segunda-feira, 17 de maio de 2021

Nicolau Saião, de "Retratos de Fantasmas Nítidos"

 


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O Político TruncadoIria ter linda carreira, mas a bernarda abrilina modificou-lhe a trajectória. Deixou-o meio em seco e ligado a uma formação partidária dessas que balançam com o vento do Oeste ou, vegetando, concedem escassos réditos para tão grandes apetites.

   Quando no tempo da outra senhora passeava de mãos a dar-a-dar, solene e pimpão, acompanhando os raciocínios e as confidências dum corifeu da situação passo a passo junto à esplanada do “Tarro” – era belo de ver. Imponente, tostadinho e bem penteado como um galã de bairro de média estatura. Ficou lívido com o colapso do regime das conversas em família. Durante uns tempos esteve confinado aos seus botões, decerto atónito com o furacão que lhe desabava sobre as certezas e lhe cirandava em roda das dúvidas. Ele, que sempre olhara para dentro numa imitação de meditação profunda, ganhou uma espécie de melancolia que pareceu assentar-lhe como uma luva. Depois, espertou. Apreciador de homens providenciais, ainda é solene de ademanes e parco de conversas, excepto quando através de um líder a valer a pátria parece pedir. Um dia o maroto do mundo deixar-se-á desse bocejo de liberdades para todos e mudará para o que convém: e ele terá finalmente um cadeirão à altura da sua fidelidade perdigueira. Mas que não seja tarde de mais, que os anos passam e aos roncões de média estatura o tempo costuma pregar partidas desagradáveis.

 

 

O Polícia de Papelão – Diziam-no um bom sacanola, pachorrentamente no giro como um buda ambulante de segurança pública. Suspeitavam mesmo alguns, cochichando-o aos correligionários, que fornecesse os arquivos secretos com material bom e fresco. Nunca tirei isso a limpo, se acaso se verificava, de resto ele era para mim muito mais uma gravura típica que propriamente um cívico. Barrigudinho, como se usava na época frequentemente nas agências de autoridade, tinha um carão avermelhado denotador – para além da estrutura biológica – do seu algum apreço por Baco.

Com má consciência? Provavelmente, pois ainda não chegara o tempo da boa liberdade em que os mantenedores da ordem (do regime, quer-se dizer) têm largueza para frequentar os lugares onde escorre o sumo-de-uva com, talvez, excessiva frequência. Mas vão outros os tempos, dantes até se dizia à boca pequena que quando um cívico ia à tasquinha era para executar trabalho, verbi gratia espetando a orelha para conversas de gente que escavava ardilosamente na obra do homem de Santa Comba (Salazar).

  Quando trajava à paisana, quase nunca o reconhecia: ficava como que transfigurado, mas um tique o denunciava – as manápulas atrás das costas e o passo cadenciado de quem tinha muitos metros de rua para desbastar ao correr das horas de serviço, por acaso de folga. Fazia voz grossa, que um dia bem lha ouvi num raspanete a um colega de estudos liceais. Devia ter seus azeites, mas ainda não incomodavam tecnocraticamente, em estilo gestapo, chegados que ainda não tinham sido os tempos caceteantes de mestres Cavaco e Dias Loureiro. No fundo um pobre diabo diligente quanto bastasse para chegar à reforma. Um pobre homem, afinal, de certezinha camponês despejado na profissão, exilado na cidade e de certo picado pelos do topo. Teria alguma vez, na verdade, prejudicado ou feito mal a alguém? A mim parece-me que não, pois não teria do esbirro mais que a figura caricatural. Um azar, digamos. Como nas fitas, o físico do papel. E querem maior desculpa para um sujeito que, se calhar, nem via filmes policiais?

 

 

A Rosa de Todo o Ano – Não se chamava Rosa, ‘tá de ver, mas eu chamava-lhe assim. Criada de todo o serviço duma família de teres, ia à praça, varria as escadas do prédio de seus patrões, lavava janelas e batia tapetes, lá para dentro certamente se dava a misteriosas tarefas de cosimentos e cozinhados, habituada a alombar, percebia-se, com tudo o que requisitasse suor. Quando eu morava na parte velha da cidade, nos meus tempos de gaiato, encontrava-a frequentemente numa loja de tecidos a mercar carrinhos de linha e a buscar a caixa das amostras de botões, aparelho misterioso e encantado com encaixes sobrepostos como jardins suspensos que também eu transportava para minha tia, que cosia para fora como franco-atiradora de linhas e agulhas.

   Sempre jovial, dava-se bem com vizinhos e lojistas. Quarentona, ainda denotava que fora linda cachopa. Mas, retirada das lides do coração, ficava-se perceptivelmente pela existência de mourejadoura a todo o pano. Constava que tinha um filho lá para os longes de uma mirífica Lisboa, marçano ou manga-de-alpaca de pequeno porte em lugares mais ou menos lendários. Portalegre naquela altura ficava longíssimo da capital, daí o desapego aparente. Um dia, ia eu nos meus catorzes/quinzes, perguntou-me onde comprara uma capelinha de macela que por esses dias de S. João eu levava nas mãos (todos os anos as compro, rendido às flores secas da tradição).”Foi ali na do senhor Xis, senhora Rosa…”, disse-lhe eu deixando escapar a boca para a crisma que lhe dera. “Eu não me chamo Rosa, menino! Sou …” e lá me disse o nome que agora omito a vosselências. E daí em diante, sempre que nos cruzávamos, cumprimentávamo-nos como velhos conhecidos. Sabia lá ela quanto eu apreciava a sua lhaneza natural, a sua inocente bondade de burrinha de trabalho e que eu somente deixava transparecer na minha saudação respeitosa!

   Como outros de outros mesteres, perdi-lhe depois o rasto ao mudar de casa para lugares mais centrais. Ainda estará viva? Se assim for deve decerto trabalhar para os netos, nessas paragens lisboetas onde talvez se tenha juntado ao filho por reforma bem suada. Deverá, concerteza, continuar anciã de boa catadura: os pequenos lojistas e os vizinhos devem apreciá-la, num relacionamento fácil e contente com este saintéxupery feminino e anónimo cruzando a terra dos homens do quotidiano esvoaçante.


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