quinta-feira, 3 de setembro de 2020

C. Ronald, Poemas

 




C. RONALD OU OS FOGOS DA NOITE

    A voz dos deuses não é sempre que fala. Tal como a voz do poeta. Mas, quando isso sucede, há fogueiras na noite que se põem a tremeluzir. Contudo, a voz dos deuses é pouco segura, afasta-se para além de nós, oscila, cria espaços de sombra à escala do destino dos seus senhores: porque os deuses vão secularmente desaparecendo mas a medida dos homens é diferente, resiste e a sua sombra é mais humilde – como a dum gato, dum arbusto, duma oliveira. Duma pessoa, simplesmente.

   Recorra-se então à voz do poeta. Ela tem fracturas, o sangue estanca-se, a penumbra faz-se de súbito nuns olhos inquietos. Não importa, o sinal aí permanece, se propaga e estende. Alastra. Seja num descampado ou dentro duma casa, os sons ouvem-se, é inegável o eco despertado. Em redor da nossa cabeça cria-se como que um espaço  de  brusca realidade    e  é  então

que as figuras e as palavras começam a aparecer: estranhas salas repletas de mesas e reposteiros onde passam claros e sóbrios vultos de mulheres, coisas simples aos cantos que tomam outro perfil, o som de flautas, de violões e até de guitarras espanholas. E de repente um silencio que se dilata mas fica ocupado por um grito reboante e claro, possivelmente feliz. O poeta interroga-se, mas não é tudo uma interrogação? Não é tudo a dúvida de quem, não sabendo, conhece todavia muito do que subjaz às frases? Evidentemente, é o mistério da poesia, essa florescida necessidade que tanto parte do acaso como a ele conduz, essa chama que o poeta acende com ramos e com papéis, com tecidos, com substancias inomináveis, com os próprios dedos e que deixam rastos de fogo nas paredes e, principalmente, nas páginas que se organizam em forma de livros.

   C. Ronald conhece bem os diversos rostos das palavras. Assim como conhece a face da alegria e do sofrimento, desse quotidiano que muitas vezes nos fere e nos angustia. 

   Conhece as ruas e a floresta, conhece o que há dentro duma cozinha e também dentro dum coração desconhecido, o que se esqueceu para sempre dentro dum quarto, o que se tem e teve, vulgar e por isso mesmo absolutamente belo, numa saleta que se recorda duma casa que amámos. Um rosto de velho ou de criança, as mãos dum amigo que se foi. Os ruídos do mar e o vozear da freguesia quotidiana num bar ou numa cidade que se visitou pela primeira vez.

   Nos seus poemas existe sempre uma busca do que é significativo, ele procura sempre aprofundar o conhecimento possível para que se entenda o como e o porquê da escuridão que por vezes envolve o mundo.

   A meu ver, este poeta de que tenho falado com empenho através da voz e da escrita é possuidor de um método de renovação da visão há mais de quarenta anos. E muitos o têm entendido.  

   Nos sons da sua poesia algo se prolonga e percebe-se neles a mais nobre e serena música, como num mundo que discreto se renova e continua a ouvir através das páginas e dos campos onde as fogueiras iluminam a noite. - (ns)


SESSENTA E SETE

 

Morrer imitando o teu jeito de morrer

é possível se no meu corpo trago o teu encanto

Horas oblíquas do fim que surge da sombra

familiar abaixo do anjo prematuro e veemente

Tudo pode voltar e dar nome ao que senti sempre

A solidão virá modificada e a ausência não será

a mesma nem as coisas dadas por engano

Morrer no teu silêncio amando essa conjunção

que não havia ainda dentro ou fora do tempo

A terra tornou-se outra vez o sentido diferente

do teu corpo submisso ao meu tormento

Que coragem para resistir e emboscar a existência

Afortunada representação do lado novo e antigo

dos sentidos com a inocência feita por si mesma

Mas haja memória na galeria humana dos descrentes

que tudo oferece de mal ou bem no pior silêncio

 

                                                             (in “Ocasional Glup”) 

 

PARA ESTAR NA PAISAGEM

 

Assim que entro, a casa estabelece as regras,

o apoio da terra, as mãos como duas naturezas

juntas e algo que não fui quando chego à cozinha:

algoz e vítima, alimento e gosto, amor e ódio

sobre o mesmo fogo. Tu estavas distante

dessa história, iluminada e nua. Débil eco

para quem precisa do encanto, das coisas antigas

e das novas. Ainda uma vez mais os sonhos tentam

o existido com o que fica dos mortos. O hábito

com que provo o tempo nessa noite de chuva.

Acima de nós, beleza e verdade confundem

a liturgia das raízes, o manancial dos enigmas

a graduar o acaso por tudo que tivemos juntos

entre frutos e flores.

 

(in As coisas simples, 1986)

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