ns
INTRODUÇÃO À
PROSA DE HPL
Um mundo
coberto de lugares sinistros, sítios escusos e de temerosa reputação, ruas
suspeitas e palmilhadas por sombras inquietantes sob um luar malsão, bosques
onde um ar estranho circula ao redor de antigas mansões georgianas – eis alguns
dos cenários criados por Howard Philips Lovecraft para nossa estupefacta
surpresa, nosso receoso encantamento e recreação algo indecisa, em suma: para
nosso adestramento nas vias que o mal percorre e nas lides que lhe são
próprias.
Um mal de
características peculiares que, existindo apenas nos escaninhos mais recônditos
das imaginações delirantes, encontrou horrível confirmação no quotidiano de
enormes cidades modernas engendradas por uma civilização frequentemente
desapiedada e a muitos títulos absurda.
Lovecraft, esse esquisito gentleman de Nova Inglaterra
como ele mesmo gostava de se designar, não era um iniciado na philosofia
tradicional ou hermética mas conhecia bem o mundo dos mitos e do oculto e
muitas das leis imaginárias pelas quais este parece reger-se. Assim, criou
relatos nos quais o mal metafísico é substituído por concepções de tipo
materialista que fazem depender de raízes cósmicas a sua existência, a qual
teria origens que se radicariam nos tempos primordiais povoados por seres
alheios ao Homem e a que chamou os Grandes Antigos.
Defrontando-se com a incógnita que se lhe deparava ao entrar nesse mundo
forjado pela imaginação criadora, chegou à conclusão de que nele existiam
figuras a que urgia dar nome e continentes que esperavam os cartografassem.
Assim surgiu Pnath, Zinn, Chtulhu, Kadath e os seus ignóbeis senhores
Nyarlathotep, Yog-Sothoth ou Ryleh – mas igualmente a Providence real que
habitava e a do passado que lhe era muito familiar, bem como a região que a
rodeava com os povoados que ali havia, Arkham ou Innsmouth ou outras, que a
despeito de existirem, como era o caso desta última, nem eram citadas nos
mapas. Lugares onde os monstros ficcionados achavam guarida para efectivarem os
seus abomináveis conciliábulos e as suas tentativas de conspurcarem o planeta.
H.P.Lovecraft, sendo um criador de contos e novelas fantásticas foi
também contudo, nelas, um escritor realista, pois as descrições que nos deixou
da Nova Inglaterra, principalmente, contam-se entre as mais perfeitas que dela
se conhecem. Como se poderá verificar lendo-se os seus livros hoje famosos, de
“O caso de Charles Dexter Ward” a outros como “As viagens”, o ambiente interior
e exterior, através dos tempos, da sua velha e amada cidade natal (I am Providence, deixou ele escrito no seu
túmulo) e da região em que está inserida e que a rodeia é magistralmente
evocado e, em pinceladas cheias de colorido, envolve-se em adequada realidade e
em magia inultrapassáveis.
No que
respeita aos seus relatos é modernamente conhecido, de acordo com filósofos
como La Mettrie e Berkeley (para não falar nos de certa modernidade) que as
coisas podem mudar de rosto mas não perdem o seu poder operativo próprio ou,
dito de outra maneira, tudo corresponde a tudo no Universo específico de que
fazem parte. Nesta medida, os monstros que chegam da obscuridade ou de
cintilantes mundos exteriores e que a partir daí são o sinal evidente do sangue
e da peste, vivem noutra dimensão mas apresentam-se aos nossos olhos com uma
figura semelhante à das pessoas comuns, para não espantarem nem aterrorizarem
prematuramente dando assim possibilidades de defesa, porquanto o nosso olhar e
a nossa percepção foram anulados por essa camuflagem enganadora. Só os mais
perspicazes ou os que, num golpe de acaso ou mesmo de sorte, foram objecto de
uma fortuita iluminação, conseguem penetrar nos escaninhos dos embustes
efectuados por esses verdadeiros lobos
com pele de cordeiro como diz a expressão proverbial, podendo assim
subtrair-se à sua acção devastadora. (Foi por ter dado relevo a tal em textos
perduráveis, esclarecidos e consistentes – ainda que involuntários… - que a
ICAR e outras agremiações místicas o tomaram como alvo do ódio intenso que são
capazes de atiçar contra os que desvelam os manejos dos metafísicos de
pacotilha).
O simbolismo
dos seus relatos é transparente: os seres míticos e legendários que tentam
destruir o Homem e que através dos séculos viveram em universos de infâmia e aí
adquiriram as suas atrozes capacidades e o seu nefando poder, são no mundo real
representados pelos maléficos
monstros do quotidiano, quer sejam gangsters
brutais que negoceiam com os cínicos de topo ou se aproveitam das fraquezas da
humanidade como a droga e a pornografia ou, então, a ambição dos grandes da
Terra e o poder discricionário de chefes carismáticos, a força ilegal de
argentários insaciáveis e a brutalidade de terroristas fanáticos sedentos de
sangue.
Efectivamente,
que são as “montanhas da loucura” dum outro célebre livro de sua autoria senão
os campos de morte das guerras europeias, as carnificinas perpetradas em países
da África e do Oriente ou as fomes endémicas em tantas partes do mundo? E como
não ver nessas cidades mefíticas que inventou e onde vagueiam corpos devastados
por beberagens e filtros malignos o equivalente dos becos e vielas de
mega-cidades modernas, com os seus antros de drogados, de excluídos e de outros
infelizes?
O génio
poético de HP Lovecraft equacionou de forma superior um mundo ficcional onde os
monstros imaginários assinalavam que futuros monstros iam ganhar ou cimentar
figura e existência na realidade do dia a dia. Sem que fosse ele o seu intuito,
pois apenas o movia o apego à sua arte e o seu continente de obsessões
criadoras, pela magia da escrita traçou de maneira insuperável o panorama assustador
duma sociedade e de um mundo em dolorosa transformação, ao mesmo tempo que
conquistava para os arquivos da imaginação regiões sem precedentes. As
recorrências, mesmo as insistências demasiado vivas ou as eventuais
inabilidades a que qualquer autor está sujeito, não empanam de forma alguma o
brilho da sua lâmpada encantada, que continua a iluminar os viandantes que,
afinal, somos todos nós.
ns
Sem comentários:
Enviar um comentário