segunda-feira, 1 de março de 2021

José Manuel Anes, Breves notas sobre Alquimia

 


Nicolau Saião, A criação do mundo

(cartão para tapeçaria)



A Alquimia é uma prática iniciática e espiritual em que se trabalha com e sobre a matéria, “sacrificando-a”, fazendo-a passar por um processo sacrificial de “morte e ressurreição” – do “Solve” ao Coagula”, desde o “nigredo” ou Obra ao Negro, a destruturação, ao “albedo” ou Obra ao Branco, a purificação e por último ao “rubedo” ou Obra ao Rubro, a fase última de exaltação e espiritualização da matéria, que a conduz a uma derradeira modificação de “estado”, uma verdadeira transmutação. Salientemos a analogia da Alquimia com o Xamanismo, no que toca à “morte” e decomposição da matéria nos seus princípios – “solve”, “separatio”, “obra ao negro” – seguida da sua integração, purificação e exaltação – “coagula”, “conjunctio”, “obras ao branco e ao rubro”, processo fim do qual a matéria atinge um “estado extático”, isto é, tem um “novo corpo”.

 Este novo estado da matéria, em que os alquimistas acreditam ser possível de atingir, inclui a Pedra dos Filósofos e por fim a Pedra Filosofal, com propriedades medicinais – o Elixir da Longa Vida - e transmutatórias – quer na Argiropeia (fabricação da prata), quer na Crisopeia (fabricação do ouro). Estas aplicações da Pedra Filosofal são apenas demonstrações do seu poder mas, segundo o preceito tradicional – e para os que acreditam na Arte transmutatória -, não devem constituir o fim último do alquimista sob pena de ele se transformar num “assoprador de carvões”, um homem obcecado pela “aura sacra fames”.

Na Alquimia verdadeira tem de haver uma íntima associação entre o operador, o alquimista e a matéria, desde a fase de preparação até às fases de evolução da mesma. O alquimista é assim modificado, espiritualizado, num processo evolutivo que acompanha o da matéria. Esse processo alquímico poderá recorrer à captação do um “espírito universal” e/ou a excitação de um “fogo secreto” interior à matéria.

  

 

Teoria e Filosofia alquímicas; imaginário, símbolo, mito e rito

 

Como dissemos, a Alquimia é, em grande parte, uma aplicação do Hermetismo alexandrino, exemplarmente simbolizado pela Tábua de Esmeralda, atribuída a Hermes Trismegisto - que é um modelo de muita literatura alquímica posterior e mesmo da prática alquímica até aos nossos dias -, a qual passamos a transcrever:

É verdade, certo e sem nenhuma dúvida. Tudo o que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está em baixo, para realizar os milagres de uma só coisa. Da mesma maneira que todas as coisas procedem dum Único, do mesmo modo, por adaptação, elas nasceram dessa coisa única. O seu pai é o Sol e a sua mãe a Lua. O vento trouxe-o no seu ventre e a Terra é a sua ama. (o Único) É o pai de todos os milagres do mundo. O seu poder é perfeito, se ela (essa coisa única) é convertida em terra. Separa a terra do fogo e o subtil do grosseiro, suavemente e com grande prudência. Ele eleva-se da terra ao céu e torna a descer sobre a terra, recebendo assim a potência das realidades superiores e inferiores Deste modo, tu ganharás a glória do mundo inteiro e toda a obscuridade se afastará de ti. É a potência das potências, que estende a sua vitória sobre todas as coisas subtis e penetra todas as coisas sólidas. Assim foi criado o microcosmo, segundo o modelo do macrocosmo. Assim e deste modo se fazem as aplicações maravilhosas. Eis porque eu sou chamado de Hermes Trismegisto, pois eu possuo as três partes da sabedoria do mundo inteiro. Perfeito é o que eu disse da obra solar.

        Como se vê o projecto do alquimista é prometeico, convidando-o a realizar no seu laboratório - no microcosmo -, a utopia alquímica, assumindo um papel demiúrgico de re-criação. Este mito alquímico fundador – que lembra outros mitos familiares à Antropologia, como o dos Dogon estudado por Griaule (“Dieu d’eau”) - vai repercutir-se ao longo da história da Alquimia, com algumas pequenas variações.

Baseada num claro “dualismo sexual”, - ver os capítulos “Le monder sexualisé” e “Terra mater. Petra genitrix”, da clássica obra de Mircea Eliade, Forgerons et alchimistes (com tradução portuguesa “Ferreiros e alquimistas”), onde ele refere a “embriologia mineral” dos alquimistas -, o simbolismo da Alquimia parte das oposições binárias: Sol/Lua, Pai/Mãe, Enxofre/Mercúrio, Ouro/Prata, Fogo/Água, masculino/feminino, esperma/menstruo, activo/passivo, etc. A Grande Obra alquímica é a união do elemento masculino, o Enxofre, com o elemento feminino, o Mercúrio, falando os diversos autores em “união” e “geração”. Esta dimensão sexual da Alquimia foi explorada por Jung na sua célebre obra Psicologia e Alquimia, tendo Bachelard feito, antes, algo semelhante em A Psicanálise do fogo.

 Sistematizemos, então os conceitos - que não designam corpos químicos (elementos, compostos ou substâncias), entenda-se, mas que designam qualidades - nos quais assenta a teoria alquímica: 

Dimensão estática:

- duas “naturezas”: pai/mãe, masculino/feminino, fixo/volátil, activo/passivo, quente/frio, Sol/Lua, Enxofre/Mercúrio;

- três “princípios”: Enxofre, Mercúrio e Sal; este terceiro princípio, mediador entre os dois primeiros – e por vezes simbolizado pelo Bispo que casa o Rei e a Raínha -, embora implícito desde cedo, foi explicitado por Roger Bacon, Basílio Valentim e Paracelso.

- quatro “elementos”: Terra, Água, Ar e Fogo, da velha teoria grega associada a Anaximandro, Aristóteles, entre outros;

- a “quinta essência”, que pode fazer correspondência com o Sal e que se denomina por vezes o quinto elemento, o Éter, ou a Quinta Essência.

Saliente-se a importância estrutural da binaridade e da ternaridade no simbolismo alquímico.

- Dimensão dinâmica:

- em dois momentos: Solve e Coagula, Separar e Reunir, Morte e Ressurreição; como vimos, há uma clara raíz xamânica neste “desmembramento”, nesta “morte”, à qual se segue uma “ressurreição num novo corpo;

            - em três momentos: Obra ao Negro (Nigredo) – a morte sacrificial da matéria - » Obra ao Branco (Albedo) – a purificação da matéria - » Obra ao Rubro (Rubedo) – a exaltação da nova matéria, ressurgida, renascida -, isto é, as três cores da Grande Obra alquímica.

Uma vez mais a binaridade e a ternaridade, desta vez não na dimensão estática, mas na dimensão dinâmica do processo alquímico.

                                                                                 José Manuel Anes

NOTAS

Texto extraido do meu livro “Uma Introdução ao Esoterismo ocidental e suas Iniciações” – Arranha Céus ed., 2015 (2ª. ed.)

            Para maior desenvolvimento consultar o meu livro:

“A Alquimia e os alquimistas contemporâneos e as novas espiritualidades” - Ésquilo – 2010




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