ENTREVISTA A NICOLAU SAIÃO por António Cândido Franco
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As raízes do “Bureau Surrealista” remontam ao período do teu serviço militar na
Guiné, entre 1968 e 1970. Que aconteceu nesse período?
Resposta NS – Creio que fará
sentido ir a uns breves meses antes, para se ter uma noção clara de tudo: uma
certa noite, na caserna do quartel de Leiria onde então estacionava na primeira
especialidade, conheci Carlos Martins em circunstâncias especiosas: estando já
deitado, um grupo de outros militares entrara para se recolher ao leito e um
deles, ao subir para o beliche, caiu dele para baixo…Os outros desataram a rir.
Eu, algo preocupado e num impulso, dirigi-me ao tombado, perguntei-lhe se se
magoara e ajudei-o a levantar. (Teria procedido a libações?...) Repare-se que
isto se passou na penumbra…No dia seguinte, pela altura do almoço, alguém se me
dirigiu e identificou-se como o caído, agradeceu-me o gesto e referiu-me que já
reparara em mim por eu andar geralmente com um livro na mão…
Ficámos amigos desde então, frequentámos a
seguir, na Trafaria, a mesma especialidade (serviços cripto, material e
segurança) e, depois de mobilizados, fomos com dois meses e picos de intervalo,
ele antes de mim, para o quartel-general em Bissau.
O nosso contacto e identificação com a
surrealidade em particular e as artes & letras em geral, intensificou-se.
Todos os bocados livres que tínhamos usávamo-los para ler e dar grandes
passeatas por Bissau, estabelecermos convívio com outros militares interessados
e gente da população, em suma: visando preenchermos da melhor forma aquele
tempo de exílio...E foi um tempo de descobertas, encantamentos e,
simultaneamente, de preocupações (o nosso trabalho militar a isso levava).
Comprámos materiais simples (canetas de
feltro, guaches, etc) pintávamos e fazíamos colagens (ele principalmente, na
colagem era um mestre) e, arriscando o couro se assim me exprimo, compusemos
mesmo um livrito na tipografia da Secção da “secreta” a que estávamos
adstritos. Eu dei-lhe como qualificação, com a sua aquiescência, “Edição do
bureau surrealista Alentejo/Lisboa”. (Não sei se ele terá conservado algum
exemplar, eu tenho apenas fragmentos dessa poemaria).
Ao vir passar as férias intercalares que
proverbialmente estavam concedidas aos expedicionários a meio da comissão de
serviço, quando regressou levou-me como oferta o livro de Cesariny “A Intervenção
Surrealista”. Congeminámos então que quando voltássemos entraríamos em contacto
com os surrealistas que conseguíssemos achar (não tínhamos bem a noção de quem
eram exactamente nem onde se encontravam).
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O teu regresso a Portugal deu-se em 1970, aos vinte e quatro anos, e logo
procuraste, com Carlos Martins, contactar em Lisboa com o grupo dos
surrealistas, que acabara de publicar a importante colectânea Grifo. Qual o papel de António José
Forte, que estivera em Portalegre na primeira metade da década de 60 e com o
qual mantinhas um mínimo de proximidade, nesse primeiro contacto?
NS – O Forte deixara na cidade
confrades com quem se continuava a corresponder: principalmente um João Silva,
militante comunista com quem eu me passei a dar em largas conversas nas nossas
horas nocturnas, entretidas no estabelecimento de electrodomésticos dum seu
irmão e onde ele ajudava na contabilidade; e o seu ex-colega funcionário das
carrinhas Gulbenkian Donato Faria, pessoa de cordialíssimo trato e firmes interesses
culturais que me emprestava todos os livros disponíveis do acervo em armazém e,
dessarte, me permitiu cimentar certos ritmos interiores. Por intermédio deste
escrevemos ao Forte, que levou a carta aos outros confrades e, em resposta,
marcaram-nos encontro para num determinado dia, a contento, nos encontrarmos
todos no Café Monte Carlo, onde então tinham estabelecido uma tertúlia,
digamos, ou pelo menos onde costumavam juntar-se habitualmente.
Lá fomos no dia aprazado e encontrámos à
nossa espera o Virgilio Martinho, o Ricarte-Dácio, o Ernesto Sampaio, o Forte.
Recordo-me que o Pedro Oom chegou mais tarde bem como o Herberto Helder e, se
bem me lembro, a Fernanda Alves, o Miguel Erlich e a mulher…
Tínhamos-lhes enviado poemas meus e colagens
do Carlos, à guisa de “cartão de apresentação” e tanto quanto me lembro eles
ficaram logo a contar connosco para a “Grifo” número 2…que jamais saíu por
impedimento da Pide ou da Censura.
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Qual foi a tua impressão do grupo que se reunia no café Monte Carlo e como
individualizas nele Pedro Oom, que viria a morrer pouco depois, em Abril de 1974,
e que tinha mais vinte anos do que tu e vinha do primeiro período, que seria
possível classificar de heróico, da afirmação surrealista em Portugal?
NS – A primeira impressão - e
por mim falo - foi de que tínhamos encontrado pessoas com quem nos podíamos
fazer entender…que nos entendiam. Sentímos neles, de imediato, uma forte
corrente de inteligência e de imaginação se assim me é dado exprimir. Ficámos
logo à vontade…
Pedro Oom era um poeta que pertencia um pouco
à nossa iconologia pessoal e foi com certa emoção que nos vímos a conversar com
ele de forma interessada e amena, pois ele apesar de agudo e brilhante era
cordial e cordato. Não detectei em qualquer deles, aliás, sinais de pedantice
ou a mínima sobranceria, antes um interesse afável pelos “moços” que de repente
lhes chegavam trazendo algumas coisitas, o que no dizer lhano de Ricarte-Dácio
não lhes costumava suceder vulgarmente.
Os outros tinham pelo Pedro uma visível
aceitação, as conversas de uns para os outros iam e vinham nas mais variadas
direcções, esfuziavam por vezes com senso de humor ou com críticas e análises
certeiras – o que se nos comprazia a valer não nos surpreendeu excessivamente:
era isso que já esperávamos encontrar…ou sonháramos encontrar. Novos como
éramos, apaixonados pela poesia e a arte, saímos dali rejubilando tanto mais
que nos tinham aberto a porta para futuros encontros com extrema franqueza, sem
marcações prévias…(Digo sem acinte, mas com frontalidade: na Paris de 1999 ao
encontrar-me, aliás com cordialidade fornecida por Michel Lowy e outra conviva,
com o Grupo surrealista que se reunia num café da Rua do Rivoli quase em frente
da Tour Saint Jacques de iniciática memória e presença – fiquei admirado ao
saber que, em determinados dias, as reuniões eram só para quem fosse mesmo
membro do grupo. Formalismo muito gaulês? Talvez…).
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Com o teu regresso a Portalegre dá-se a criação do “Bureau Surrealista do
Alentejo”. Quais foram as acções e os membros deste grupo?
NS – “Bureau Surrealista
Alentejano” mais simples e humildemente, se me permites a leve correcção…Para
marcarmos que não nos atrevíamos a dizer que era de toda a província
transtagana, faço-me entender? De 70 e pelos anos posteriores, o núcleo duro, ao
qual por vezes se chegavam confrades curiosos ou artistas nas proximidades (lembro
por exemplo o António Ventura - que com o pseudónimo de André Gameiro dedicou
dois belos poemas a Manuel de Castro num periódico local - depois ido para os
meios da docência universitária e da historiografia regionalista) era
informalmente formado por mim, pelo Carlos Martins (que algum tempo depois se
mudou de Lisboa para Santa Marta-Alcoutim, abrindo aí uma pequena
galeria/atelier de cerâmica com sua mulher Ana dos Santos) pelo A.J.Silverberg,
pelo Palácios da Silva, pelo Margarido Neves (falecido muito novo, a quem
dediquei o meu poema “Defunto” de “Os objectos inquietantes” e que também
alinhava comigo, como libertário, nos tratos políticos de Abril), como “alentejano
itinerante” como ele dizia com humor o Lud (Ludgero Viegas Pinto) e, mais
tarde, o João Garção.
As acções levadas a efeito, conforme se podia
ou nos era facultado, foram constituídas por exposições em locais diversos
(Galeria Municipal portalegrense, Clube de Futebol do Alentejo, Biblioteca de
Portalegre…), emissão de textos deste ou daquele talhe, pinturas e poemas inseridos
aqui e acolá (“Distrito de Portalegre”, “A Rabeca”, “Diário de Lisboa”,
“República”…), presenças em emissoras de rádio locais (Rádio Portalegre, Rádio
S.Mamede…), participações em momentos de poesia e em publicações várias…edições
reduzidas de livros copiografados…
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Com a tua aproximação ao Mário Cesariny, que estava à margem do grupo que se
reunia no Monte Carlo, o “Bureau Surrealista do Alentejo” transforma-se em
“Bureau Surrealista Lisboa/Portalegre”. Como e quando conheceste Mário Cesariny
e quais as principais acções do novo “Bureau” e até quando duraram?
NS – Conforme já o evoquei em
texto dado a lume até nesta revista, conheci-o em Lisboa nos princípios de 79.
Combinámos de imediato levar a efeito acções em conjunto. Através dos tempos, de
início com maior frequência depois mais intermitentemente, emitímos textos,
participámos em mostras por vezes estimuladas por nós (na Biblioteca de
Portalegre, no Teatro Ibérico e na SNBA…) demos a lume poemas e prosas em
publicações diversas, estivemos presentes em sessões (no cineclube de
Portalegre que eu então assessorava, num salão de bombeiros em Alcântara
através do grupo de teatro Mandrágora…), mantivemos relações com confrades
estrangeiros, etc.
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Assumindo-te como libertário, estabeleceste relações com o movimento libertário
em Portugal depois do 25 de Abril de 1974 e chegaste a encarar uma colaboração
estreita do “Bureau” com o jornal fundado por Francisco Quintal, Voz Anarquista. Conta-nos o que foi este
projecto.
NS – Em certo dia, depois de
colaborar com alguns textos diversos nesse periódico e também no “A Batalha”, como
eu colaborava com poemas e prosas no “A Rabeca” (de que fora chefe-de-redacção
em anterior gerência até ser “saneado à esquerda”, como então se dizia) e no “O
Distrito de Portalegre”, sugeri a Francisco Quintal a publicação dum
suplemento, numa folha e sobres, em que eu e o Mário daríamos a lume coisas de
índole surrealista com incursões de outros autores que achássemos valiosos,
numa prática abrangente.
Ele concordou em levar a outros membros do
jornal a nossa proposta, que em princípio aceitou. E nós juntámos material…No entanto,
algum tempo mais tarde comunicou-me que o projecto talvez não se pudesse levar
a cabo, pois o jornal era pequeno e o espaço fazia falta para artigos
difundindo as ideias anarquistas por extenso. Claro que compreendêmos a sua
deles opção e…não insistímos.
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Outra colaboração que o “Bureau” chegou a encarar no após 25 de Abril com a
imprensa libertária foi com o jornal A
Batalha. Como conheceste Emídio Santana e que tipo de colaboração se
estabeleceu entre vocês?
NS – Conheci Emídio Santana no
decorrer, no final, duma sessão que já não recordo bem qual foi. Sei que o
Margarido Neves, um jovem dinâmico e portalegrense como eu, me acompanhava,
pois também vogava nas concepções libertárias e surreais. Ficámos a dormir em
casa do Santana, que me pareceu ser um homem bom e cordial e cuja figura, ainda
por cima, me surpreendeu por ser fisicamente muito parecido com o Breton…
Publiquei
em consequência no seu jornal alguns textos, mas nunca houve ensejo de lhe
propormos a cedência de uma ou duas páginas para um suplemento. A anterior
sugestão aos da “Voz” não surtira efeito…talvez por isso nada dissemos ao
Santana. Ainda que o Mário, que encarava os confrades tanto da Voz como da
Batalha como um todo, digamos – eram os confrades anarquistas e ele tinha
globalmente apreço por eles, sem distinguir excessivamente que uns eram dum
periódico e outros doutro – tenha arrolado material e pensado em juntar mais,
doutros autores, para o darmos ali a lume por meu envio, como se fizera com
outros textos.
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Colaboraste ainda na revista A Ideia
em 1981 com um texto que foi o primeiro que se publicou na revista sobre o
movimento surrealista. Como se deu a tua aproximação à revista?
NS – Já não tenho bem presente
que tipo de contactos, especificamente, foram efectivados…Só me lembro que num
belo dia, recolhido algum material, enviei à revista esse acervo de coisas a
que o Mário deu o seu aval com todo o gosto.
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Houve colaborações entre o “Bureau” e outra imprensa libertária, que não estas
três (Voz Anarquista, A Batalha e A Ideia)?
NS – Tanto quanto sei só eu
publiquei, dentro de portas, num curioso mas efémero jornalzinho artístico
libertário, “O Pasquim”, um par de textos e poemitas…Fora de portas, o Carlos
Martins teve algumas ligações com periódicos espanhóis e do universo
anglo-saxão, mas só pela rama as conheci. Quanto ao Mário, entretinha
relacionamento com órgãos estrangeiros, mas não sei bem se, sendo surrealistas,
tinham também uma orientação libertária ou mesmo francamente anarquista.
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Como via Mário Cesariny as relações do surrealismo com a imprensa libertária?
NS – Do que me apercebi, com
naturalidade cordial e interessada. Posso recordar-me que, quando lhe sugeri
levarmos a proposta a Quintal - e o mesmo se passou com “A Ideia”- a sua
reacção foi no estilo “com os anarcas, tudo”. Creio que é significativo e na
verdade detectei nele o sentimento de que os anarquistas seriam os que veriam
(pelo menos esperava-se ver neles confrades certos) os surrealistas como
companheiros de jornada ainda que noutra dimensão, digamos.
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André Breton publicou em 11 de Janeiro de 1952 no jornal Le Libertaire, no quadro da colaboração do grupo surrealista de
Paris com a Federação Anarquista, um texto poético em prosa, “La Claire Tour”,
mais tarde integrado no livro La Clé des
Champs (1952), em que afirma que o surrealismo se viu pela primeira vez, de
forma consciente, no espelho negro do anarquismo. Como vês a cooperação entre
os dois movimentos?
NS – Vejo-a como criadora de
imensas virtualidades. Os libertários, a meu ver, são os irmãos colaços dos
surrealistas, em última análise os libertários/anarquistas e os surrealistas
SÃO O ROSTO LUMINOSO DO FUTURO. No passado os surrealistas pensaram que os
marxianos (pois uma intensa e hábil propaganda, a agit-prop dos partidões,
forjava esse cenário) eram seus co-irmãos, companheiros de jornada com os quais
poderiam ajudar a descoisificar o mundo. Falaz ingenuidade! Os tempos e a
História mostraram que os “amanhãs que cantavam” eram não mais, afinal, que o
ulular que subia do fundo dos cárceres para assombrar as gentes e aterrorizar
as consciências livres.
Hoje,
que já se sabe tudo e o fascismo vermelho não mais pode erguer, senão com as
fauces destapadas, o seu vulto equívoco e sinistro, compreende-se que nenhum
autoritarismo, seja laico ou fideísta, pode agregar o surrealismo sequer como
mero contrapeso, quanto mais como acompanhante…
Breton concluiu-o, diria com estima, à sua
custa. Nós, que tivemos a sorte de existir num mundo se não mais feliz e
adequado pelo menos mais esclarecido, pois as décadas transcorreram, decerto
não perderemos de vista essa lição!
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