quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Cristovam Pavia, Antologia

 




SOBRE CRISTOVAM PAVIA

    Fez no dia 7 deste Outubro 87 anos sobre o nascimento do Poeta (que faleceria a treze do mesmo mês em 1968).

    Recordado foi-o por alguns, os que sem dúvida amam a sua poesia luminosa e perturbadora na sua quase ática simplicidade tão cheia de uma vivíssima interpelação ao mundo, às coisas, aos pequenos fragmentos de uma existência cifrada em amarguras e ocasionais alegrias de alguém que, tal como seu Pai Francisco Bugalho, não viveu tudo quanto quis ou quanto merecia.

  Mas, no geral do que se convencionou chamar mundo das letras, não houve – porque não podia haver num areópago de escada-abaixo como é o que nos rodeia – conveniente celebração. O que é compreensível, pois os Poetas também vêem medida a sua grandeza, frequentemente, menos pelo ruído que pelo silêncio - e a sua melhor honra está precisamente nisso. O mesmo se fez, em diferentes lugares, com Bruno Schulz, com Hans Carossa, com Nuno Guimarães, uma vez que as mundanidades literatas se dão mal e ainda bem com os que só têm de seu o alto talento tão alheio a notoriedades de baixo calibre festejadas pela pedantice literata de determinados milieus societários.

                                                                                   ***

   Dizia o célebre inquisidor-mor de Richelieu, com um cinismo não isento de senso de humor, “Dai-me uma frase qualquer e conseguirei que ela ponha um baraço ao pescoço do seu autor”. E embora se trate aqui de poesia e de um poeta, talvez faça sentido suspender a respiração por uns segundos.

  Porque, com efeito, a poesia é um perigoso ofício. E se não pelas partes de fora, pelo menos pelas partes de dentro.

  Será verdade que os poetas são sobreviventes? Talvez sejam -  sobreviventes do tal lugar onde se acoita a verdadeira vida a que aludia, entre outros, o sobrevivente de Charleville (Rimbaud). A poesia será também, assim, uma certa arte das retiradas, a forma mais pessoal de combater a adversidade.  Quem diz pessoal diz eficaz. Eficaz, na verdade, porque nisto de coisas de dentro temos de nos haver com presenças muito mais perigosas que os habituais fantasmas do quotidiano. Daí que, por vezes, como (não) queria Cristovam Pavia, só possa haver “saída pelo fundo”. Pelo fundo, pelo meio, por cima, em suma e afinal: pelo lugar onde, no encalço de Flamel, “os touros encantados que deitam fumo e fogo pelas narinas” encontram finalmente a brancura da verdade perseguida.

  De Cristovam sei muito pouco. Quer dizer, talvez saiba alguma coisa ou relativamente muito – porque vou a ele inteiramente pelo coração. Como fascinado leitor, primeiro, de uns raros poemas inseridos numa pequena antologia algo precária e, depois, dum livro muito pundonorosamente feito, com os seus poemas completos - publicados, esparsos e inéditos – que li inteirinho num pedaço de tarde de verão, sentado sob uma das nogueiras citadinas em frente do edifício barroco do antigo Hospital da Misericórdia portalegrense.

  Cristovam falava (fala) de pequenas coisas, o que é indício de que o fazia de grandes coisas: da morte do seu cão, da luz difusa batendo na parede da casa da velha quinta alentejana dos ancestros, da recordação que sua mãe teria na noite do seu hipotético e afinal sucedido funeral. Coisas assim leves para quem julga que o poeta é uma espécie de artilharia pesada.

  E porque o tom em que o fazia é dos mais belos (e estou a lembrar-me da emoção em Rilke, em Hesse, mas também em Marie-Noel), há-de encontrar sempre quem através dele possa olhar as tardes de negrume e, simultaneamente, de inteira claridade onde se vão reflectindo ora um rosto, ora um ombro, ora uma mão escapando ao nevoeiro...       

                                                                                                                     ns


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TRÊS POEMAS DE CRISTOVAM PAVIA

 

REQUIEM

 

                               (ao menino morto, eu próprio)

 

A tarde declina com uma luz ténue.

Estou grave e calmo.

E não preciso de ninguém

Nem a luz da tarde me comove: entendo-a.

Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.

 

Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam

E voltam. São os mesmos.

Como os conheço desde a infância!

E a terra húmida das tapadas da quinta...

O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos

Gira transparente nesta brisa fria...

(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas das ervas)

Oh, não há solidão, nas neblinas de inverno

Pela erma planície...

 

E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio...

 

Agora sei que vives mais

Porque começo a sentir a tua presença, grande como o silêncio...

Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo

Já me confundo contigo.

 

NA NOITE DA MINHA MORTE

 

Na noite da minha morte

Tudo voltará silenciosamente ao encanto antigo...

E os campos libertos enfim da sua mágoa

Serão tão surdos como o menino acabado de esquecer.

 

Na noite da minha morte

Ninguém sentirá o encanto antigo

Que voltou e anda no ar como um perfume...

Há de haver velas pela casa

E xales negros e um silêncio que eu

Poderia entender.

 

Mãe: talvez os teus olhos cansados de chorar

Vejam subitamente...

Talvez os teus ouvidos, só eles ouçam, no silêncio da casa velando,

Uma voz serena de infância, tão clara e tão longínqua...

E mesmo que não saibas de onde vem nem porque vem

Talvez só tu a não esqueças.

 

 

AO MEU CÃO

 

Deixei-te só, à hora de morrer.

Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos

Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação

De tudo... e apesar disso, sem o pedir, tentando

Insinuar que eu ficasse perto,

Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

 

Não percebi a evidência de que ias morrer

E gostavas da minha companhia por uma noite,

Que te seria tão doce a minha simples presença

Só umas horas, poucas.

Não percebi, por minha grosseira incompreensão,

Não percebi, por tua mansidão e humildade,

Que já tinhas perdoado tudo à vida

E começavas a debater-te na maior angústia, a debater-te com a morte.

E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e sossegado.

 

                                                       ***

Reencontro: 13/10/68

                                                 À memória de CRISTÓVAM PAVIA

                                                 e de seu Pai

                                                 FRANCISCO BUGALHO

                                                 - meus amigos.

 

Quando o comboio surgiu

na curva do caminho

teu pai estava perto. E disse:

 

Não queria, meu filho, que viesses

tão cedo.

Tenho, porém, aparelhada e pronta

(oh, desde sempre!) a égua.

E, sem coleira, o velho cão te aguarda,

fiel e meigo como um sol de Outono.

 

Meu colo tens também à tua espera

e a força do meu braço, do tamanho

da noite e do silêncio da tapada.

 

A força do meu braço quis descê-la

a tempo, sobre ti, descê-la quando

imaginaste um rosto na paisagem

- rosto que, distraído, se desfez

num prado alheio ao teu.

 

Quis, sobre ti, descer esse meu braço

de força já não minha forte ainda.

Mas era tarde para projectar-te

em ruas mais propícias.

 

Quis dá-lo a tua mãe (como tu, só)

mas já não foi possível.

 

Quis entregá-lo a dois ou três amigos,

mas tinham compromissos

pessoais.

 

Mesmo assim não queria que viesses

tão cedo.

Muita coisa podia acontecer

(muita coisa acontece)

como um súbito barco, uma palavra

- glicínia, madrugada, madressilva –

para teu recomeço

e minha espera

maior.

 

Aguardo-te, porém.

E, comigo, o teu cão, a égua alada,

a inocente infância dessa fonte

fresquíssima, da quinta, onde bebemos

a água

única.

 

Regressa, inteiro, à terra iluminada,

nu de mitos, de pétalas, de pranto

e das outras humanas falsidades

(como dizias)

do mundo.

 

Entrega-te e regressa.

Transparente.

 

No fundo, desde o fundo, pelo fundo

esmaga-te em meu peito!

 

                                           António Luís Moita

                                                         *

Cristovam Pavia, de seu nome civil Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, nasceu a 7 de Outubro de 1933 em Lisboa, vindo a falecer sob o rodado dum comboio, na mesma cidade, em 13 de Outubro de 68.

  Seu pai era o presencista Francisco Bugalho, oriundo de Castelo de Vide e ali residente.

  A partir de 1940, o poeta morou em Lisboa, ali finalizando os estudos liceais.

 Frequentou a Faculdade de Direito de Lisboa, que abandonou para ingressar na Faculdade de Letras. Entre 1960 e a sua morte trabalhou na construção civil e viveu entre Lisboa, Castelo de Vide, Paris e Heidelberg, tendo nesta última recebido acompanhamento psicoterapêutico. Deu a lume, em 1959, “35 Poemas”, a sua única obra poética publicada em vida. Anteriormente tinha publicado colaboração poética em jornais e revistas, como Diário Popular, Árvore, Anteu, Távola Redonda, Serões. Usou, além de Cristovam Pavia, os pseudónimos, ou "semi-heterónimos", Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo Menezes da Cunha Ferreira.

  "A poesia de Cristovam Pavia é a revelação de si próprio, de uma personalidade em conflito com o mundo em que vive e que procura uma fuga pela recuperação da infância morta, pela aceitação do seu conhecer-se diferente e despojado do que lhe é mais caro (a infância, o amor, o espaço e o tempo em que ambos se situavam), a transformação do seu próprio ser pelo sofrimento, num movimento de ascese e de autodestruição, quando o poeta atinge a consciência de si próprio e da sua voz.", diria José Bento em "Sobre a Poesia de Cristovam Pavia", in Poesia de Cristovam Pavia, Lisboa, 1982, p.15 (volume póstumo).


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