DA LUMINOSA
ARQUITECTURA
“Num mundo que se assemelha quer a um estaleiro quer a um campo em
ruínas, trata-se de erguer uma casa em que os homens, vindos de todos os
quadrantes, possam viver em conjunto. E é tempo de partir à busca dos materiais.”
- Gilbert Cesbron
Não sei se a famosa frase proferida por
Goethe no leito de morte, em que o escritor pediu ‘mais luz, sempre mais luz’, deve ser encarada como tendo sido feita no sentido literal ou no
figurado. Desejo crer que foi neste último, devido ao que de essencial ela
expressa, na sua aparente simplicidade.
Com efeito, se, como salientou Pascal, o
Homem oscila constantemente entre o Anjo e a Besta, é fundamental (e simultaneamente
reconfortante e encorajador) que os espíritos nobres de todas as épocas
reafirmem sistematicamente que devem ser criadas condições para que as opções
dos seres humanos se dirijam para a ‘claridade’, em detrimento das ‘trevas’ –
portanto, que se caminhe ‘de claridade em claridade’, para utilizar as sábias
palavras de S. Paulo.
Esta opção é frequentemente dificultada por
um quotidiano societário que muitas vezes privilegia as ‘trevas’,
disfarçando-as ardilosamente. Os mecanismos de que se serve, aparentemente
doces na sua imediata mas espúria atracção, são a mentira sistemática camuflada
por uma inevitabilidade tida como óbvia (visto que o duvidar – aspecto estruturante da própria Liberdade – acaba por ser
rodeado de constrangimentos diversos), o falso ‘bom senso’ e um epicurismo
distorcido que confunde ‘alegria de viver’ com simples ‘contentamento’ e que se
caracteriza pela pseudo-assunção de um ‘realismo’ que, na prática, mais não
produz que frutos mortos. E o Tempo, esse excelso crítico, bem o tem
evidenciado...
Em conformidade, a quem não se revê neste
panorama em que tem assentado uma boa parte das decisões humanas e das próprias
relações sociais, resta privilegiar a busca da Verdade que qualifica (saliento,
‘que qualifica’ e não ‘que quantifica’) a Felicidade das pessoas, enfatizando-a
em todos os procedimentos. Os seus fundamentos poderão ser encontrados num
quadro ético que objectiva tanto a melhoria do Indivíduo quanto da própria
Humanidade, ou seja, numa Ética assente em princípios de criação que
dignifiquem o Homem e valorizem as suas produções, sempre que estas originem ou
desenvolvam consciências críticas – portanto, que não constranjam, mas que
libertem. Daí que, por exemplo, obras como A Montanha Mágica (incursão e
interrogação no Mundo e no Tempo exteriores) ou Em Busca do Tempo Perdido (procura
e interrogação do Mundo e do Tempo interiores), mesmo contando, por hipótese,
com apenas dois mil leitores, serão sempre melhores para a espécie humana do
que determinados programas televisivos com dois milhões de espectadores.
Vários autores têm evidenciado de forma
exemplarmente simples, ao longo dos tempos, os fundamentos desta Ética. Por
exemplo, n’ O Mercador de Veneza, Shakespeare fez o judeu Shylock proferir
as seguintes elementares palavras: ‘Se
nos picais, não sangramos? Se nos fazeis cócegas, não nos rimos? Se nos
envenenais, não morremos?’. Mais recentemente, num interessante texto
dirigido ao Cardeal Carlo Maria Martini, Umberto Eco referiu-se à existência
dos chamados ‘universais semânticos’,
salientando que o respeito pela ‘corporalidade
dos outros, entre os quais também se contam o direito de falar e de pensar’,
se impõe como elemento basilar desta estrutura procedimental.
Contudo, este princípio fundamental do reconhecimento
da dignidade do ‘Outro’ deverá ser matizado, visto que tem sido levado a certos
extremos, a ponto de, hoje em dia, concepções que se reivindicam como estando
estribadas no chamado Multiculturalismo
servirem como justificação para desmandos diversos que oprimem em vez de
libertarem. Com efeito, certos aspectos tidos por culturais e que aparentemente
decorrem desta perspectiva ‘multicultural’ não passam de expressões de
autoritarismo dos sectores que as promovem (frequentemente, de forma brutal contra
‘outros’) a fim de estabelecerem identidades que ajudem a perpetuar o seu
poder. A título de mero exemplo, permito-me indicar as nefastas práticas da
excisão ou da lapidação, ainda promovidas por certos grupos sociais em
determinados países.
Desta forma, o diálogo entre culturas, com
frequência apresentado como imprescindível, não pode passar pela efectivação de
cedências em relação a aspectos fundamentais, sendo o mais importante o da
defesa da dignidade humana (na qual se encara o Indivíduo como uma entidade e
não como um número), onde deverá inscrever-se, obrigatoriamente, a por vezes
enfatizada mas muitas vezes deturpada trilogia Liberdade, Igualdade, Fraternidade – deturpada porque utilizada
para sustentar sistemas de Cleptocracia que substituem, de maneira mais ou
menos subtil, a verdadeira Democracia. De outra forma, esse diálogo será apenas um monólogo a dois que somente servirá, no máximo, para que um dos lados continue
impunemente a afirmar a recusa dos valores essenciais da referida dignidade
humana. Será, em suma, uma ‘solidariedade de crápulas’ que, a pretexto da
prática da tolerância, deturpa esta legítima perspectiva de confronto de ideias
que almeja o mais qualificado valor operativo, para acabar por ser uma
condenável e cobarde condescendência perante o Mal – não mais sendo do que uma imitação do tristemente famoso
estilo de Neville Chamberlain (que ajudou o mundo a mergulhar na Segunda Guerra
Mundial) ou das perorações ‘doutrinárias’ de ‘pacifistas de 5.ª coluna’ que, há
um par de décadas, no Ocidente, diziam de forma descaradamente alvar ‘Better red then dead! ’(Antes vermelhos que mortos!). A este
propósito – e nem sequer é preciso ser-se crente para o referir – impõe-se que
recordemos o apólogo bíblico que reza ‘não
devemos dialogar com os demónios – pois eles enredar-nos-ão numa conversa sem
fim’. Na verdade, que tipo de diálogo será possível encetar ou manter, por
exemplo, com representantes convictos do terrorismo internacional ou
praticantes neonazis? E não se diga que estes não são mais do que o produto de
uma sociedade a arruinar-se. Tal constituiria uma boa ‘desculpa’, apenas, para
a ausência de responsabilidade individual nas respostas perante os desafios e
as crises que a todos assoberbam. E já se sabe que a eles, infelizmente, nem
todos respondem da mesma maneira – e são essas respostas que verdadeiramente
constituem a medida da capacidade e da qualidade intelectiva do ser humano
social.
Ora, este combate contra o ‘Mal’ (o absurdo expresso na destruição
da liberdade, da dignidade e da qualidade humanas) não poderá ser um mero
formalismo que se encena quotidianamente, o que o tornaria estéril, mas antes
um imperativo decorrente da adesão a princípios éticos, a qual deverá sempre
conduzir a uma certa mundividência e traduzir-se numa praxis bem precisa. Por outras palavras, esse combate deverá ser
afirmado como um dever individual consequente com o apego do sujeito a
concepções éticas de defesa da dignidade da pessoa humana (concepções estas
que, saliente-se novamente, não embarcam em falsas analogias nem são
complacentes com práticas pseudoculturais que se afirmam para melhor
constranger o Indivíduo, fingindo libertá-lo).
Ao longo desta pequena intervenção, tenho
referido várias vezes a palavra ‘Ética’. Chegado a este ponto, afigura-se-me
conveniente esclarecer os seus contornos – embora me pareça que no contexto da
temática abordada se poderá inferir o que por ela entendo. Para mim, ‘Ética’ é
o conjunto de reflexões e procedimentos que afixam um ‘ir existindo’ civilizado,
compreendendo por este último termo o somatório de vivências criativas que
estabelece, simultaneamente, a dignidade, a felicidade e a abertura aos
salutares ritmos do mundo – passados, presentes ou futuros.
Em função daquilo que atrás afirmo
depreende-se, com justeza, que desconfio bastante daqueles que apresentam como
recomendável e politicamente correcto o respeito reverencial por alguma
diversidade de quadros ‘éticos’ existentes, significativamente dispares entre
si nos seus fundamentos e, por isso, a vários títulos antagónicos nas
orientações que acabam por expressar – e, portanto, também alguns deles
dinamizadores de comportamentos que são frequentemente deploráveis. É minha
convicção que qualquer estrutura ética não poderá reclamar-se como tal se não
se fundar no respeito essencial pelos direitos humanos (evidentemente, utilizo
esta expressão na perspectiva de direitos ‘conquistados’ e não de direitos
‘naturais’, mas entendo que, ainda assim, são direitos ‘positivos’, na acepção
filosófica do termo). De outra forma, não passará de um sistema moral, como tal
meramente conjuntural. Mais: entendo que os distintos ‘diálogos’ a desenvolver
pelas diversas instituições que compõem o chamado ‘Mundo Ocidental’ (quer
consigo mesmo, internamente, quer com elementos que lhe são exteriores) deverão
fundamentar-se na inegociável adesão a este quadro de referências essenciais
pois, como oportunamente salientou Tocqueville, o respeito pelas diferenças
reclama uma igualdade prévia. De outra forma, o debate que possa vir a
efectuar-se estará inquinado ab ovo
por inadmissíveis cedências e, como tal, poderá ser mais nefasto do que
proveitoso.
A concluir, entendo deixar ainda uma última
achega: quando se diz que estes tempos actuais estão ‘despidos de valores’, há que salientar a incorrecta formulação
desta asserção pois, quando muito, eles estarão despidos de valores éticos suficientemente praticados e,
sobretudo, capazmente divulgados (o que é diferente). É claro que a difusão
daquela perspectiva pode não ser totalmente inocente, enquanto reflexo de
ideias de certos sectores sociais interessados em que seja afixado o panorama
da volatilização dos tradicionais valores intrínsecos à prática da cidadania e
na sua recomposição sob moldes bem diferentes. Por outro lado, ela é fruto,
igualmente, da resignação fundada no desespero em que por vezes as pessoas
mergulham, sentindo-se pouco acompanhadas nesta obra de defesa de uma ética
desejavelmente universal, a qual é, verdadeiramente, uma obra sinérgica. A
estes nossos semelhantes importa reafirmar-lhes, sistematicamente, que não
estão sós nessa caminhada.
Em concomitância, interessa continuar a
alargar o trabalho de libertação das consciências, pois se ‘o espírito sopra onde quer e como quer’,
como referiu São João, é igualmente fundamental que existam seres humanos
disponíveis para o orientar, sempre que tal se imponha.
Para que sejamos, cada vez mais, ‘Filhos da Luz’.
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