quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Um texto de João Garção

 

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DA LUMINOSA ARQUITECTURA

Num mundo que se assemelha quer a um estaleiro quer a um campo em ruínas, trata-se de erguer uma casa em que os homens, vindos de todos os quadrantes, possam viver em conjunto. E é tempo de partir à busca dos materiais.” - Gilbert Cesbron

   

                                                                                   

     Não sei se a famosa frase proferida por Goethe no leito de morte, em que o escritor pediu ‘mais luz, sempre mais luz’, deve ser encarada como tendo sido feita no sentido literal ou no figurado. Desejo crer que foi neste último, devido ao que de essencial ela expressa, na sua aparente simplicidade.

    Com efeito, se, como salientou Pascal, o Homem oscila constantemente entre o Anjo e a Besta, é fundamental (e simultaneamente reconfortante e encorajador) que os espíritos nobres de todas as épocas reafirmem sistematicamente que devem ser criadas condições para que as opções dos seres humanos se dirijam para a ‘claridade’, em detrimento das ‘trevas’ – portanto, que se caminhe ‘de claridade em claridade’, para utilizar as sábias palavras de S. Paulo.

    Esta opção é frequentemente dificultada por um quotidiano societário que muitas vezes privilegia as ‘trevas’, disfarçando-as ardilosamente. Os mecanismos de que se serve, aparentemente doces na sua imediata mas espúria atracção, são a mentira sistemática camuflada por uma inevitabilidade tida como óbvia (visto que o duvidar – aspecto estruturante da própria Liberdade – acaba por ser rodeado de constrangimentos diversos), o falso ‘bom senso’ e um epicurismo distorcido que confunde ‘alegria de viver’ com simples ‘contentamento’ e que se caracteriza pela pseudo-assunção de um ‘realismo’ que, na prática, mais não produz que frutos mortos. E o Tempo, esse excelso crítico, bem o tem evidenciado...

    Em conformidade, a quem não se revê neste panorama em que tem assentado uma boa parte das decisões humanas e das próprias relações sociais, resta privilegiar a busca da Verdade que qualifica (saliento, ‘que qualifica’ e não ‘que quantifica’) a Felicidade das pessoas, enfatizando-a em todos os procedimentos. Os seus fundamentos poderão ser encontrados num quadro ético que objectiva tanto a melhoria do Indivíduo quanto da própria Humanidade, ou seja, numa Ética assente em princípios de criação que dignifiquem o Homem e valorizem as suas produções, sempre que estas originem ou desenvolvam consciências críticas – portanto, que não constranjam, mas que libertem. Daí que, por exemplo, obras como A Montanha Mágica (incursão e interrogação no Mundo e no Tempo exteriores) ou Em Busca do Tempo Perdido (procura e interrogação do Mundo e do Tempo interiores), mesmo contando, por hipótese, com apenas dois mil leitores, serão sempre melhores para a espécie humana do que determinados programas televisivos com dois milhões de espectadores.

    Vários autores têm evidenciado de forma exemplarmente simples, ao longo dos tempos, os fundamentos desta Ética. Por exemplo, n’ O Mercador de Veneza, Shakespeare fez o judeu Shylock proferir as seguintes elementares palavras: ‘Se nos picais, não sangramos? Se nos fazeis cócegas, não nos rimos? Se nos envenenais, não morremos?’. Mais recentemente, num interessante texto dirigido ao Cardeal Carlo Maria Martini, Umberto Eco referiu-se à existência dos chamados ‘universais semânticos’, salientando que o respeito pela ‘corporalidade dos outros, entre os quais também se contam o direito de falar e de pensar’, se impõe como elemento basilar desta estrutura procedimental.

    Contudo, este princípio fundamental do reconhecimento da dignidade do ‘Outro’ deverá ser matizado, visto que tem sido levado a certos extremos, a ponto de, hoje em dia, concepções que se reivindicam como estando estribadas no chamado Multiculturalismo servirem como justificação para desmandos diversos que oprimem em vez de libertarem. Com efeito, certos aspectos tidos por culturais e que aparentemente decorrem desta perspectiva ‘multicultural’ não passam de expressões de autoritarismo dos sectores que as promovem (frequentemente, de forma brutal contra ‘outros’) a fim de estabelecerem identidades que ajudem a perpetuar o seu poder. A título de mero exemplo, permito-me indicar as nefastas práticas da excisão ou da lapidação, ainda promovidas por certos grupos sociais em determinados países.

    Desta forma, o diálogo entre culturas, com frequência apresentado como imprescindível, não pode passar pela efectivação de cedências em relação a aspectos fundamentais, sendo o mais importante o da defesa da dignidade humana (na qual se encara o Indivíduo como uma entidade e não como um número), onde deverá inscrever-se, obrigatoriamente, a por vezes enfatizada mas muitas vezes deturpada trilogia Liberdade, Igualdade, Fraternidade – deturpada porque utilizada para sustentar sistemas de Cleptocracia que substituem, de maneira mais ou menos subtil, a verdadeira Democracia. De outra forma, esse diálogo será apenas um monólogo a dois que somente servirá, no máximo, para que um dos lados continue impunemente a afirmar a recusa dos valores essenciais da referida dignidade humana. Será, em suma, uma ‘solidariedade de crápulas’ que, a pretexto da prática da tolerância, deturpa esta legítima perspectiva de confronto de ideias que almeja o mais qualificado valor operativo, para acabar por ser uma condenável e cobarde condescendência perante o Mal – não mais sendo do que uma imitação do tristemente famoso estilo de Neville Chamberlain (que ajudou o mundo a mergulhar na Segunda Guerra Mundial) ou das perorações ‘doutrinárias’ de ‘pacifistas de 5.ª coluna’ que, há um par de décadas, no Ocidente, diziam de forma descaradamente alvar ‘Better red then dead! ’(Antes vermelhos que mortos!). A este propósito – e nem sequer é preciso ser-se crente para o referir – impõe-se que recordemos o apólogo bíblico que reza ‘não devemos dialogar com os demónios – pois eles enredar-nos-ão numa conversa sem fim’. Na verdade, que tipo de diálogo será possível encetar ou manter, por exemplo, com representantes convictos do terrorismo internacional ou praticantes neonazis? E não se diga que estes não são mais do que o produto de uma sociedade a arruinar-se. Tal constituiria uma boa ‘desculpa’, apenas, para a ausência de responsabilidade individual nas respostas perante os desafios e as crises que a todos assoberbam. E já se sabe que a eles, infelizmente, nem todos respondem da mesma maneira – e são essas respostas que verdadeiramente constituem a medida da capacidade e da qualidade intelectiva do ser humano social.

    Ora, este combate contra o ‘Mal’ (o absurdo expresso na destruição da liberdade, da dignidade e da qualidade humanas) não poderá ser um mero formalismo que se encena quotidianamente, o que o tornaria estéril, mas antes um imperativo decorrente da adesão a princípios éticos, a qual deverá sempre conduzir a uma certa mundividência e traduzir-se numa praxis bem precisa. Por outras palavras, esse combate deverá ser afirmado como um dever individual consequente com o apego do sujeito a concepções éticas de defesa da dignidade da pessoa humana (concepções estas que, saliente-se novamente, não embarcam em falsas analogias nem são complacentes com práticas pseudoculturais que se afirmam para melhor constranger o Indivíduo, fingindo libertá-lo).

    Ao longo desta pequena intervenção, tenho referido várias vezes a palavra ‘Ética’. Chegado a este ponto, afigura-se-me conveniente esclarecer os seus contornos – embora me pareça que no contexto da temática abordada se poderá inferir o que por ela entendo. Para mim, ‘Ética’ é o conjunto de reflexões e procedimentos que afixam um ‘ir existindo’ civilizado, compreendendo por este último termo o somatório de vivências criativas que estabelece, simultaneamente, a dignidade, a felicidade e a abertura aos salutares ritmos do mundo – passados, presentes ou futuros.

    Em função daquilo que atrás afirmo depreende-se, com justeza, que desconfio bastante daqueles que apresentam como recomendável e politicamente correcto o respeito reverencial por alguma diversidade de quadros ‘éticos’ existentes, significativamente dispares entre si nos seus fundamentos e, por isso, a vários títulos antagónicos nas orientações que acabam por expressar – e, portanto, também alguns deles dinamizadores de comportamentos que são frequentemente deploráveis. É minha convicção que qualquer estrutura ética não poderá reclamar-se como tal se não se fundar no respeito essencial pelos direitos humanos (evidentemente, utilizo esta expressão na perspectiva de direitos ‘conquistados’ e não de direitos ‘naturais’, mas entendo que, ainda assim, são direitos ‘positivos’, na acepção filosófica do termo). De outra forma, não passará de um sistema moral, como tal meramente conjuntural. Mais: entendo que os distintos ‘diálogos’ a desenvolver pelas diversas instituições que compõem o chamado ‘Mundo Ocidental’ (quer consigo mesmo, internamente, quer com elementos que lhe são exteriores) deverão fundamentar-se na inegociável adesão a este quadro de referências essenciais pois, como oportunamente salientou Tocqueville, o respeito pelas diferenças reclama uma igualdade prévia. De outra forma, o debate que possa vir a efectuar-se estará inquinado ab ovo por inadmissíveis cedências e, como tal, poderá ser mais nefasto do que proveitoso.

    A concluir, entendo deixar ainda uma última achega: quando se diz que estes tempos actuais estão ‘despidos de valores’, há que salientar a incorrecta formulação desta asserção pois, quando muito, eles estarão despidos de valores éticos suficientemente praticados e, sobretudo, capazmente divulgados (o que é diferente). É claro que a difusão daquela perspectiva pode não ser totalmente inocente, enquanto reflexo de ideias de certos sectores sociais interessados em que seja afixado o panorama da volatilização dos tradicionais valores intrínsecos à prática da cidadania e na sua recomposição sob moldes bem diferentes. Por outro lado, ela é fruto, igualmente, da resignação fundada no desespero em que por vezes as pessoas mergulham, sentindo-se pouco acompanhadas nesta obra de defesa de uma ética desejavelmente universal, a qual é, verdadeiramente, uma obra sinérgica. A estes nossos semelhantes importa reafirmar-lhes, sistematicamente, que não estão sós nessa caminhada.  

    Em concomitância, interessa continuar a alargar o trabalho de libertação das consciências, pois se ‘o espírito sopra onde quer e como quer’, como referiu São João, é igualmente fundamental que existam seres humanos disponíveis para o orientar, sempre que tal se imponha.

Para que sejamos, cada vez mais, ‘Filhos da Luz’.


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