segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Artur do Cruzeiro Seixas ou A travessia do deserto

 

ns, Homenagem a Cruzeiro Seixas


     INTRODUÇÃO

    É preciso ver a poesia e a pintura muito ao longe. Ou antes: é necessário, por vezes, vê-las como se estivéssemos muito longe, do lado de cá dos montes com desertos misteriosos pelo meio. Muito longe do poeta/pintor, das suas palavras, das suas razões ou desrazões, muito distantes da sua figura, dos seus secretos motivos, dos seus motivos quotidianos e reais – das suas quimeras ou das realidades que lhe crestam a face, dos segredos todavia muito próprios, dos seus pavores e dos seus encantamentos. Como se, magoadamente, serenamente, o encarássemos como o aventureiro legítimo, cuja imaginação clara e concreta nos vai talvez salvar, nos vai talvez fornecer a pista inquestionável para a viagem mais rara. Para a viagem que iremos fazer, cruzando as lonjuras que frente aos nossos olhos se patenteiam.

    Mas será isto possível? Será mesmo efectivável, por maioria de razão se com ele convivemos durante décadas, se lhe conhecemos muitos dos mitos e dos quotidianos em que se envolveu ou se deixou envolver, dos sonhos que lhe permeiam o espírito, daquilo que viu e que o suscita para que se permita escrever e pintar sem desdouro e sem desfalecimento? Se o estimamos, se vemos nele um companheiro de jornada, um confrade na rota que é própria de quem vive, que é única mas também nos seduziu?

    Pode, pelo menos, tentar-se. Efectuar essa distanciação que é como uma boa regra vital, que é assim como que um olhar lançado na direcção de algo que já vimos mas não esgotámos, como acontece nos grandes passeios que não planeamos ao pormenor mas que ficam em nós para sempre tal qual as memórias de ritmos imarcescíveis.

    E, afinal, não pode esquecer-se que há no artista, como em qualquer outra pessoa, sempre uma parte velada, uma espécie de continente desconhecido que nunca chegaremos a descriptar perfeitamente.

    Perene regra que deverá ser observada, mesmo escutada quando iniciamos uma demanda. Para além dos horizontes, em pleno território da escrita e da pintura que doravante não nos será alheia.





O sabor africano dos dias

    Mesmo estando em Lisboa, no continente divisado seja em Loulé, Caminha ou Alpalhão, ou no Norte onde ele agora vive, há qualquer coisa na poesia de Cruzeiro Seixas – incomplacente, inventiva e com um perceptível halo de mistério (não de exotismo!) – que me comunica um cheiro, um sabor, uma ambiência que me faz sentir a presença da África onde residiu e viveu durante anos que, se foram decerto de encantamento, também foram de inquietação e mesmo de amargura devido a condições muito próprias.

     Creio que qualquer um que ali tenha vivido ou excursionado por um considerável lapso de tempo sente esta sensação ao defrontar-se com o acervo de poemas de sua lavra. Com efeito, se o seu percurso nos mostra um autor absolutamente lusitano e surrealista de várias têmperas, não é menos verdade que, tal como me sucede por exemplo na leitura de Leal de Zêzere, sinto o poderoso apelo de África disseminado no que escreve, ora aqui ora ali, expressa ou impressamente: o cheiro da terra e o sabor dos frutos e dos produtos de quitanda, o ritmo das emoções e dos pensamentos que rodeiam os que, estando em África, tendo conhecido nela como num encantamento jornadas e vilegiaturas, acabam por se ligar a esse continente da forma muito pessoal e peculiar que cifra o seu discurso literário e artístico.

      E, com efeito, Cruzeiro Seixas põe em equação, diria em confrontação, figuras originárias - mitológicas umas, intensamente realistas ou fazendo parte dum imaginário retintamente europeu outras – do continente “lugar de partida” como lhe chamava G.A.Henty e onde cristalizaram muitos ritmos que depois se iriam difundir, mercê dos fados da História,  pelas terras de Mashona, ou de Chiqwelembo, de Shaka ou de Barotse… Ou dos plainos desérticos de Namanga.

    Ou seja: por todos os locais onde se cimentou a imagem que, com alguma dose de magoada ironia, Aimé Césaire, Frantz Fanon ou Fred Blanchod qualificaram de “negritude greco-latina”.

    O apelo da terra, europeia ou africana, é contudo certificado pelo apelo da escrita: dono de uma límpida erudição a que prefiro chamar conhecimento, cultura viva e profundamente humanizada, Artur do Cruzeiro Seixas faz reflectir nos seus poemas uma qualidade de discurso poético absolutamente salubre, cortada por um humor e agilidade de estilo que só aos zoilos aparecerá como agilidade extrínseca. Discretamente dramática, quando não mesmo trágica, na sua poesia percebe-se uma fundura de pensamento que toca os grandes temas universais e a forma que eles tomam ao organizarem-se num determinado espírito, num determinado autor.

     Numa determinada demanda, de cariz muito próprio, complexo mas conseguido e inteiramente fundacional.

                                    (Texto completo na revista AGULHA nº152, aqui:

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2020/06/nicolau-saiao-artur-do-cruzeiro-seixas.html )

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