SOBRE
CRISTOVAM PAVIA
Fez no dia 7 deste Outubro 87 anos sobre o
nascimento do Poeta (que faleceria a treze do mesmo mês em 1968).
Recordado foi-o por alguns, os que sem dúvida
amam a sua poesia luminosa e perturbadora na sua quase ática simplicidade tão
cheia de uma vivíssima interpelação ao mundo, às coisas, aos pequenos
fragmentos de uma existência cifrada em amarguras e ocasionais alegrias de
alguém que, tal como seu Pai Francisco Bugalho, não viveu tudo quanto quis ou
quanto merecia.
Mas, no geral do que se convencionou chamar mundo das
letras, não houve – porque não podia haver num areópago de escada-abaixo
como é o que nos rodeia – conveniente celebração. O que é compreensível, pois
os Poetas também vêem medida a sua grandeza, frequentemente, menos pelo ruído
que pelo silêncio - e a sua melhor honra está precisamente nisso. O mesmo se
fez, em diferentes lugares, com Bruno Schulz, com Hans Carossa, com Nuno
Guimarães, uma vez que as mundanidades literatas se dão mal e ainda bem com os
que só têm de seu o alto talento tão alheio a notoriedades de baixo calibre
festejadas pela pedantice literata de determinados milieus societários.
***
Dizia o célebre inquisidor-mor de
Richelieu, com um cinismo não isento de senso de humor, “Dai-me uma frase
qualquer e conseguirei que ela ponha um baraço ao pescoço do seu autor”. E
embora se trate aqui de poesia e de um poeta, talvez faça sentido suspender a
respiração por uns segundos.
Porque, com efeito, a poesia é um perigoso
ofício. E se não pelas partes de fora, pelo menos pelas partes de dentro.
Será verdade que os poetas são sobreviventes?
Talvez sejam - sobreviventes do tal
lugar onde se acoita a verdadeira vida a que aludia, entre outros, o
sobrevivente de Charleville (Rimbaud). A poesia será também, assim, uma certa arte
das retiradas, a forma mais pessoal de combater a adversidade. Quem diz pessoal diz eficaz. Eficaz,
na verdade, porque nisto de coisas de dentro temos de nos haver com
presenças muito mais perigosas que os habituais fantasmas do quotidiano. Daí
que, por vezes, como (não) queria Cristovam Pavia, só possa haver “saída
pelo fundo”. Pelo fundo, pelo meio, por cima, em suma e afinal: pelo lugar
onde, no encalço de Flamel, “os touros encantados que deitam fumo e fogo
pelas narinas” encontram finalmente a brancura da verdade perseguida.
De Cristovam sei muito pouco. Quer dizer,
talvez saiba alguma coisa ou relativamente muito – porque vou a ele
inteiramente pelo coração. Como fascinado leitor, primeiro, de uns raros poemas
inseridos numa pequena antologia algo precária e, depois, dum livro muito
pundonorosamente feito, com os seus poemas completos - publicados, esparsos e
inéditos – que li inteirinho num pedaço de tarde de verão, sentado sob uma das
nogueiras citadinas em frente do edifício barroco do antigo Hospital da
Misericórdia portalegrense.
Cristovam falava (fala) de pequenas coisas, o
que é indício de que o fazia de grandes coisas: da morte do seu cão, da luz
difusa batendo na parede da casa da velha quinta alentejana dos ancestros, da
recordação que sua mãe teria na noite do seu hipotético e afinal sucedido funeral.
Coisas assim leves para quem julga que o poeta é uma espécie de artilharia
pesada.
E porque o tom em que o fazia é dos mais
belos (e estou a lembrar-me da emoção em Rilke, em Hesse, mas também em
Marie-Noel), há-de encontrar sempre quem através dele possa olhar as tardes de
negrume e, simultaneamente, de inteira claridade onde se vão reflectindo ora um
rosto, ora um ombro, ora uma mão escapando ao nevoeiro...
ns
TRÊS
POEMAS DE CRISTOVAM PAVIA
REQUIEM
(ao menino
morto, eu próprio)
A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo.
E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a.
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.
Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos.
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta...
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria...
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas das
ervas)
Oh, não há solidão, nas neblinas de inverno
Pela erma planície...
E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em
silêncio...
Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença, grande como o
silêncio...
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento
longínquo
Já me confundo contigo.
NA NOITE DA MINHA MORTE
Na noite da minha morte
Tudo voltará silenciosamente ao encanto antigo...
E os campos libertos enfim da sua mágoa
Serão tão surdos como o menino acabado de esquecer.
Na noite da minha morte
Ninguém sentirá o encanto antigo
Que voltou e anda no ar como um perfume...
Há de haver velas pela casa
E xales negros e um silêncio que eu
Poderia entender.
Mãe: talvez os teus olhos cansados de chorar
Vejam subitamente...
Talvez os teus ouvidos, só eles ouçam, no silêncio da
casa velando,
Uma voz serena de infância, tão clara e tão longínqua...
E mesmo que não saibas de onde vem nem porque vem
Talvez só tu a não esqueças.
AO MEU CÃO
Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação
De tudo... e apesar disso, sem o pedir, tentando
Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.
Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia, a debater-te
com a morte.
E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e
sossegado.
***
Reencontro:
13/10/68
À memória de CRISTÓVAM PAVIA
e de seu Pai
FRANCISCO BUGALHO
- meus amigos.
Quando
o comboio surgiu
na
curva do caminho
teu
pai estava perto. E disse:
Não queria, meu filho, que viesses
tão cedo.
Tenho, porém, aparelhada e pronta
(oh, desde sempre!) a égua.
E, sem coleira, o velho cão te aguarda,
fiel e meigo como um sol de Outono.
Meu colo tens também à tua espera
e a força do meu braço, do tamanho
da noite e do silêncio da tapada.
A força do meu braço quis descê-la
a tempo, sobre ti, descê-la quando
imaginaste um rosto na paisagem
- rosto que, distraído, se desfez
num prado alheio ao teu.
Quis, sobre ti, descer esse meu braço
de força já não minha forte ainda.
Mas era tarde para projectar-te
em ruas mais propícias.
Quis dá-lo a tua mãe (como tu, só)
mas já não foi possível.
Quis entregá-lo a dois ou três amigos,
mas tinham compromissos
pessoais.
Mesmo assim não queria que viesses
tão cedo.
Muita coisa podia acontecer
(muita coisa acontece)
como um súbito barco, uma palavra
- glicínia, madrugada, madressilva –
para teu recomeço
e minha espera
maior.
Aguardo-te, porém.
E, comigo, o teu cão, a égua alada,
a inocente infância dessa fonte
fresquíssima, da quinta, onde bebemos
a água
única.
Regressa, inteiro, à terra iluminada,
nu de mitos, de pétalas, de pranto
e das outras humanas falsidades
(como dizias)
do mundo.
Entrega-te e regressa.
Transparente.
No fundo, desde o fundo, pelo fundo
esmaga-te em meu peito!
António Luís Moita
*
Cristovam Pavia, de seu nome civil Francisco António Lahmeyer Flores
Bugalho, nasceu a 7 de Outubro de 1933 em Lisboa, vindo a falecer sob o rodado
dum comboio, na mesma cidade, em 13 de Outubro de 68.
Seu pai era o presencista
Francisco Bugalho, oriundo de Castelo de Vide e ali residente.
A partir de 1940, o poeta
morou em Lisboa, ali finalizando os estudos liceais.
Frequentou a Faculdade de
Direito de Lisboa, que abandonou para ingressar na Faculdade de Letras. Entre
1960 e a sua morte trabalhou na construção civil e viveu entre Lisboa, Castelo
de Vide, Paris e Heidelberg, tendo nesta última recebido acompanhamento
psicoterapêutico. Deu a lume, em 1959, “35 Poemas”, a sua única obra poética
publicada em vida. Anteriormente tinha publicado colaboração poética em jornais
e revistas, como Diário Popular, Árvore, Anteu, Távola Redonda, Serões. Usou,
além de Cristovam Pavia, os pseudónimos, ou "semi-heterónimos",
Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo Menezes da Cunha Ferreira.
"A poesia de Cristovam Pavia é a revelação de si próprio, de uma personalidade em conflito com o mundo em que vive e que procura uma fuga pela recuperação da infância morta, pela aceitação do seu conhecer-se diferente e despojado do que lhe é mais caro (a infância, o amor, o espaço e o tempo em que ambos se situavam), a transformação do seu próprio ser pelo sofrimento, num movimento de ascese e de autodestruição, quando o poeta atinge a consciência de si próprio e da sua voz.", diria José Bento em "Sobre a Poesia de Cristovam Pavia", in Poesia de Cristovam Pavia, Lisboa, 1982, p.15 (volume póstumo).
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