segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Nicolau Saião, Lovecraft, o poeta dos abismos

 


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  INTRODUÇÃO À PROSA DE HPL

 

   Um mundo coberto de lugares sinistros, sítios escusos e de temerosa reputação, ruas suspeitas e palmilhadas por sombras inquietantes sob um luar malsão, bosques onde um ar estranho circula ao redor de antigas mansões georgianas – eis alguns dos cenários criados por Howard Philips Lovecraft para nossa estupefacta surpresa, nosso receoso encantamento e recreação algo indecisa, em suma: para nosso adestramento nas vias que o mal percorre e nas lides que lhe são próprias.

  Um mal de características peculiares que, existindo apenas nos escaninhos mais recônditos das imaginações delirantes, encontrou horrível confirmação no quotidiano de enormes cidades modernas engendradas por uma civilização frequentemente desapiedada e a muitos títulos absurda.

    Lovecraft, esse esquisito gentleman de Nova Inglaterra como ele mesmo gostava de se designar, não era um iniciado na philosofia tradicional ou hermética mas conhecia bem o mundo dos mitos e do oculto e muitas das leis imaginárias pelas quais este parece reger-se. Assim, criou relatos nos quais o mal metafísico é substituído por concepções de tipo materialista que fazem depender de raízes cósmicas a sua existência, a qual teria origens que se radicariam nos tempos primordiais povoados por seres alheios ao Homem e a que chamou os Grandes Antigos.

   Defrontando-se com a incógnita que se lhe deparava ao entrar nesse mundo forjado pela imaginação criadora, chegou à conclusão de que nele existiam figuras a que urgia dar nome e continentes que esperavam os cartografassem. Assim surgiu Pnath, Zinn, Chtulhu, Kadath e os seus ignóbeis senhores Nyarlathotep, Yog-Sothoth ou Ryleh – mas igualmente a Providence real que habitava e a do passado que lhe era muito familiar, bem como a região que a rodeava com os povoados que ali havia, Arkham ou Innsmouth ou outras, que a despeito de existirem, como era o caso desta última, nem eram citadas nos mapas. Lugares onde os monstros ficcionados achavam guarida para efectivarem os seus abomináveis conciliábulos e as suas tentativas de conspurcarem o planeta.

   H.P.Lovecraft, sendo um criador de contos e novelas fantásticas foi também contudo, nelas, um escritor realista, pois as descrições que nos deixou da Nova Inglaterra, principalmente, contam-se entre as mais perfeitas que dela se conhecem. Como se poderá verificar lendo-se os seus livros hoje famosos, de “O caso de Charles Dexter Ward” a outros como “As viagens”, o ambiente interior e exterior, através dos tempos, da sua velha e amada cidade natal (I am Providence, deixou ele escrito no seu túmulo) e da região em que está inserida e que a rodeia é magistralmente evocado e, em pinceladas cheias de colorido, envolve-se em adequada realidade e em magia inultrapassáveis.

    No que respeita aos seus relatos é modernamente conhecido, de acordo com filósofos como La Mettrie e Berkeley (para não falar nos de certa modernidade) que as coisas podem mudar de rosto mas não perdem o seu poder operativo próprio ou, dito de outra maneira, tudo corresponde a tudo no Universo específico de que fazem parte. Nesta medida, os monstros que chegam da obscuridade ou de cintilantes mundos exteriores e que a partir daí são o sinal evidente do sangue e da peste, vivem noutra dimensão mas apresentam-se aos nossos olhos com uma figura semelhante à das pessoas comuns, para não espantarem nem aterrorizarem prematuramente dando assim possibilidades de defesa, porquanto o nosso olhar e a nossa percepção foram anulados por essa camuflagem enganadora. Só os mais perspicazes ou os que, num golpe de acaso ou mesmo de sorte, foram objecto de uma fortuita iluminação, conseguem penetrar nos escaninhos dos embustes efectuados por esses verdadeiros lobos com pele de cordeiro como diz a expressão proverbial, podendo assim subtrair-se à sua acção devastadora. (Foi por ter dado relevo a tal em textos perduráveis, esclarecidos e consistentes – ainda que involuntários… - que a ICAR e outras agremiações místicas o tomaram como alvo do ódio intenso que são capazes de atiçar contra os que desvelam os manejos dos metafísicos de pacotilha).

   O simbolismo dos seus relatos é transparente: os seres míticos e legendários que tentam destruir o Homem e que através dos séculos viveram em universos de infâmia e aí adquiriram as suas atrozes capacidades e o seu nefando poder, são no mundo real representados pelos maléficos monstros do quotidiano, quer sejam gangsters brutais que negoceiam com os cínicos de topo ou se aproveitam das fraquezas da humanidade como a droga e a pornografia ou, então, a ambição dos grandes da Terra e o poder discricionário de chefes carismáticos, a força ilegal de argentários insaciáveis e a brutalidade de terroristas fanáticos sedentos de sangue.

  Efectivamente, que são as “montanhas da loucura” dum outro célebre livro de sua autoria senão os campos de morte das guerras europeias, as carnificinas perpetradas em países da África e do Oriente ou as fomes endémicas em tantas partes do mundo? E como não ver nessas cidades mefíticas que inventou e onde vagueiam corpos devastados por beberagens e filtros malignos o equivalente dos becos e vielas de mega-cidades modernas, com os seus antros de drogados, de excluídos e de outros infelizes?

   O génio poético de HP Lovecraft equacionou de forma superior um mundo ficcional onde os monstros imaginários assinalavam que futuros monstros iam ganhar ou cimentar figura e existência na realidade do dia a dia. Sem que fosse ele o seu intuito, pois apenas o movia o apego à sua arte e o seu continente de obsessões criadoras, pela magia da escrita traçou de maneira insuperável o panorama assustador duma sociedade e de um mundo em dolorosa transformação, ao mesmo tempo que conquistava para os arquivos da imaginação regiões sem precedentes. As recorrências, mesmo as insistências demasiado vivas ou as eventuais inabilidades a que qualquer autor está sujeito, não empanam de forma alguma o brilho da sua lâmpada encantada, que continua a iluminar os viandantes que, afinal, somos todos nós.

  

                                                                                                                   ns


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