C. RONALD OU OS FOGOS DA NOITE
A voz dos deuses não é sempre que fala. Tal
como a voz do poeta. Mas, quando isso sucede, há fogueiras na noite que se põem
a tremeluzir. Contudo, a voz dos deuses é pouco segura, afasta-se para além de
nós, oscila, cria espaços de sombra à escala do destino dos seus senhores:
porque os deuses vão secularmente desaparecendo mas a medida dos homens é
diferente, resiste e a sua sombra é mais humilde – como a dum gato, dum
arbusto, duma oliveira. Duma pessoa, simplesmente.
Recorra-se então à voz do poeta. Ela tem fracturas, o sangue estanca-se,
a penumbra faz-se de súbito nuns olhos inquietos. Não importa, o sinal aí
permanece, se propaga e estende. Alastra. Seja num descampado ou dentro duma
casa, os sons ouvem-se, é inegável o eco despertado. Em redor da nossa cabeça
cria-se como que um espaço de brusca realidade –
e é então
que as figuras e as palavras
começam a aparecer: estranhas salas repletas de mesas e reposteiros onde passam
claros e sóbrios vultos de mulheres, coisas simples aos cantos que tomam outro
perfil, o som de flautas, de violões e até de guitarras espanholas. E de
repente um silencio que se dilata mas fica ocupado por um grito reboante e
claro, possivelmente feliz. O poeta interroga-se, mas não é tudo uma
interrogação? Não é tudo a dúvida de quem, não sabendo, conhece todavia muito
do que subjaz às frases? Evidentemente, é o mistério da poesia, essa florescida
necessidade que tanto parte do acaso como a ele conduz, essa chama que o poeta
acende com ramos e com papéis, com tecidos, com substancias inomináveis, com os
próprios dedos e que deixam rastos de fogo nas paredes e, principalmente, nas
páginas que se organizam em forma de livros.
C. Ronald conhece bem os diversos rostos das palavras. Assim como
conhece a face da alegria e do sofrimento, desse quotidiano que muitas vezes
nos fere e nos angustia.
Conhece as ruas e a floresta, conhece o que há dentro duma cozinha e
também dentro dum coração desconhecido, o que se esqueceu para sempre dentro
dum quarto, o que se tem e teve, vulgar e por isso mesmo absolutamente belo,
numa saleta que se recorda duma casa que amámos. Um rosto de velho ou de
criança, as mãos dum amigo que se foi. Os ruídos do mar e o vozear da freguesia
quotidiana num bar ou numa cidade que se visitou pela primeira vez.
Nos seus poemas existe sempre uma busca do que é significativo, ele
procura sempre aprofundar o conhecimento possível para que se entenda o como e
o porquê da escuridão que por vezes envolve o mundo.
A meu ver, este poeta de que tenho falado com empenho através da voz e
da escrita é possuidor de um método de renovação da visão há mais de quarenta
anos. E muitos o têm entendido.
Nos sons da sua poesia algo se prolonga e percebe-se neles a mais nobre
e serena música, como num mundo que discreto se renova e continua a ouvir
através das páginas e dos campos onde as fogueiras iluminam a noite. - (ns)
SESSENTA E SETE
Morrer imitando o teu jeito de morrer
é possível se no meu corpo trago o teu
encanto
Horas oblíquas do fim que surge da
sombra
familiar abaixo do anjo prematuro e
veemente
Tudo pode voltar e dar nome ao que senti
sempre
A solidão virá modificada e a ausência
não será
a mesma nem as coisas dadas por engano
Morrer no teu silêncio amando essa
conjunção
que não havia ainda dentro ou fora do
tempo
A terra tornou-se outra vez o sentido
diferente
do teu corpo submisso ao meu tormento
Que coragem para resistir e emboscar a
existência
Afortunada representação do lado novo
e antigo
dos sentidos com a inocência feita por
si mesma
Mas haja memória na galeria humana dos
descrentes
que tudo oferece de mal ou bem no pior
silêncio
(in “Ocasional Glup”)
PARA ESTAR NA
PAISAGEM
Assim que entro, a casa estabelece as
regras,
o apoio da terra, as mãos como duas
naturezas
juntas e algo que não fui quando chego
à cozinha:
algoz e vítima, alimento e gosto, amor
e ódio
sobre o mesmo fogo. Tu estavas
distante
dessa história, iluminada e nua. Débil
eco
para quem precisa do encanto, das
coisas antigas
e das novas. Ainda uma vez mais os
sonhos tentam
o existido com o que fica dos mortos.
O hábito
com que provo o tempo nessa noite de
chuva.
Acima de nós, beleza e verdade
confundem
a liturgia das raízes, o manancial dos
enigmas
a graduar o acaso por tudo que tivemos
juntos
entre frutos e flores.
(in As coisas simples, 1986)
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