessoal(…)”. Quem se
admira? Quem se admira pois que Antero – como outros, muitos outros – se
tivesse encontrado numa tarde plúmbea e derradeira de Setembro com a sua outra imagem? É que com terrível
frequência o fim, para os que se atrevem a atravessar as areias “de formas caprichosas e nunca vistas”,
tem uma traça muito semelhante. E querem melhor exemplo de atordoante “ironia transcendente” do que aquela que
Antero criou ao abater-se, na última hora negra de uma vida restringida, num
banco de jardim público em frente do mar?
“Metendo pela Rua de S. Brás,
encaminha-se a passos lentos para o Campo de São Francisco, uma ampla praça
pública de Ponta Delgada. Aí, senta-se num banco, junto do muro do convento da
Esperança. Nesse muro, por cima do banco, um dístico em pedra lavrada mostra a
palavra esperança sobreposta a uma âncora. Antero sorri. Esperança e uma âncora
que o segurem à vida, eis precisamente o que lhe falta”, assim nos descreve Carlos Loures a
última viagem de Antero.
A vida e a morte de Antero de
Quental ilustram de forma suprema o desencontro do muito que se tem com o pouco que
há, o desencontro do homem quase inocente (a despeito das ciladas) em que todos andamos, há que séculos, mergulhados até ao
coração e onde as inquietações que valem não devem, pelo interesse dos áulicos
dos suseranos, ultrapassar o simples dealbar do sol da manja (e, se eles são um
pouco liberais, da fornicação condicionada e reprodutiva) e do espaço de e para
restauro quanto baste.
Antero, homem e poeta, libertário e socialista tanto quanto o podia ser
nesses anos, me parece a mim que tocou todos os mundos, uns por fora e outros
por dentro, da necessidade e da liberdade. E tocou-os de maneira intensa,
profunda.
Tão profunda que como se viu, na sua casa de Ponta Delgada e visando
acertar velhas contas com uma existência que se descompusera, aquele a quem Eça
de Queiroz chamara Santo Antero pôs termo a uma rota chegada a 1891 metendo uma
bala nos miolos.
“Não há já luz que dure,/ E não se
pode crer /Na chama das estrellas/ Que estão sempre a tremer”, escrevera
ele um dia.
A estrela de Antero, essa, haverá de estar sempre alta e fixa, ardente.
Livre e renovadora.
E creio que estará sobre o
deserto.”
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