quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Acção Surrealista e Movimento Libertário

 

ENTREVISTA A NICOLAU SAIÃO por António Cândido Franco





1 As raízes do “Bureau Surrealista” remontam ao período do teu serviço militar na Guiné, entre 1968 e 1970. Que aconteceu nesse período?

 

Resposta NS – Creio que fará sentido ir a uns breves meses antes, para se ter uma noção clara de tudo: uma certa noite, na caserna do quartel de Leiria onde então estacionava na primeira especialidade, conheci Carlos Martins em circunstâncias especiosas: estando já deitado, um grupo de outros militares entrara para se recolher ao leito e um deles, ao subir para o beliche, caiu dele para baixo…Os outros desataram a rir. Eu, algo preocupado e num impulso, dirigi-me ao tombado, perguntei-lhe se se magoara e ajudei-o a levantar. (Teria procedido a libações?...) Repare-se que isto se passou na penumbra…No dia seguinte, pela altura do almoço, alguém se me dirigiu e identificou-se como o caído, agradeceu-me o gesto e referiu-me que já reparara em mim por eu andar geralmente com um livro na mão…

  Ficámos amigos desde então, frequentámos a seguir, na Trafaria, a mesma especialidade (serviços cripto, material e segurança) e, depois de mobilizados, fomos com dois meses e picos de intervalo, ele antes de mim, para o quartel-general em Bissau.

  O nosso contacto e identificação com a surrealidade em particular e as artes & letras em geral, intensificou-se. Todos os bocados livres que tínhamos usávamo-los para ler e dar grandes passeatas por Bissau, estabelecermos convívio com outros militares interessados e gente da população, em suma: visando preenchermos da melhor forma aquele tempo de exílio...E foi um tempo de descobertas, encantamentos e, simultaneamente, de preocupações (o nosso trabalho militar a isso levava).

  Comprámos materiais simples (canetas de feltro, guaches, etc) pintávamos e fazíamos colagens (ele principalmente, na colagem era um mestre) e, arriscando o couro se assim me exprimo, compusemos mesmo um livrito na tipografia da Secção da “secreta” a que estávamos adstritos. Eu dei-lhe como qualificação, com a sua aquiescência, “Edição do bureau surrealista Alentejo/Lisboa”. (Não sei se ele terá conservado algum exemplar, eu tenho apenas fragmentos dessa poemaria).

  Ao vir passar as férias intercalares que proverbialmente estavam concedidas aos expedicionários a meio da comissão de serviço, quando regressou levou-me como oferta o livro de Cesariny “A Intervenção Surrealista”. Congeminámos então que quando voltássemos entraríamos em contacto com os surrealistas que conseguíssemos achar (não tínhamos bem a noção de quem eram exactamente nem onde se encontravam).

 

2 O teu regresso a Portugal deu-se em 1970, aos vinte e quatro anos, e logo procuraste, com Carlos Martins, contactar em Lisboa com o grupo dos surrealistas, que acabara de publicar a importante colectânea Grifo. Qual o papel de António José Forte, que estivera em Portalegre na primeira metade da década de 60 e com o qual mantinhas um mínimo de proximidade, nesse primeiro contacto?

 

NS – O Forte deixara na cidade confrades com quem se continuava a corresponder: principalmente um João Silva, militante comunista com quem eu me passei a dar em largas conversas nas nossas horas nocturnas, entretidas no estabelecimento de electrodomésticos dum seu irmão e onde ele ajudava na contabilidade; e o seu ex-colega funcionário das carrinhas Gulbenkian Donato Faria, pessoa de cordialíssimo trato e firmes interesses culturais que me emprestava todos os livros disponíveis do acervo em armazém e, dessarte, me permitiu cimentar certos ritmos interiores. Por intermédio deste escrevemos ao Forte, que levou a carta aos outros confrades e, em resposta, marcaram-nos encontro para num determinado dia, a contento, nos encontrarmos todos no Café Monte Carlo, onde então tinham estabelecido uma tertúlia, digamos, ou pelo menos onde costumavam juntar-se habitualmente.

  Lá fomos no dia aprazado e encontrámos à nossa espera o Virgilio Martinho, o Ricarte-Dácio, o Ernesto Sampaio, o Forte. Recordo-me que o Pedro Oom chegou mais tarde bem como o Herberto Helder e, se bem me lembro, a Fernanda Alves, o Miguel Erlich e a mulher…

  Tínhamos-lhes enviado poemas meus e colagens do Carlos, à guisa de “cartão de apresentação” e tanto quanto me lembro eles ficaram logo a contar connosco para a “Grifo” número 2…que jamais saíu por impedimento da Pide ou da Censura.

 

3 Qual foi a tua impressão do grupo que se reunia no café Monte Carlo e como individualizas nele Pedro Oom, que viria a morrer pouco depois, em Abril de 1974, e que tinha mais vinte anos do que tu e vinha do primeiro período, que seria possível classificar de heróico, da afirmação surrealista em Portugal?

 

NS – A primeira impressão - e por mim falo - foi de que tínhamos encontrado pessoas com quem nos podíamos fazer entender…que nos entendiam.  Sentímos neles, de imediato, uma forte corrente de inteligência e de imaginação se assim me é dado exprimir. Ficámos logo à vontade…

  Pedro Oom era um poeta que pertencia um pouco à nossa iconologia pessoal e foi com certa emoção que nos vímos a conversar com ele de forma interessada e amena, pois ele apesar de agudo e brilhante era cordial e cordato. Não detectei em qualquer deles, aliás, sinais de pedantice ou a mínima sobranceria, antes um interesse afável pelos “moços” que de repente lhes chegavam trazendo algumas coisitas, o que no dizer lhano de Ricarte-Dácio não lhes costumava suceder vulgarmente.

  Os outros tinham pelo Pedro uma visível aceitação, as conversas de uns para os outros iam e vinham nas mais variadas direcções, esfuziavam por vezes com senso de humor ou com críticas e análises certeiras – o que se nos comprazia a valer não nos surpreendeu excessivamente: era isso que já esperávamos encontrar…ou sonháramos encontrar. Novos como éramos, apaixonados pela poesia e a arte, saímos dali rejubilando tanto mais que nos tinham aberto a porta para futuros encontros com extrema franqueza, sem marcações prévias…(Digo sem acinte, mas com frontalidade: na Paris de 1999 ao encontrar-me, aliás com cordialidade fornecida por Michel Lowy e outra conviva, com o Grupo surrealista que se reunia num café da Rua do Rivoli quase em frente da Tour Saint Jacques de iniciática memória e presença – fiquei admirado ao saber que, em determinados dias, as reuniões eram só para quem fosse mesmo membro do grupo. Formalismo muito gaulês? Talvez…).

 

 

4 Com o teu regresso a Portalegre dá-se a criação do “Bureau Surrealista do Alentejo”. Quais foram as acções e os membros deste grupo?

 

NS – “Bureau Surrealista Alentejano” mais simples e humildemente, se me permites a leve correcção…Para marcarmos que não nos atrevíamos a dizer que era de toda a província transtagana, faço-me entender? De 70 e pelos anos posteriores, o núcleo duro, ao qual por vezes se chegavam confrades curiosos ou artistas nas proximidades (lembro por exemplo o António Ventura - que com o pseudónimo de André Gameiro dedicou dois belos poemas a Manuel de Castro num periódico local - depois ido para os meios da docência universitária e da historiografia regionalista) era informalmente formado por mim, pelo Carlos Martins (que algum tempo depois se mudou de Lisboa para Santa Marta-Alcoutim, abrindo aí uma pequena galeria/atelier de cerâmica com sua mulher Ana dos Santos) pelo A.J.Silverberg, pelo Palácios da Silva, pelo Margarido Neves (falecido muito novo, a quem dediquei o meu poema “Defunto” de “Os objectos inquietantes” e que também alinhava comigo, como libertário, nos tratos políticos de Abril), como “alentejano itinerante” como ele dizia com humor o Lud (Ludgero Viegas Pinto) e, mais tarde, o João Garção.

  As acções levadas a efeito, conforme se podia ou nos era facultado, foram constituídas por exposições em locais diversos (Galeria Municipal portalegrense, Clube de Futebol do Alentejo, Biblioteca de Portalegre…), emissão de textos deste ou daquele talhe, pinturas e poemas inseridos aqui e acolá (“Distrito de Portalegre”, “A Rabeca”, “Diário de Lisboa”, “República”…), presenças em emissoras de rádio locais (Rádio Portalegre, Rádio S.Mamede…), participações em momentos de poesia e em publicações várias…edições reduzidas de livros copiografados…

 

 

5 Com a tua aproximação ao Mário Cesariny, que estava à margem do grupo que se reunia no Monte Carlo, o “Bureau Surrealista do Alentejo” transforma-se em “Bureau Surrealista Lisboa/Portalegre”. Como e quando conheceste Mário Cesariny e quais as principais acções do novo “Bureau” e até quando duraram?

 

NS – Conforme já o evoquei em texto dado a lume até nesta revista, conheci-o em Lisboa nos princípios de 79. Combinámos de imediato levar a efeito acções em conjunto. Através dos tempos, de início com maior frequência depois mais intermitentemente, emitímos textos, participámos em mostras por vezes estimuladas por nós (na Biblioteca de Portalegre, no Teatro Ibérico e na SNBA…) demos a lume poemas e prosas em publicações diversas, estivemos presentes em sessões (no cineclube de Portalegre que eu então assessorava, num salão de bombeiros em Alcântara através do grupo de teatro Mandrágora…), mantivemos relações com confrades estrangeiros, etc.

 

6 Assumindo-te como libertário, estabeleceste relações com o movimento libertário em Portugal depois do 25 de Abril de 1974 e chegaste a encarar uma colaboração estreita do “Bureau” com o jornal fundado por Francisco Quintal, Voz Anarquista. Conta-nos o que foi este projecto.

 

NS – Em certo dia, depois de colaborar com alguns textos diversos nesse periódico e também no “A Batalha”, como eu colaborava com poemas e prosas no “A Rabeca” (de que fora chefe-de-redacção em anterior gerência até ser “saneado à esquerda”, como então se dizia) e no “O Distrito de Portalegre”, sugeri a Francisco Quintal a publicação dum suplemento, numa folha e sobres, em que eu e o Mário daríamos a lume coisas de índole surrealista com incursões de outros autores que achássemos valiosos, numa prática abrangente.

  Ele concordou em levar a outros membros do jornal a nossa proposta, que em princípio aceitou. E nós juntámos material…No entanto, algum tempo mais tarde comunicou-me que o projecto talvez não se pudesse levar a cabo, pois o jornal era pequeno e o espaço fazia falta para artigos difundindo as ideias anarquistas por extenso. Claro que compreendêmos a sua deles opção e…não insistímos.

 

7 Outra colaboração que o “Bureau” chegou a encarar no após 25 de Abril com a imprensa libertária foi com o jornal A Batalha. Como conheceste Emídio Santana e que tipo de colaboração se estabeleceu entre vocês?

 

NS – Conheci Emídio Santana no decorrer, no final, duma sessão que já não recordo bem qual foi. Sei que o Margarido Neves, um jovem dinâmico e portalegrense como eu, me acompanhava, pois também vogava nas concepções libertárias e surreais. Ficámos a dormir em casa do Santana, que me pareceu ser um homem bom e cordial e cuja figura, ainda por cima, me surpreendeu por ser fisicamente muito parecido com o Breton…

  Publiquei em consequência no seu jornal alguns textos, mas nunca houve ensejo de lhe propormos a cedência de uma ou duas páginas para um suplemento. A anterior sugestão aos da “Voz” não surtira efeito…talvez por isso nada dissemos ao Santana. Ainda que o Mário, que encarava os confrades tanto da Voz como da Batalha como um todo, digamos – eram os confrades anarquistas e ele tinha globalmente apreço por eles, sem distinguir excessivamente que uns eram dum periódico e outros doutro – tenha arrolado material e pensado em juntar mais, doutros autores, para o darmos ali a lume por meu envio, como se fizera com outros textos.

 

8 Colaboraste ainda na revista A Ideia em 1981 com um texto que foi o primeiro que se publicou na revista sobre o movimento surrealista. Como se deu a tua aproximação à revista?

 

NS – Já não tenho bem presente que tipo de contactos, especificamente, foram efectivados…Só me lembro que num belo dia, recolhido algum material, enviei à revista esse acervo de coisas a que o Mário deu o seu aval com todo o gosto.

 

 

9 Houve colaborações entre o “Bureau” e outra imprensa libertária, que não estas três (Voz Anarquista, A Batalha e A Ideia)?

 

NS – Tanto quanto sei só eu publiquei, dentro de portas, num curioso mas efémero jornalzinho artístico libertário, “O Pasquim”, um par de textos e poemitas…Fora de portas, o Carlos Martins teve algumas ligações com periódicos espanhóis e do universo anglo-saxão, mas só pela rama as conheci. Quanto ao Mário, entretinha relacionamento com órgãos estrangeiros, mas não sei bem se, sendo surrealistas, tinham também uma orientação libertária ou mesmo francamente anarquista.

 

10 Como via Mário Cesariny as relações do surrealismo com a imprensa libertária?

 

NS – Do que me apercebi, com naturalidade cordial e interessada. Posso recordar-me que, quando lhe sugeri levarmos a proposta a Quintal - e o mesmo se passou com “A Ideia”- a sua reacção foi no estilo “com os anarcas, tudo”. Creio que é significativo e na verdade detectei nele o sentimento de que os anarquistas seriam os que veriam (pelo menos esperava-se ver neles confrades certos) os surrealistas como companheiros de jornada ainda que noutra dimensão, digamos.

 

11 André Breton publicou em 11 de Janeiro de 1952 no jornal Le Libertaire, no quadro da colaboração do grupo surrealista de Paris com a Federação Anarquista, um texto poético em prosa, “La Claire Tour”, mais tarde integrado no livro La Clé des Champs (1952), em que afirma que o surrealismo se viu pela primeira vez, de forma consciente, no espelho negro do anarquismo. Como vês a cooperação entre os dois movimentos?

 

NS – Vejo-a como criadora de imensas virtualidades. Os libertários, a meu ver, são os irmãos colaços dos surrealistas, em última análise os libertários/anarquistas e os surrealistas SÃO O ROSTO LUMINOSO DO FUTURO. No passado os surrealistas pensaram que os marxianos (pois uma intensa e hábil propaganda, a agit-prop dos partidões, forjava esse cenário) eram seus co-irmãos, companheiros de jornada com os quais poderiam ajudar a descoisificar o mundo. Falaz ingenuidade! Os tempos e a História mostraram que os “amanhãs que cantavam” eram não mais, afinal, que o ulular que subia do fundo dos cárceres para assombrar as gentes e aterrorizar as consciências livres.

   Hoje, que já se sabe tudo e o fascismo vermelho não mais pode erguer, senão com as fauces destapadas, o seu vulto equívoco e sinistro, compreende-se que nenhum autoritarismo, seja laico ou fideísta, pode agregar o surrealismo sequer como mero contrapeso, quanto mais como acompanhante…

  Breton concluiu-o, diria com estima, à sua custa. Nós, que tivemos a sorte de existir num mundo se não mais feliz e adequado pelo menos mais esclarecido, pois as décadas transcorreram, decerto não perderemos de vista essa lição!


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