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O
Político Truncado – Iria ter linda carreira, mas a bernarda abrilina modificou-lhe a trajectória. Deixou-o meio em
seco e ligado a uma formação partidária dessas que balançam com o vento do
Oeste ou, vegetando, concedem escassos réditos para tão grandes apetites.
Quando no tempo da outra senhora passeava
de mãos a dar-a-dar, solene e pimpão, acompanhando os raciocínios e as
confidências dum corifeu da situação passo a passo junto à esplanada do “Tarro”
– era belo de ver. Imponente, tostadinho e bem penteado como um galã de bairro
de média estatura. Ficou lívido com o colapso do regime das conversas em
família. Durante uns tempos esteve confinado aos seus botões, decerto atónito
com o furacão que lhe desabava sobre as certezas e lhe cirandava em roda das
dúvidas. Ele, que sempre olhara para dentro numa imitação de meditação
profunda, ganhou uma espécie de melancolia que pareceu assentar-lhe como uma
luva. Depois, espertou. Apreciador de homens providenciais, ainda é solene de
ademanes e parco de conversas, excepto quando através de um líder a valer a
pátria parece pedir. Um dia o maroto do mundo deixar-se-á desse bocejo de
liberdades para todos e mudará para o que convém: e ele terá finalmente um
cadeirão à altura da sua fidelidade perdigueira. Mas que não seja tarde de
mais, que os anos passam e aos roncões de média estatura o tempo costuma pregar
partidas desagradáveis.
O
Polícia de Papelão –
Diziam-no um bom sacanola, pachorrentamente no giro como um buda ambulante de
segurança pública. Suspeitavam mesmo alguns, cochichando-o aos
correligionários, que fornecesse os arquivos secretos com material bom e
fresco. Nunca tirei isso a limpo, se acaso se verificava, de resto ele era para
mim muito mais uma gravura típica que propriamente um cívico. Barrigudinho,
como se usava na época frequentemente nas agências de autoridade, tinha um
carão avermelhado denotador – para além da estrutura biológica – do seu algum
apreço por Baco.
Com má consciência? Provavelmente, pois
ainda não chegara o tempo da boa liberdade em que os mantenedores da ordem (do
regime, quer-se dizer) têm largueza para frequentar os lugares onde escorre o
sumo-de-uva com, talvez, excessiva frequência. Mas vão outros os tempos, dantes
até se dizia à boca pequena que quando um cívico ia à tasquinha era para
executar trabalho, verbi gratia
espetando a orelha para conversas de gente que escavava ardilosamente na obra
do homem de Santa Comba (Salazar).
Quando trajava à paisana, quase nunca o reconhecia: ficava como que
transfigurado, mas um tique o denunciava – as manápulas atrás das costas e o
passo cadenciado de quem tinha muitos metros de rua para desbastar ao correr
das horas de serviço, por acaso de folga. Fazia voz grossa, que um dia bem lha
ouvi num raspanete a um colega de estudos liceais. Devia ter seus azeites, mas
ainda não incomodavam tecnocraticamente, em estilo gestapo, chegados que ainda
não tinham sido os tempos caceteantes de mestres Cavaco e Dias Loureiro. No
fundo um pobre diabo diligente quanto bastasse para chegar à reforma. Um pobre
homem, afinal, de certezinha camponês despejado na profissão, exilado na cidade
e de certo picado pelos do topo. Teria alguma vez, na verdade, prejudicado ou
feito mal a alguém? A mim parece-me que não, pois não teria do esbirro mais que
a figura caricatural. Um azar, digamos. Como nas fitas, o físico do papel. E
querem maior desculpa para um sujeito que, se calhar, nem via filmes policiais?
A Rosa
de Todo o Ano – Não se
chamava Rosa, ‘tá de ver, mas eu chamava-lhe assim. Criada de todo o serviço
duma família de teres, ia à praça, varria as escadas do prédio de seus patrões,
lavava janelas e batia tapetes, lá para dentro certamente se dava a misteriosas
tarefas de cosimentos e cozinhados, habituada a alombar, percebia-se, com tudo
o que requisitasse suor. Quando eu morava na parte velha da cidade, nos meus
tempos de gaiato, encontrava-a frequentemente numa loja de tecidos a mercar
carrinhos de linha e a buscar a caixa das amostras de botões, aparelho
misterioso e encantado com encaixes sobrepostos como jardins suspensos que
também eu transportava para minha tia, que cosia para fora como franco-atiradora
de linhas e agulhas.
Sempre jovial, dava-se bem com vizinhos e lojistas. Quarentona, ainda
denotava que fora linda cachopa. Mas, retirada das lides do coração, ficava-se
perceptivelmente pela existência de mourejadoura a todo o pano. Constava que
tinha um filho lá para os longes de uma mirífica Lisboa, marçano ou
manga-de-alpaca de pequeno porte em lugares mais ou menos lendários. Portalegre
naquela altura ficava longíssimo da capital, daí o desapego aparente. Um dia,
ia eu nos meus catorzes/quinzes, perguntou-me onde comprara uma capelinha de
macela que por esses dias de S. João eu levava nas mãos (todos os anos as
compro, rendido às flores secas da tradição).”Foi ali na do senhor Xis, senhora Rosa…”, disse-lhe eu deixando
escapar a boca para a crisma que lhe dera. “Eu
não me chamo Rosa, menino! Sou …” e lá me disse o nome que agora omito a
vosselências. E daí em diante, sempre que nos cruzávamos, cumprimentávamo-nos
como velhos conhecidos. Sabia lá ela quanto eu apreciava a sua lhaneza natural,
a sua inocente bondade de burrinha de trabalho e que eu somente deixava
transparecer na minha saudação respeitosa!
Como outros de outros mesteres, perdi-lhe depois o rasto ao mudar de
casa para lugares mais centrais. Ainda estará viva? Se assim for deve decerto
trabalhar para os netos, nessas paragens lisboetas onde talvez se tenha juntado
ao filho por reforma bem suada. Deverá, concerteza, continuar anciã de boa
catadura: os pequenos lojistas e os vizinhos devem apreciá-la, num
relacionamento fácil e contente com este saintéxupery feminino e anónimo
cruzando a terra dos homens do quotidiano esvoaçante.
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